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/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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“Imprensa foi grande entusiasta do golpe de 1964 e da ditadura”, diz historiador João Teófilo

Veículos da Folha de S. Paulo "emprestados" à ditadura foram incendiados por militantes de esquerda. Créditos: Reprodução/Arquivo
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No marco de 60 anos do golpe militar no Brasil, Fórum entrevista o historiador João Teófilo, que crava: “A grande imprensa foi, em geral, mais apoiadora da ditadura do que o contrário”

Quando se estuda a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), seja na escola, na universidade, por meio de livros ou filmes, a questão da censura à liberdade de expressão e à imprensa consta como uma das principais ferramentas do regime em prol de sua manutenção no poder.

Com relação à imprensa especificamente, muito se fala sobre a censura aos jornais e perseguição a jornalistas, e logo vem à mente a figura de Vladimir Herzog, que em 1975 foi preso, torturado e assassinado nas dependências do Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo.

Se é verdade que jornais e jornalistas foram censurados, perseguidos e torturados, tal como Vlado, é também inconteste que a maior parte da chamada ‘grande imprensa’ apoiou a ditadura civil-militar brasileira. Até mesmo veículos que sofreram censura. E não só silenciando sobre as atrocidades cometidas pelos militares ou publicando matérias e editoriais elogiosos às medidas do governo dos anos de chumbo, mas fornecendo até mesmo apoio material, como o notório caso da Folha de S. Paulo, que emprestou seus carros à Operação Bandeirante, a Oban, um centro de investigações do Exército que combatia organizações de esquerda.

As relações entre imprensa e ditadura militar no Brasil são exatamente o objeto de estudo do professor e historiador João Teófilo. Mestre em História Social pela PUC-SP e membro do Núcleo de Estudos Culturais: História, Memória e Perspectiva de Presente (NEC) da universidade, Teófilo é doutor em História pela UFMG e autor do livro “Nem tudo era censura: imprensa, Ceará e ditadura militar” (2019).

Em entrevista à Fórum, ele explica não só como se dava a censura ao jornalismo na ditadura, bem como detalha quais eram os veículos mais perseguidos e analisa o papel de colaboração de setores da imprensa ao regime da época.

“Diferentemente do que sugere certa memória de uma imprensa oprimida pela censura, a grande imprensa foi, em geral, mais apoiadora da ditadura do que o contrário. Embora tenha havido episódios de censura prévia, os atritos foram pontuais. No geral, ela foi uma grande entusiasta do golpe e da ditadura”, sentencia o historiador.

Confira a íntegra da entrevista:

Fórum – Como a ditadura civil-militar brasileira atacava especificamente a liberdade de imprensa? Quais eram as principais estratégias e estruturas de controle? 

João Teófilo – A imprensa foi bastante atacada após o golpe de 64. Não somente a imprensa escrita propriamente, mas rádio e televisão também foram afetados. Sem contar as manifestações artísticas, como teatro, cinema e música. Sobretudo porque preocupava a ditadura fazer a defesa da chamada moral e dos costumes. Quer dizer, a liberdade de expressão estava sendo tolhida nas mais diferentes áreas, de modo que se expressar virou uma atividade de risco.

Não que em outros momentos da história, é importante falar, isso não tenha acontecido. O mesmo se deu, por exemplo, no período do Estado Novo de Getúlio Vargas. Mas a ditadura militar aperfeiçoou esses ataques e os instrumentos censórios. Eu concordo com o historiador Carlos Fico, que é professor da UFRJ, quando ele afirma em alguns de seus trabalhos que a censura no Brasil não foi estabelecida propriamente durante a ditadura. Mas os militares fizeram uma adequação.

Então, para os militares, tratou-se muito mais de uma adequação e não de uma criação. No caso da imprensa, esse ataque ocorreu, sobretudo, por meio da censura. Embora também a gente possa citar perseguição a jornalistas, depredação de redações em determinados momentos, pressão econômica. E ainda que, ao longo da ditadura militar, embora a atividade censória tenha variado de intensidade, ela foi praticada desde o princípio. Foram criadas estruturas de controle que foram aperfeiçoando essa atividade censória.

E a gente pode citar, por exemplo, a lei de imprensa. Essa lei de imprensa, que é a Lei nº 5.250, de fevereiro de 1967, já foi editada pelo primeiro ditador, Castelo Branco. Entre outras coisas, ela passou a considerar crime as publicações que faziam propaganda dos processos de subversão da ordem política e social. Foi uma lei que, em termos gerais, restringiu a liberdade de expressão. Posterior a isso, podemos citar também o ato institucional nº 5, o AI-5, de dezembro de 1968, que foi editado pelo ditador Costa e Silva. E o AI-5 permitiu uma atividade censória mais sistemática. Ele instituiu a censura prévia, que seria formalizada a partir de uma portaria publicada em 1970. Os jornais que ofereciam maior resistência à ditadura tiveram de conviver, em muitos casos, com um censor em suas redações, que estava ali acompanhando a atividade jornalística, mesmo antes do  jornal ser publicado. Então, nesse rol da censura prévia, podemos citar jornais como o Tribuna da Imprensa, o Pasquim, Opinião. O próprio Estadão, que era um jornal amigo da ditadura, também não esteve a salvo da censura prévia. Além dessa censura prévia, a censura também era feita por meio do envio dos famosos ‘bilhetinhos’.

