Futuro interrompido: como o golpe de 1964 freou o avanço da reforma agrária no Brasil e permitiu a expansão do latifúndio
Brasil de Fato relembra as principais forças políticas que lutavam pela distribuição de terras no país antes da ditadura
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A luta dos trabalhadores rurais por terra e melhores condições de trabalho foi brutalmente interrompida pelo golpe militar de 1964.
Do dia em que o exército tomou o país à força até a promulgação da Constituição de 1988, 1.654 camponeses foram mortos ou desapareceram no meio rural brasileiro. O dado é de uma pesquisa divulgada recentemente pelo ex-preso político e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Gilney Viana.
Toda essa estrutura repressiva tentava conter uma ideia que se alastrava pelo país, principalmente entre 1959 e 1964, no protagonismo de sindicatos, movimentos populares e setores da igreja católica: a reforma agrária.
Nesta reportagem, o Brasil de Fato relembra como o golpe de 1964 interrompeu o avanço da distribuição de terras no país a partir de três perspectivas: a atuação das ligas camponesas no Nordeste; o surgimento do sindicalismo rural; e a experiência histórica do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) no sul do Brasil.
Concentração fundiária: da colônia a ditadura
Um dos traços do campo brasileiro, a concentração fundiária, é uma chaga que se acentua no regime militar mas tem raízes profundas no período escravista. A distribuição de terras era uma das bandeiras de parte do movimento abolicionista, no final do século 19.
Após o fim da ditadura Estado Novo, o panorama do meio rural brasileiro mantinha o controle absoluto dos trabalhadores no interior das propriedades rurais, a mando de grandes latifundiários. Com a Constituição liberal de 1946, o país vivia uma democracia tímida, que não comportava, por exemplo, o voto dos analfabetos. Isso impedia muitos camponeses de elegerem seus representantes.
É neste contexto que a defesa da reforma agrária começa a surgir com mais força e por influência do Partido Comunista Brasileiro. Em 1954, a partir do PCB, é criada a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), que ganhou protagonismo produzindo jornais e promovendo greves, cursos de formação, e denunciando abusos de latifundiários contra os camponeses.
Na época, os interesses estadunidenses na América Latina prosperavam por meio de uma relação com alguns ditadores, como Fulgencio Batista, em Cuba; Alfredo Stroessner, no Paraguai; e o General Anastácio Somoza Garcia, na Nicarágua. No Brasil, os Estados Unidos prestavam mais atenção no Nordeste, onde as Ligas Camponesas mobilizaram multidões de camponeses em resposta à extrema desigualdade.
Em 4 de maio de 1955, sob a liderança do advogado Francisco Julião, a entidade promoveu a Marcha da Fome, reunindo centenas de trabalhadores rurais para denunciar ao governo de Pernambuco a situação de miséria e violência a que eram submetidos. No mesmo ano, também foi realizado o 1º Congresso de Lavradores, Trabalhadores Agrícolas e Pescadores, com a presença de seis mil camponeses.
Em 1957, um levantamento feito pela Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FA0) concluiu que o consumo médio diário de alimento no Nordeste era do montante de apenas 1990 calorias, consideravelmente abaixo das mínimas recomendadas, de 2500. No setor sul da zona de açúcar de Pernambuco, havia camponeses consumindo somente 1.299 calorias diárias.
“Os americanos achavam que o germe do comunismo era a pobreza. Então se essas pessoas começassem a se organizar, começaria a ficar complicado”, explica o escritor e jornalista Vandeck Santiago, autor da principal biografia de Francisco Julião.
A vitória de Julião na Assembleia Legislativa de Pernambuco com a desapropriação do Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, e a conquista da terra por parte de 140 famílias foi o terreno fértil para a expansão da entidade para outros estados. No final dos anos 1950, as Ligas Camponesas já aglutinaram 70 mil associados em todo o Nordeste.
Até então, as ligas atuavam prioritariamente no âmbito jurídico. Mas a partir de 1959, sob influência da revolução cubana e da visita de Julião à Cuba, entra em vigor a defesa de um modelo de Reforma Agrária mais radical. O lema dos camponeses era a posse da terra “na lei ou na marra”.
“Cuba é um país com uma predominância rural. E de repente em três anos fizeram uma revolução. Então, aqui também poderia eclodir algo desse tipo. E isso começaria com as pessoas mais pobres, com o pessoal do campo, para ir se organizando e reivindicando”, relembra Santiago.
