Em cidade gaúcha quase 100% submersa, enchente tem impactos distintos em diferentes classes sociais
É primeira vez que Álvaro Azevedo volta para casa depois das cheias extremas da maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. O técnico em radiologia observa com tristeza os móveis destruídos, enlameados e revirados.
Perguntado sobre como se sentia ao ver seu lar daquele jeito, Álvaro preferiu falar de política. “Estado mínimo, tragédia máxima”, resumiu o morador. Alvorada do Sul (RS), cidade onde ele vive, ficou quase totalmente submersa pela água.
“O Estado mínimo permitiu que a lama chegasse até minha casa. Foi uma falta de fiscalização, prevenção e investimento do poder público que permitiu esse desastre acontecer”, opinou.
Para ele, um Estado forte poderia diminuir os efeitos das mudanças climáticas e proteger melhor a população. “Um Estado que não fiscaliza e não reforça medidas de prevenção é um Estado que abandona seu povo”, opinou.
“Boiada passou também no Rio Grande do Sul”
Álvaro centralizou as críticas ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB). “Quando ele [Leite] destruiu o Código Florestal, fez isso seguindo a política ambiental do [ex-presidente] Bolsonaro. A boiada também passou aqui”, acrescentou.
A fala do técnico em radiologia se refere às 480 alterações e cortes feitas pelo governo Leite ao Código Ambiental do Rio Grande do Sul. O fato foi revelado pelo Brasil de Fato RS, em reportagem publicada em 4 de maio deste ano.
Com a água até o joelho, Álvaro culpou o não funcionamento das bombas d’água em Porto Alegre (RS), do prefeito Sebastião Mello (MDB), como um dos fatores para o desastre. “O próprio prefeito admitiu que só tinham quatro bombas para tirar a água da cidade”, lamentou.
Procurada pelo Brasil de Fato, a prefeitura de Porto Alegre (RS) disse que até a última sexta-feira (31) havia conseguido aumentar para 15 o número de bombas em funcionamento. O governo do Rio Grande do Sul não respondeu à reportagem.
Mesma água, diferentes classes sociais
Álvaro afirma que tem algum dinheiro guardado para custear novos móveis e a limpeza da casa. “Mas sei que tem gente muito pior que eu. Uma pessoa mais pobre, sem reservas financeiras, dependerá totalmente do Estado”, avalia.
Esse é o caso de Ana Rute Bittencourt, 52 anos, que mora a poucos metros da casa de Álvaro. Manicure de profissão, ela vive com o marido, filhos e neto. Depois da enchente, a única fonte de renda estável é o Bolsa Família.
A água subiu igualmente para os dois moradores de Eldorado do Sul (RS), mas os efeitos foram sentidos de maneira muito diferentes.
Enquanto o Álvaro, o técnico em radiologia, se refugiou na casa da irmã em Porto Alegre (RS), Ana Rute e família viveram um verdadeiro calvário em busca de um lugar seco para ficar.
Primeiro, a manicure e sua família passaram cinco dias no abrigo em uma escola, que também foi invadido pela água. “Saímos com a água na cintura, botamos as coisas no carro, mas até o carro boiou”, relatou.
Depois, todos ficaram acampados com outras famílias na BR-116, perto de Eldorado do Sul (RS). “Na BR [rodovia] era um caos total. Parecia um filme. A gente via o exército socorrendo as pessoas com barcos”, contou.
“Família rica nos salvou”
Ana Rute relatou finalmente algum alívio quando foram tirados da beira da estrada por uma família rica da capital gaúcha.
“Essa família cuidou de nós como se fôssemos do sangue deles. Eu nunca vou esquecer o que fizeram por nós. Nos deram comida, abrigo e, principalmente, esperança”, disse a manicure.
De volta à casa enlameada, Ana Rute esquenta a pouca comida da geladeira em um micro-ondas recuperado da enchente. “Achamos ele [micro-ondas] boiando. Meu marido pegou, eu lavei toda a lama e ele ainda funciona”, relatou.
“Quem tem dinheiro consegue se reerguer mais rápido. A gente, que é pobre, depende de doações e da boa vontade dos outros. Os governantes precisam olhar mais para nós”, contou a manicure ao Brasil de Fato.
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