Esses ‘bilhetinhos’ tinham determinações sobre o que não poderia ser publicado. Mas a censura se dava também, em algumas ocasiões, através de telefonemas que eram feitos para as redações dos jornais. E essas atividades eram realizadas por um setor chamado Seviço de Informação do Gabinete (SIGAB), que era do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal.

Muitos jornais, jornalistas, foram censurados, perseguidos, sobretudo aqueles ligados à chamada imprensa alternativa. Basta lembrar que, em 1970, por exemplo, a maior parte da redação do Pasquim, que provavelmente é um dos maiores representantes dessa imprensa alternativa, foi presa porque publicou uma sátira do famoso quadro do imperador Dom Pedro I, Às margens do Rio Ipiranga.

E há quem tenha sido morto pela ditadura em decorrência das torturas praticadas pelos agentes da repressão. E o caso mais marcante foi o do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975, em pleno período de abertura política. O que não significa, necessariamente, que tenha sido um período mais brando, apesar de haver, por parte do regime, promessas de liberalização.

Quais jornalistas ou veículos mais perseguidos você elencaria?

O jornal mais visado pela ditadura foi o Pasquim. Não só o Pasquim, aliás, o Pasquim e todos os seus colaboradores jornalistas foram bastante perseguidos. Não por acaso, eles tiveram parte da redação presa, o que é bastante significativo e evidencia o nível de perseguição. Mas a gente pode citar também jornais como o Movimento, Lampião da Esquina, enfim, todos esses jornais que compunham a imprensa alternativa, que tinham como traço característico uma oposição intransigente à ditadura militar, foram mais visados pela ditadura e pelos militares.

Quais veículos você citaria que prestaram apoio mais notório, de um jeito ou de outro, ao regime militar? E como essa colaboração se manifestava?

Para começo de conversa, é importante colocar que os principais veículos da chamada grande imprensa apoiaram não apenas o golpe, mas também a ditadura ao longo de sua vigência. A grande imprensa foi um elemento central na coalizão civil-militar que atuou para a derrubada do presidente João Goulart em 1964. Podemos citar o Globo, o Estadão, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo. São jornais que tiveram um papel importante nesse apoio. Há vários outros, mas estou citando aqui os que considero principais. Mas não somente esses jornais no eixo Rio-São Paulo. Podemos citar, por exemplo, o jornal Zero Hora, do Sul, e o jornal O Povo, no Nordeste, que foi um dos veículos estudados no meu livro “Nem tudo era censura”, que trata do apoio da imprensa à ditadura.

Diferentemente do que sugere certa memória de uma imprensa oprimida pela censura, a grande imprensa foi, em geral, mais apoiadora da ditadura do que o contrário. Embora tenha havido episódios de censura prévia, os atritos foram pontuais. No geral, ela foi uma grande entusiasta do golpe e da ditadura. Isso não significa que esses jornais que apoiaram o regime não tiveram atritos com a censura, mas isso não os colocava no campo de oposição ou de resistência à ditadura, pois as relações são muito mais complexas e não se resumem a leituras binárias ou simplistas.

Esse apoio manifestava-se, por exemplo, por meio da divulgação de editoriais que legitimavam as ações golpistas, endossando a campanha pela desestabilização do governo João Goulart e criando um clima favorável na opinião pública para que o golpe acontecesse. Também se manifestava por meio da condenação das atividades de oposição à ditadura, criticando o comunismo e as esquerdas em geral, e, claro, por meio do apoio às propostas da ditadura e aos próprios ideais que nortearam a chamada ‘Revolução de 1964’.

Além disso, houve apoio material, como o fornecimento de veículos pelo Grupo Folha à Operação Bandeirante (Oban), um centro de investigações ligado ao Exército que combatia organizações de esquerda. Esses veículos eram utilizados na repressão, conforme relatado pela historiadora Beatriz Kushnir em seu livro “Cães de Guarda”. Essa versão foi corroborada pela Comissão Nacional da Verdade em 2014.

E não era apenas uma questão de apoio ideológico; havia também compensações financeiras por meio de anúncios governamentais, o que indica um interesse material envolvido. Muitos grupos de comunicação prosperaram durante a ditadura, como o Grupo Globo, sendo um exemplo clássico de um grupo de comunicação que se expandiu significativamente durante esse período.