A experiência do Master
Simultaneamente no Rio Grande Sul, com a eleição de Leonel Brizola, em 1958, eram estreitados os laços do estado com as demandas camponesas. O governo do petebista cria o Instituto Gaúcho da Reforma Agrária (Igra) e passa a dar suporte aos acampamentos liderados pelo Movimento de Agricultores Sem Terra (Master), criado em 1960.
Em vários municípios gaúchos, o Master passou a mobilizar associações de trabalhadores rurais e utilizar uma estratégia então praticamente inédita na luta pela terra: os acampamentos.
A tática consistia na criação de acampamentos nas margens de terras consideradas devolutas ou improdutivas. E com base nos artigos 173 e 174 da Constituição do Rio Grande do Sul, desapropriar essas áreas por vias legais.
Em 1962, 20 mil hectares foram desapropriados e distribuídos entre 10 mil agricultores da região de Sarandi, noroeste do Rio Grande do Sul. Na época, por influência do Master, os próprios produtores mecanizados de arroz e trigo no estado passaram a acreditar que a reforma agrária pudesse modernizar a agricultura local.
O movimento antecipou, no Rio Grande do Sul, as propostas e estratégias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na luta pela reforma agrária, que seria criado em 1984 após a retomada das lutas sociais no campo no fim da década de 1970. Tanto os acampamentos do Master, como as ocupações de engenhos promovidas pelas Ligas Camponesas são formas táticas de luta ainda hoje usadas pelo MST.
“O MST continuou fazendo ocupações de terra. Não por achar bonito. Não é fácil viver embaixo de lonas, embora haja beleza nas lutas, mas é a forma mais eficiente para mostrarmos para a sociedade e o governo: um, que existem famílias querendo terra para plantar e para viver; dois, que existem latifúndios improdutivos de grandes devedores, de violadores das legislações ambiental e trabalhista, trabalho análogo à escravidão, que existem terras públicas que não cumprem com a função social; e três, que a conquista dessas áreas é fruto do povo organizado”, explica Gilmar Mauro, da Direção Nacional do MST.
Jango no poder
A eleição de João Goulart, grande aliado de Brizola, colocou ainda mais a reforma agrária no centro do embate político que antecedeu o golpe militar. Jango, assim como a ala mais combativa do PTB, divergia das Ligas Camponesas e de Julião em relação a implantação de uma reforma agrária mais radical, a partir de desapropriações. A distribuição de terras para o presidente deveria ser colocada com a mudança da constituição de 1946.
Legalmente, o governo federal não tinha como desapropriar terras sem pagar ao dono uma indenização em dinheiro. O que na prática, pelo alto custo, inviabilizaria o processo. A proposta de Jango permitiria a desapropriação de terras com pagamento a longo prazo, na forma de títulos da dívida agrária.
O presidente, em 1963, sancionou o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR). O documento deu acesso à sindicalização, aposentadoria e férias para os trabalhadores rurais, direitos antes limitados somente a quem vivia no meio urbano.
No mesmo ano, surgia a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a primeira entidade sindical do campo de caráter nacional e que aglutinava – e ainda aglutina – as principais federações de trabalhadores rurais no país. As pautas centrais da entidade eram a aplicação do ETR, sobretudo da carteira profissional e direito à previdência; e a distribuição de terras.
Em entrevista para o jornal Terra Livre em janeiro de 1964, logo após a eleição que o tornou o primeiro presidente da entidade, Lindholfo Silva expôs como a reforma agrária seria um dos pilares da confederação
“Aqui nessa entrevista do Lindolfo Silva, a gente já percebe uma perspectiva de ações mais processuais para a realização da reforma agrária. A modificação da constituição, a realização dos títulos definitivos para posseiros, a regulamentação de contratos de arrendamento e parceria, ou seja, a questão agrária, a questão fundiária, estava sendo debatida. Era impossível não se debater sobre isso naquele momento”, explica o pesquisador da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, Marco Antônio Teixeira, que também é o autor do livro Contag 1963-2023: ações de reprodução social e formas de ações coletivas.
Apoio ruralista ao golpe
O contexto do campo já era violento. O Master vinha sendo perseguido pelas forças militares de Ildo Meneghetti, que sucedeu Brizola no governo do Rio Grande do Sul em 1963. João Pedro Teixeira, principal líder das ligas camponesas na Paraíba, havia sido brutalmente assassinado em 1962 a mando do Grupo da Várzea – fazendeiros que detinham poder político e grandes extensões de terras na Paraíba.
