Quatro policiais civis e militares do Pará foram presos durante a Operação Bruciato da Polícia Federal, que investiga mineração ilegal em terras indígenas. Os agentes são suspeitos de formarem uma milícia que controla garimpos dentro da Terra Indígena Kayapó
NAS REDES SOCIAIS, o garimpeiro Raí Souza Lima ostentava uma vida de riqueza pelo mundo, dirigindo carros de luxo e carregando sacolas de compras em Nova York, Londres e Amsterdã. Mas, em setembro de 2023, Lima foi assassinado dentro de uma van em Redenção, no sul do Pará. Foi alvejado por vários tiros, um deles próximo ao olho esquerdo.
Passado um ano do assassinato, a morte do “garimpeiro tiktoker” começa a ser esclarecida pela Polícia Federal (PF). O crime é atribuído a um grupo de policiais civis e militares do Pará, suspeitos de formarem uma milícia que controlava garimpos de ouro dentro da Terra Indígena Kayapó, no sul do Pará.
Dias antes de ser executado, o garimpeiro Raí usou suas redes sociais para ameaçar os policiais. “Vem que eu quero te arrebentar, filho da puta. Vem e chama mais homens”, gritava o garimpeiro em um quadriciclo, enquanto circulava pelo garimpo Maria Bonita, o maior aberto na área indígena. “No Maria Bonita não existe mais milícia”, escreveu ele na legenda.
As ameaças eram parte de uma “disputa territorial” pelo comando do garimpo, segundo a decisão da Justiça Federal que determinou a prisão dos policiais suspeitos. Eles teriam laços com um esquema ainda maior de mineração ilegal, que envolvia um político responsável por “esquentar” (legalizar) ouro extraído de várias regiões da Amazônia.
Na semana passada, a PF prendeu os quatro policiais investigados: Paulo Henrique Santos Pereira, terceiro sargento da Polícia Militar (PM) de Redenção, apontado como executor da morte do garimpeiro Raí; David Jerry Ribeiro dos Santos, terceiro sargento da PM; Vinicius Sousa Dias, delegado da Polícia Civil de Redenção, casado com uma juíza do Tribunal de Justiça do estado; e Danillo Santos Silva, escrivão da Polícia Civil de Redenção.
Questionados pela Repórter Brasil, os advogados dos policiais alegam que não tiveram acesso aos autos da investigação e que isso “cerceia” o direito de defesa de seus clientes. Confira abaixo detalhes dos posicionamentos.
Segundo a PF, os agentes não só permitiam como comandavam a exploração ilegal do ouro na Terra Indígena Kayapó, usando violência e recebendo pagamentos de subornos.
“O envolvimento dos policiais civis e militares revela também a alta reprovabilidade de suas condutas, que utilizam a função pública que exercem para intimidar outros criminosos, obter ganhos ilícitos e dificultar eventual procedimento investigativo”, destaca o juiz federal Carlos Chaves, da 4° Vara Criminal do Tribunal Regional Federal do Pará, na autorização dos pedidos de prisão. A decisão foi acessada de forma exclusiva pela Repórter Brasil.
Além dos quatro policiais, outras nove pessoas tiveram o pedido de prisão preventiva decretado. No comando da organização criminosa estaria, segundo a PF, um político e empresário de Redenção, Pedro Lima dos Santos, ex-vereador e servidor público do município.
Sua empresa, a mineradora Dente Di Leone, teria usado um “garimpo fantasma” para esquentar 3 toneladas de ouro ilegal, comercializados por R$ 847 milhões. Além da TI Kayapó, a suspeita é de que o esquema tenha se abastecido também com minério da TI Yanomami, em Roraima, onde milhares de indígenas enfrentam uma crise humanitária devido ao avanço da mineração ilegal. Leia aqui a reportagem detalhando o funcionamento do esquema.
Garimpo de ouro e tráfico de drogas estão na mira da investigação
Entre 2021 e 2023, o terceiro sargento Pereira recebeu pouco mais de R$ 1 milhão em repasses da Mineradora Dente Di Leone, segundo a PF, que teve acesso aos Relatos de Inteligência Financeira (RIF’s) obtidos com a quebra do sigilo bancário dos envolvidos.
De acordo com a investigação, Pereira explorava ouro ilegalmente no garimpo Maria Bonita e era dono de máquinas escavadeiras usadas no processo, além de gerenciar um esquema de tráfico de drogas no local.
A PF colheu depoimentos que sugerem que o policial militar atuava como uma espécie de “xerife”, utilizando sua posição para intimidar e ameaçar outros garimpeiros, além de ter sido o responsável pela morte de Raí Souza Lima.
Procurado, o advogado Wilson Mota Martins Júnior, que defende o policial, afirmou que o direito de defesa vem sendo cerceado desde o início da operação Bruciato, pois o seu cliente e os demais investigados não tiveram acesso, no momento da prisão, à decisão que decretou a prisão preventiva, e que os advogados dos policiais só tiveram acesso um dia depois, no momento da audiêcia de custódia.
Sobre as suspeitas envolvendo o PM Paulo Henrique Santos Pereira, ele disse que são “ilações” e que a inocência dele será comprovada no decorrer do processo. Disse ainda que seu cliente é inocente da morte do garimpeiro Raí Lima, e que este “tinha diversos adversários e era dependente de drogas” (leia a íntegra da nota).
Ainda segundo a investigação, Pereira trabalhava sob as ordens do delegado da Polícia Civil de Redenção, Vinícius Sousa Dias. Ele seria “dono de garimpos”, de acordo com o inquérito.
Dias é investigado também por cobrar dinheiro em dois garimpos na TI Kayapó, o Maria Bonita e o Santile. Uma denúncia anônima incluída na investigação afirma que o delegado exigia R$ 500 mil para supostamente inibir a ação da Polícia Federal na região.
“Utilizando-se de seu cargo público para amedrontar rivais, em quase regime de milícia. Ou seja, para além de se beneficiar dos crimes, para os quais foi encarregado de combater, ele mesmo passou a praticá-los”, destaca a decisão.
Com base nos relatórios financeiros dos investigados, a PF apurou que o delegado movimentou mais de R$ 5 milhões em transações suspeitas. Recebeu valores de empresas envolvidas no esquema, como a Dente Di Leone, e repassou a outras empresas de fachada, como postos de combustíveis e empresas de máquinas pesadas, para ocultar a origem e o destino do dinheiro.
Ao acatar o pedido de prisão, o juiz federal destaca o fato de o delegado ser casado com uma juíza. “É extremamente constrangedor se deparar com uma situação em que um servidor público, encarregado da segurança pública, ou seja, de todos nós, e supostamente casado com uma Juíza de Direito do honroso Tribunal de Justiça do Estado do Pará, encontre-se envolvido em uma das maiores organizações criminosas (quiçá a maior) em atividade hoje no país voltada à exploração ilegal de bens da União e responsável pela movimentação de valores estratosféricos que beiram a casa de um bilhão de reais”.
O advogado Carlos Godoy, que defende o delegado, disse que vai se manifestar apenas no inquérito policial. Até o momento, ele diz não ter conseguido acesso às investigações e que isso “cerceia o direito da defesa”.
Procurada, a Polícia Civil do Pará informou que os policiais foram afastados das funções e estão à disposição da Justiça. “O caso será apurado por meio de Processo Administrativo Disciplinar (PAD). A PCPA reforça que não compactua com desvios de conduta de qualquer agente”, diz a nota. A PM do Pará não respondeu ao pedido de comentário.
Mais dois policiais investigados
Além do delegado e do terceiro sargento, a Operação Bruciato também teve como alvo um escrivão da Polícia Civil de Redenção, Danillo Santos Silva. A investigação aponta para transferências suspeitas entre Silva e a mineradora Dente Di Leone.
Silva teria movimentado cerca de R$ 40 milhões em apenas oito meses, entre agosto de 2021 e março de 2022. Segundo a PF, ele recebia valores de diferentes fontes e repassava para outros integrantes do esquema, como garimpeiros, empresários, mineradoras, postos de combustíveis e empresas de aluguel e manutenção de máquinas pesadas.
Os repasses para empresas de maquinário e combustível seriam uma forma de financiar as atividades de garimpo na região, afirma a investigação. Silva também é suspeito de participar diretamente da exploração no garimpo de Santile, dentro da TI Kayapó.
O quarto policial preso e afastado das funções é o terceiro sargento da PM David Jerry Ribeiro dos Santos.
Os relatórios de inteligência financeira mostram que Jerry, como é conhecido, recebeu R$ 470 mil da Mineradora Dente Di Leone. Os documentos identificam também outras transações com joalherias, pessoas e empresas investigadas na Operação Bruciato.
Em 2016, Jerry chegou a ser preso acusado de participar do sequestro e assassinato de um pecuarista, sendo posteriormente afastado da PM. Contudo, retornou ao cargo em 2020 e, segundo as investigações, continuou a atuar em garimpos ilegais, sendo indiciado também por transporte ilegal de combustível que seria usado no garimpo.
“É surpreendente que com esse histórico ainda permaneça fazendo parte da honrosa Polícia Militar do Estado do Pará, e mais surpreendente ainda é que esteja ainda lotado na mesma região onde supostamente vem cometendo toda uma gama de crimes”, escreveu o juiz na decisão.
Tanto Jerry quanto Silva são defendidos pelo mesmo advogado, Marcelo Mendanha, que critica a falta de acesso à investigação. Segundo ele, seus clientes foram submetidos à audiência de custódia sem conhecerem os motivos da prisão. Mendanha diz que teve acesso aos documentos mais de uma semana após a operação ser deflagrada.
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