Hoje, muitos desses veículos que você citou, que colaboraram com a ditadura de alguma maneira, se colocam como defensores da democracia. Inclusive usam isso em propaganda, para vender o jornal. Como enxerga esse movimento? 

Esse movimento pode ser visto como uma operação de construção de memória, na qual esses jornais tentam forjar para si uma imagem de defensores da democracia que nem sempre corresponde à realidade factual. Essa construção de memória tende a silenciar o apoio ao regime militar e destaca os momentos em que a imprensa combateu a ditadura ou teve atritos com ela, o que faz parte de uma narrativa que nem sempre reflete a complexidade das relações entre imprensa e poder durante esse período da história brasileira.

Eu percebo que há muito disso, a construção de uma memória que acaba silenciando sobre esses apoios e põe em evidência justamente esses momentos em que a imprensa combateu a ditadura, teve atritos com a ditadura. Folha de S. Paulo fez isso, o Globo fez isso. São jornais que se dizem a favor da democracia, mas até há pouco tempo estavam colaborando e sustentando regimes que, de democráticos, não têm nada.

Qual considera que tenha sido o papel da imprensa no processo de redemocratização do país?

Falando em grande imprensa, num processo de redemocratização com a ditadura já bastante desprestigiada socialmente, muitos desses jornais se adaptaram às mudanças que estavam acontecendo. É possível perceber que a defesa da volta ao Estado Democrático de Direito ocorreu sem, no entanto, esses jornais se colocarem contra os princípios que sustentaram a ditadura. A grande imprensa foi mais favorável ao projeto de abertura política da ditadura, mas se contrapôs a outras forças sociais que demandavam uma transição mais acelerada e com maior participação da sociedade. Muitos jornais defenderam uma anistia que não punisse os torturadores, refletindo o projeto de anistia da ditadura, que não era o mesmo projeto demandado pelos movimentos sociais que ocuparam o Brasil desde meados dos anos 70.

No contexto da campanha das Diretas Já, por exemplo, alguns jornais surfaram nessa onda, como foi o caso da Folha de S.Paulo, que foi o primeiro jornal a encampar a luta pelas diretas. Era oportuno ser a favor da saída dos militares do poder, mas muitos entenderam que o saldo de duas décadas de ditadura militar havia sido positivo para o país.

Assim, em termos de grande imprensa, esses jornais se colocaram a favor da redemocratização, mas sob certos termos. É necessário analisar isso criticamente para não endossar uma narrativa que coloca a imprensa como defensora intransigente da democracia, uma vez que a questão é mais complexa e envolve diversas camadas que precisam ser destacadas. Isso é particularmente verdadeiro para a grande imprensa, pois, se considerarmos a imprensa alternativa, esses jornais estavam o tempo todo fazendo uma oposição sistemática e contundente ao regime, embora não tivessem a mesma penetração social e disseminação que os veículos da grande imprensa.

Você acredita que há, ainda hoje, algum tipo de ‘resquício’ dessa relação entre ‘grande imprensa’ e poder? 

Eu não diria que é propriamente um resquício, mas sim um traço característico da grande imprensa: a aproximação com os donos do poder e seus interesses. Isso acontece não apenas durante a época da ditadura, mas também agora. A mesma imprensa que se autoproclama democrática e defensora dos princípios da democracia, muitas vezes não hesita em apoiar candidatos que representam uma ameaça séria aos princípios democráticos, desde que esses candidatos atendam aos seus interesses. Portanto, há uma relação de proximidade entre os grandes grupos de comunicação e os detentores do poder, e isso não é algo novo.

Como a história da ditadura militar brasileira e sua relação com a imprensa pode servir de bússola para o futuro, para que fenômenos como a própria ditadura militar não se repitam no Brasil? 

É essencial reconhecer que não há democracia sem uma imprensa livre. Mas essa imprensa também não deve sustentar nem apoiar forças políticas que visem ao fim da democracia. Por muito tempo, acreditou-se que nossa democracia estava consolidada e que estávamos em outro patamar, acreditando que fantasmas do passado não mais nos ameaçariam. No entanto, os últimos anos mostraram que a realidade é diferente.

Curiosamente, a mesma imprensa que apoiou a ditadura, durante o governo de Jair Bolsonaro, passou a enfrentar ataques sistemáticos. Nos últimos anos, houve uma deterioração significativa da liberdade de imprensa, com jornais sendo atacados e a atividade jornalística se tornando mais desafiadora. Isso demonstra que a liberdade de imprensa não está garantida de forma absoluta e que, periodicamente, podemos enfrentar situações semelhantes às da ditadura militar. O desafio, portanto, passa pela defesa intransigente da democracia, pois sem democracia não há imprensa livre e vice-versa.

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