Para latifundiários e políticos opositores de Jango articulados na Sociedade Rural Brasileira, que tinha uma forte articulação entre os cafeicultores paulistas e paranaenses; na Confederação Rural Brasileira, que juntava as organizações patronais, e na Sociedade Nacional da Agricultura; falar de reforma agrária era evocar o fantasma de uma conspiração Comunista Internacional.
“Era um conjunto de proprietários tecnologicamente atrasados mas muito ativos politicamente. Essas entidades eram extremamente ativas com representação no Congresso Nacional e atuando em entidades da sociedade civil que foram absolutamente chaves para explicar o golpe, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que agrupava empresários rurais e urbanos”, explica Leonilde de Medeiros, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e integrante da Comissão Camponesa da Verdade.
“Quando a gente olha o pós golpe e as políticas, a gente vai ver que esse programa das entidades patronais foi praticamente abraçado pelos militares. Não são os militares que inventam a política, eles abraçam um programa que já estava articulado”, completa Medeiros.
O último ato de Jango
O descontentamento dos setores conservadores e militares chegou ao limite com o comício do presidente na Central do Brasil. No mesmo palanque de madeira em que Getúlio Vargas discursava ao povo carioca, Jango anunciou para um público de 200 mil pessoas os decretos das reformas de base, entre elas a reforma agrária. Entre as medidas, estava a desapropriação de diversas terras à beira de estradas e ferrovias federais num prazo de dois meses.
“Quando a gente fala em rodovias nos anos 1960 o que pesa é a Belém Brasília, que é uma rodovia que corta o interior do país. E em torno da Belém em Brasília obviamente as terras eram extremamente valorizadas, por conta da estrada. Então quando ele fala em utilizar as terras à beira das rodovias pra realização de reforma agrária isso obviamente cria uma enorme polêmica a oposição que vai resultar na na queda de João Goulart”, relembra Leonilde.
Dezoito dias depois do Comício das Reformas, Jango seguiu para o exílio após a deflagração do golpe, que iniciou um longo período de perseguições aos movimentos do campo e entidades sindicais. O golpe fortaleceu as oligarquias rurais em todo o país. Em pouco tempo, as Ligas Camponesas e o Master seriam desarticulados pelas mãos da Ditadura Civil-Militar.
Em abril de 1964, o governo militar interveio na Contag, prendendo diversos integrantes da primeira diretoria eleita, e afastando o presidente Lyndolpho Silva, que foi obrigado a se exilar fora do país. Em seu lugar, foi nomeado como interventor o então presidente da Federação de São Paulo, José Rotta.
“Teve um movimento com muita força surgindo naquele momento, criando sindicatos e federações, e isso é absolutamente interrompido. As intervenções são um baque muito forte na organização. A própria bandeira da reforma agrária, ficou difícil debater, porque era uma pauta muito associada ao comunismo”, relembra Marco Antonio Teixeira.
“Isso diz respeito a nós como nação”
A pesquisadora Maria Cristina Vanucchi Leme foi uma das autoras do relatório produzido pelo MST em 1986, intitulado Assassinatos no Campo: crime e impunidade (1964-1985). Esse foi um dos primeiros documentos a sintetizar a violência sofrida pelos camponeses durante a ditadura, e ajudou a subsidiar trabalhos posteriores sobre o tema, como o relatório da Comissão Camponesa da Verdade, criada em 2012, e o de Gilney Viana, lançado no mês passado.
Vanucchi, que é irmã do estudante Alexandre Vannucchi – assassinado por agentes do DOI-Codi paulista durante a ditadura militar – relata logo na introdução a dificuldade em buscar informações sobre as mortes no campo em meio ao silencio dos jornais, sobretudo nos período entre 1964 e 1976. Para chegar a informações precisas, precisou enviar cartas a 2640 sindicatos rurais e 260 dioceses brasileiras, e às 19 regionais da Comissão Pastoral da Terra, onde trabalhou.
“Ela [a ditadura] é uma realidade tão dura, tão cruel, que persiste até hoje. Os 21 anos de ditadura, seja na cidade, ou no campo, não dá pra gente imaginar essa utopia de não existiu. Na verdade, os trabalhadores organizados não tinham nem utopia, eles tinham um ideal mesmo, de reforma agrária, de partilha de terra”, pontua Vanucchi.
