A Prática foi a que mais cresceu entre os crimes de ódio de 2017 a 2022, principalmente nas redes sociais. Governo Federal tem desenvolvido ações para proteger mulheres de violências praticadas sob a falácia de livre expressão
Quando uma opinião ultrapassa os limites da liberdade de expressão e vira uma ofensa? Para ajudar o cidadão a refletir sobre o tema e a tomar decisões mais conscientes no exercício da sua liberdade de expressão, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania inicia uma série de reportagens que irá se debruçar sobre alguns dos temas mais espinhosos, sobretudo as violações de direito que costumam ser confundidas com “opinião”.
É o caso da misoginia, crime caracterizado pelo discurso de ódio contra mulheres – diretamente relacionado às desigualdades de gênero historicamente observadas no Brasil e no mundo. Para esta primeira matéria, foram ouvidos especialistas, estudiosos e vítimas, principalmente acerca dos ataques professados nas redes sociais – território ainda mais fértil para a propagação de desinformação e ódio. Por isso, desde 2018 também é infração penal disseminar misoginia na internet.
A pesquisadora Taiza de Souza Costa Ferreira, doutora da Fiocruz em Saúde da Criança e da Mulher, define a misoginia como um conjunto de ações de ódio contra mulheres. A prática, segundo ela, tem se popularizado na internet. “Temos visto um crescimento cada vez mais exacerbado da violência contra mulher no ambiente de sociabilidade digital. Por exemplo, a gente tem a criação de perfis falsos para humilhar mulheres e descredibilizar as falas delas em lugares de poder”, explica.
Taiza Ferreira, que também é especialista em cyberbullying, relaciona a misoginia com a dinâmica social patriarcal na qual a sociedade é estruturada, num contexto em que as mulheres não têm direitos iguais aos homens. Para a pesquisadora, o ódio histórico contra mulheres faz com que elas se enquadrem no conceito de grupo minoritário da sociedade. Nele, existem ainda subgrupos que sofrem mais violência de gênero, como mulheres transexuais, lésbicas, indígenas e negras. “Todas essas subcategorias são vítimas de discurso misógino”, constata.
No ambiente digital, a doutora da Fiocruz aponta a existência de “redes paralelas para a propagação de conteúdos destinados a desqualificar pautas que são relevantes para as mulheres”. Um exemplo é o caso da influenciadora Alexandra Gurgel, que milita nas redes contra as opressões impostas pelos padrões de beleza vigentes na sociedade, a partir do conceito de Body Positive, termo do inglês que dá nome ao movimento em que as pessoas aceitem seus corpos, promovendo o exercício da autoestima, independentemente da diversidade de aparências e características físicas.
Cultura de violência
Alexandra lembra que a primeira vez que ela sofreu misoginia foi em 2016, quando lançou um vídeo no YouTube no qual denunciou a cultura de violência sexual, a partir de um caso em específico. Na época, ela estava no início da carreira como youtuber, com apenas 600 seguidores. Esse vídeo furou a sua bolha de seguidores e chegou a um grupo de homens que desmereceram a denúncia e a ameaçaram.
“Mandaram um print do meu endereço e falaram que me estuprariam. Comecei a chorar desesperada e, ao mesmo tempo, estava com medo de alguém aparecer na minha casa. Depois, me mandaram mensagem falando que gorda não merecia nem ser estuprada. Fiquei muito mal. Até pensei em desistir de fazer vídeos”, relata a influencer.
O episódio ajudou Alexandra Gurgel a identificar ainda mais os limites entre opinião e discurso de ódio e a motivou a usar suas plataformas para ajudar outras vítimas. “Quando a mulher se posiciona e fala sobre esses temas polêmicos, sobre os nossos direitos, muitas vezes, é vista como ameaça fácil, um alvo para violência. Eu sabia que o discurso dessas pessoas tinha ultrapassado a opinião e era ódio. Foi aí que eu entendi que o problema era muito mais embaixo e que eu poderia usar a minha voz, de alguma maneira, para combater esse comportamento e apoiar outras mulheres que passam por essas situações”, conta.
Atualmente, Alexandra – que é uma mulher lésbica, ativista das causas feministas e de direitos humanos – tem uma voz potente na internet. Ela alcança quase 1 milhão de pessoas no Instagram. Na ocasião em que concedeu entrevista ao ministério, a influencer revelou que ainda sofre com discursos de ódio no meio digital, mas com menos frequência, graças aos filtros de conteúdos desenvolvidos pelas redes sociais nos últimos anos.
No entanto, para a maioria dos usuários, a misoginia segue sendo uma prática criminosa crescente nas plataformas digitais, conforme indicam dados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH) e da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da Safernet. De 2017 a 2022, essa modalidade de violação é a que mais cresceu entre os crimes de ódio praticados na internet.