Somente em 7 de setembro de 1964, a pesquisa, que também é assinada por Wania Mara de Araújo, revela o assassinato de 3 lideranças das Ligas Camponesas na Paraíba e em Pernambuco, e o desaparecimento de 6 presidentes de sindicatos rurais em municípios do Rio Grande do Norte.
“Eu acho que a gente tem que tentar de todas as maneiras interferir na indiferença da sociedade com essa realidade. E naquela época eu considerava de maneira geral que a sociedade era indiferente a essa violência. Infelizmente, eu continuo achando que boa parcela da população brasileira é indiferente a essa violência. É como se acontecesse lá longe, lá no campo. Não consegue observar que o que acontece no campo impacta na vida de todo o povo brasileiro”, explica a pesquisadora.
“Isso diz respeito a nós como nação. Repudiar essa violência, denunciar esses crimes, esse desrespeito. Não é só pelos familiares de quem foi assassinado. Essa violência tem que ser sentida e cobrada por todos nós como brasileiros. O estado brasileiro deve essa satisfação para o povo brasileiro”, completa Vannucchi.
O estatuto da terra e o avanço do latifúndio
Em novembro de 1964, uma das primeiras medidas do ditador Castelo Branco foi criar o Estatuto da Terra, que instituiu a função social da propriedade. Apesar de modernizar a questão fundiária e inspirar o Artigo 186 da constituição de 1988, a face prática do Estatuto da Terra foi o desenvolvimento agrícola e a expansão do latifúndio, com incentivos fiscais e outras formas de proteção governamental.
“Sem dúvida, o período da ditadura é um período que vai estimular por vários mecanismos a modernização das áreas antigas, principalmente via mecanismo de crédito, assistência técnica, cooperativas, os instrumentos do Estatuto da Terra. Mas também vai estimular a ocupação das áreas novas. Aí nós estamos falando da chamada fronteira agrícola, Goiás, Mato Grosso, Pará, Tocantins, regiões que praticamente não tinham visibilidade”, pontua Leonilde de Medeiros.
“Especialmente em 1966 e 1967, a virada do Castelo Branco para o Costa e Silva, vai assumir esse projeto das entidades empresariais. Nisso, se enquadra o Sistema Nacional de Crédito Rural e o sistema de extensão rural e assistência técnica que é voltado neste momento principalmente para as grandes unidades produtivas. Mas o grande destaque é a Embrapa, que vai ser o centro de pesquisa que permite a ocupação do Cerrado pela soja. Nos anos 1950 e 1960 soja no cerrado era algo que não existia”, completa a professora.
Os efeitos foram sentidos entre 1960 e 1980: 120 milhões de hectares foram incorporados à produção agropecuária no Brasil e milhões de trabalhadores do meio rural passaram a se aglomerar nas cidades.
“Ditadura não é alguma coisa que ficou pra trás. Eu acho que a conformação da nossa sociedade, não só no campo, mas urbana também, ela tem seus fundamentos, o seu desenho central com raízes na ditadura. Essa urbanização desenfreada não caiu do céu. Esse inchamento das cidades é gente do campo que foi expulsa”, explica Leonilde.
“Essas comunidades periféricas sem infra estrutura dão um pouco o panorama das cidades médias e grandes hoje do Brasil. Não dá pra tentar a questão agrária sem a questão urbana. São faces da mesma expansão desenfreada do capital, seja produtivo, seja especulativo, seja financeiro, seja tudo isso misturado”, finaliza a professora.
Gilmar Mauro completa trazendo o aspecto atual do modelo agrícola agroexportador que encontrou na ditadura um campo fértil para sua hegemonização.
“Atualmente no país, dos 850 milhões de hectares de terra apenas 80 milhões são usados para a agricultura familiar. Destes, 21 milhões de hectares com milho, 45 milhões de hectares com soja, restando apenas 14 milhões de hectares de terra para todos os demais cultivos, como feijão, arroz, batata e mandioca. Somente em pastagens, são 150 milhões de hectares”, explica o dirigente do MST.
“É mais que uma Reforma Agrária, é uma revolução na agricultura brasileira e mundial, não só pela necessidade da categoria Sem Terra, pela necessidade da sobrevivência humana no nosso planeta”, finaliza Gilmar Mauro.
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