Negacionismo e desinformação
Elisa Hartwig, advogada e pesquisadora em direitos humanos e violência de gênero da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, destaca o negacionismo como principal motivo da propagação da violência de gênero no mundo digital, principalmente em decorrência da desinformação. Para ela, o negacionismo é uma massa de manobra política de hierarquias sociais, que se vincula ao discurso de ódio e penetra na agenda pública com objetivo de fazer manutenção de poderes hegemônicos.
“A desinformação e o discurso de ódio se concentram em vários temas da agenda pública, como saúde, meio ambiente e igualdade de gênero. O objetivo consiste em negar o avanço de quaisquer pautas progressistas ou de esquerda, de forma a confirmar uma única forma possível de organização social, que é excludente e baseada na opressão de alguns seres sobre outros, inclusive na opressão da mulher”, salientou Elisa Hartwig.
O discurso de ódio, no entendimento da pesquisadora, adquire traços agravantes com a internet devido às tecnologias desenvolvidas para disseminação de comunicação de massa em plataformas de notícias não oficiais. A advogada ainda observa que, para haver um combate efetivo ao discurso de ódio e misoginia contra mulheres, é necessária uma legislação que combata a desinformação.
“Existe, no Brasil, um discurso de defesa dessas práticas com base no direito à liberdade de expressão, mas precisamos compreender que o direito à liberdade de expressão não é um direito absoluto. Então, existem e devem existir limitações. Sendo assim, não há dúvidas da inconstitucionalidade de qualquer forma de censura prévia, mas também não se pode questionar a possibilidade posterior de análise e responsabilização cível e criminal pelos conteúdos difundidos e em relação a eventuais danos materiais e morais”, alerta.
Hartwig chama atenção ainda para os desdobramentos devastadores, para a garantia de direitos, quando não há um efetivo enfrentamento às violações de gênero. A população feminina, de acordo com ela, precisa estar vigilante porque “qualquer crise política e social é uma desculpa para retirada dos direitos das mulheres”, reconhece a pesquisadora.
Políticas públicas
O combate à violência de gênero e, consequentemente, o enfrentamento à prática da misoginia, é uma das pautas prioritárias do Governo Federal, por meio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e o Ministério das Mulheres. As ações desenvolvidas para esse público contemplam a complexidade da temática e suas interseccionalidades.
Isadora Cardoso, assessora do Gabinete Ministerial do MDHC, detalha a abordagem da pasta. Conforme a servidora, são levadas em consideração as diversas identidades que compõem o ser mulher, como raça, identidade de gênero e orientação sexual. “O MDHC entende que a violência contra a mulher é plural”, afirma Isadora. Entre as principais iniciativas planejadas para dar resposta à questão está a instituição de um Grupo de Trabalho (GT) de Enfrentamento da Discriminação contra Pessoas LGBT, no âmbito digital, para proteger pessoas LGBTQIA+, o que inclui mulheres vítimas de violências específicas, como a transfobia, lesbofobia e misoginia. “É crucial assegurar espaços para discutir essas questões”, acrescenta.
Para entender a fundo as raízes do problema, o Ministério das Mulheres realizou uma pesquisa inédita focada no discurso misógino e na desinformação direcionada às mulheres nas plataformas de redes sociais, no âmbito da iniciativa Brasil Sem Misoginia – uma proposta de mobilização social de todos os setores brasileiros contra o ódio e todas as formas de violência e discriminação contra as mulheres.
O levantamento intitulado “Observatório da indústria da desinformação e violência de gênero nas plataformas digitais” foi executado por meio de uma parceria entre a pasta e o laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab), vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os primeiros resultados foram anunciados em março deste ano e uma próxima etapa da pesquisa vai apurar detalhes sobre o discurso de ódio no YouTube.
Gisele Fredericce, chefe da Assessoria Especial de Comunicação do Ministério das Mulheres, pontua dados que chamaram atenção do Governo Federal. “O levantamento identificou e classificou 1.565 anúncios publicitários dirigidos às mulheres como sendo problemáticos, irregulares ou ilegais/fraudulentos”, aponta. Segundo ela, os dados foram coletados das redes sociais, em plataformas como Facebook, Instagram, Messenger e Audience Network.
Além da misoginia on-line, o Governo Federal executa ainda uma série de políticas de enfrentamento a todos os tipos de violência contra mulheres. Em 2023, foi retomado o Programa Mulher Viver sem Violência, que integra serviços de saúde, justiça, segurança pública, assistência social e autonomia financeira. Os eixos prioritários são o Ligue 180, um serviço gratuito de atendimento 24 horas, disponível por telefone e WhatsApp, e a Casa da Mulher Brasileira – considerada uma inovação no atendimento humanizado às mulheres.
Acesse e conheça o site Ódio ou Opinião. “Ódio ou Opinião”, novo portal do governo federal busca conscientizar sobre violações de direitos em discursos na internet
www.gov.br/Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania