Trabalhadores de apps: ‘Não é possível que tecnologias do século 21 coexistam com condições do século 19’, diz diretor da OIT
Ao defender a necessidade da regulação do trabalho em plataformas, o diretor do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o Brasil, Vinícius Pinheiro, diz que novas regras não afastariam empresas do país.
“Acho difícil que uma plataforma saia de um país como o Brasil, porque é um mercado muito grande”, disse, em entrevista à BBC News Brasil, após ser questionado sobre o argumento de que normas para a relação de entregadores e motoristas com as plataformas poderiam levar à saída de empresas.
Para Pinheiro, que é economista, a regulação não barra o avanço tecnológico.
“Claro que é necessário um ambiente favorável à inovação, mas não vejo a regulação e a adequação às necessidades humanas como barreiras. Pelo contrário. A tecnologia tem que servir às pessoas, e não as pessoas servirem à tecnologia. Ela está aí para criar mais bem-estar.”
O governo brasileiro discute, em um grupo de trabalho composto por integrantes do Ministério do Trabalho e representantes das empresas e de trabalhadores do setor, uma proposta para regular as atividades executadas por meio de plataformas.
A expectativa era de que a proposta estivesse pronta antes da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Nova York. No entanto, ainda não houve acordo sobre todos os pontos da proposta a ser encaminhada ao Congresso, que deve abranger regras para pontos como jornadas, remuneração e proteção social dos trabalhadores.
Pinheiro comemorou a declaração conjunta dos presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e dos EUA, Joe Biden, sobre trabalho. E evitou um comentário assertivo sobre a mais recente fala de Lula sobre trabalhadores de aplicativos, de que se trata de trabalho “quase escravo”.
Após elencar pontos que arrastam, internacionalmente, a definição das regras para trabalhadores de aplicativo, Pinheiro afirmou que, enquanto não se chega a uma conclusão, “há uma expansão de negócios”, com grandes lucros, que “geram um sistema de lobby que acaba favorecendo, em alguns casos, a falta de ação por parte de governos”. E lembrou que, em muitos casos, a decisão tem ficado nas mãos do Judiciário.
Pinheiro assumiu o comando do escritório da OIT para o Brasil em janeiro de 2023. Também foi diretor regional da OIT para a América Latina e Caribe de 2020 a 2022.
Antes, foi diretor do escritório da OIT para as Nações Unidas em Nova York. No Brasil, foi secretário da Previdência Social durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida por vídeo à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil – Relatório da OIT de 2021 menciona que o número de plataformas digitais de trabalho quintuplicaram em todo mundo na última década e fala em uma necessidade de coordenação e diálogo político internacional para garantir regulação e aplicação de normas internacionais de trabalho. O sr. viu avanços nesse sentido nesses dois anos?
Vinícius Pinheiro – É fundamental reconhecer o papel das plataformas. Primeiro, em facilitar a vida dos consumidores – e isso ficou muito explícito durante a pandemia. Segundo, também como absorção de mão de obra. Em muitos casos, as pessoas perderam emprego, não podiam mais trabalhar em suas ocupações tradicionais, e foram absorvidas dentro dessas novas modalidades de trabalho.
Por outro lado, elas cresceram e continuam a crescer em um ambiente sem regulação em relação a normas trabalhistas. Em muitos casos, não se sabe qual o status dos trabalhadores – no Brasil e em nível global.(…) Há essa discussão se são trabalhadores empregados, se são trabalhadores autônomos ou são uma categoria nova, especial. Essa definição precisa levar em conta a autonomia e as implicações em termos de direitos e garantias.
Outro ponto é a precarização das condições de trabalho – a falta de uma jornada de trabalho adequada, a falta de políticas de saúde e segurança, inclusive com acesso aos benefícios da proteção social e previdência. E isso tem implicações muito graves, em especial, quando se fala de um setor que está extremamente exposto ao risco de acidente, como no caso das plataformas de entrega, que têm taxa de acidente altíssima entre motoboys.
Por fim, há a questão da falta de transparência dos algoritmos – em grande parte das plataformas, as pessoas não têm a mínima ideia de como funcionam os algoritmos, como eles afetam as condições de trabalho, a remuneração, a jornada de trabalho, a alocação de tarefas.
O algoritmo hoje é uma espécie de contrato de trabalho implícito. O sujeito entra numa numa relação desigual, que ele não tem muito controle. Você entra e não sabe exatamente qual a remuneração – não sabe se a plataforma, em uma entrega, vai cobrar 15%, 25%, 30%, porque depende do horário etc. E não sabe como será a alocação de tarefas – com mecanismo de pontuações, as plataformas definem quem vai efetuar a tarefa, e isso define o número de tarefas, que vai definir a renda. Então, quando um motoboy ou um motorista começa a trabalhar, não sabe quanto vai ganhar no final do dia e não sabe se vai ser chamado. Porque depende da demanda, mas depende dos critérios de alocação, que não são transparentes.
Esses pontos estão em aberto e necessitam regulação porque não é possível que tecnologias do século 21, que são as mais modernas, coexistam com condições de trabalho do século 19. Por isso que temos observado esforços em vários governos para a regulação do trabalho em plataformas.
BBC News Brasil – A que o sr. se refere quando fala em condições do século 19?
Pinheiro – Condições extenuantes, jornadas excessivas, baixos salários – além da falta de previsibilidade. Em Nova York, no começo do século, os trabalhadores iam para uma praça e chegavam os arrendatários precisando de alguém para descarregar um navio, ou para construir algo, aí naquele dia você tinha distribuição de tarefas e pagamento, mas ninguém sabia se ia trabalhar ou não.
BBC News Brasil – Quando o sr. aponta o algoritmo como um contrato de trabalho, isso é uma leitura de que essa pessoa é um empregado? O cerne da discussão em todo o mundo é se esses trabalhadores devem ser enquadrados como empregados, autônomos ou numa terceira nova categoria. Qual é sua visão?
Pinheiro – A OIT não tem uma posição institucional sobre isso.
Quando comparamos a um contrato de trabalho, o algoritmo é totalmente obscuro. Mesmo o autônomo tem um contrato de trabalho, você tem termos claros do que será entregue e a remuneração que será feita.
O autônomo pode aceitar ou não, o trabalhador pode buscar outro emprego se ele quiser, mas no caso da relação entre o trabalhador de plataforma e as plataformas, esses termos não são explícitos. Meu ponto é a transparência do algoritmo.
BBC News Brasil – Vários países caminham em direções diferentes em relação à regulamentação do trabalho de motoristas e motoboys para plataformas. Há intenção de pressionar por uma regulação global sobre o tema, já que são empresas globais e um desafio também global?
Pinheiro – Essa discussão está na OIT. Hoje você já tem um grupo de trabalho revisando as regulações e está prevista – em algum momento e ainda não se sabe exatamente quando porque isso depende também de como o debate avança nível mundial – a elaboração de instrumento sobre esse tema, que pode acontecer ou não pode, dependendo do acordo entre as partes (trabalhadores, empregadores e governos).
Entre os pontos que nos parecem fundamentais em termos de diretrizes, primeiro está a questão da transparência dos algoritmos. Para que eles mesmos (trabalhadores) possam tomar decisões – se ele sabe que vai ser punido se não trabalhar final de semana ou tal hora, ele vai fazer esse cálculo dentro da sua própria vida e vai dizer se vale ou não vale a pena.
Isso garante segurança jurídica para as próprias empresas também, além de assegurar mecanismos claros de resolução de conflitos.
E independente se vão ser (enquadrados como) trabalhadores autônomos ou assalariados, há alguns critérios mínimos que têm que ser respeitados, como acesso à seguridade social. E isso pode ser assegurado inclusive por descontos feitos pelas próprias plataformas.
E medidas claras de proteção à saúde e segurança no trabalho. Além disso, horários adequados – que permitam flexibilidade, mas também condições mínimas, como um máximo de horas para a atividade, com períodos de descanso, que são fundamentais – e uma discussão sobre remuneração mínima em uma corrida, por exemplo.
É importante reconhecer também que é um sistema muito complexo, por exemplo, o nível de exposição a riscos – o de uma pessoa que trabalha no delivery, com moto, é muito maior do que quem trabalha com transporte de passageiros. Tem também diferenças regionais. Tudo isso tem que ser levado em conta quando você analisa a legislação para não engessar muito os modelos de organização.
BBC News Brasil – A fala do sr. deixa clara a leitura de que é fundamental ter regras nesse campo e, se esse é um problema no mundo inteiro, por que não existe uma orientação mais detalhada da OIT sobre esse tema? O que dificulta chegar a esses termos?
Pinheiro – É um fenômeno recente, que requer uma compreensão maior, e que você tem também uma complexidade interesses que é bastante difusa.
Entre os trabalhadores, há interesses competitivos, há também problemas de representação – as modalidades de representação tradicionais, de sindicato, são menos porosas para absorver esse tipo de representação. E, da mesma forma, a representação dos empregadores. As plataformas, que se autodeclaram empresas de tecnologia, não são absorvidas pelos sistemas tradicionais, então é difícil identificar quem representa quem e colocar todos na mesa.
E, enquanto isso não se resolve, é claro que há uma expansão de negócios, gerando lucros, que são milionários, e isso gera um sistema de lobby que acaba favorecendo, em alguns casos, a falta de ação por parte de governos. Em muitos casos, esses temas têm sido resolvidos pelo sistema judiciário. Aí você gera um problema, que gera uma ação, e o judiciário acaba sendo convidado a se pronunciar sobre isso.
Para que a OIT elabore uma norma, já é necessário ter as experiências nacionais. A norma é elaborada a partir de experiências que se mostraram bem sucedidas. Então por isso que tem o seu tempo. Mas quando ela vem, vem com força e com legitimidade.
BBC News Brasil – Os presidentes do Brasil e dos EUA, Lula e Biden, divulgaram na quarta-feira uma declaração conjunta que não cita aplicativos diretamente, mas menciona brevemente uma preocupação com efeitos da digitalização das economias no trabalho. Como o sr. avalia essa declaração e o que os dois países poderiam fazer, na prática, em relação ao debate sobre a chamada plataformização?
Pinheiro – É uma declaração histórica. São as duas maiores democracias hemisféricas, que se unem para a promoção do trabalho decente – entre os itens colocados, estão desde temas tradicionais, como combate ao trabalho escravo, ao trabalho infantil, como também enfrentamento de temas relacionados à modernidade – a digitalização, o trabalho de plataforma.
A primeira coisa é colocar isso na agenda – os dois chefes de estado mostrando que isso é um tema global; intercambiar experiências entre os dois países; e projetar esse tema para outros países.
O presidente do Brasil falou durante a assembleia que não é possível que as tecnologias anulem anos e anos de avanços em relação à proteção ao trabalho. Essa é a tônica do discurso – as tecnologias estão aí para facilitar a vida das pessoas e dos trabalhadores, e não para anular ganhos históricos existentes.
O diretor da OIT estava presente e ressaltou que a OIT estará apoiando essa iniciativa – e esperamos que outros países se unam.
BBC News Brasil – O presidente Lula voltou a criticar as plataformas, também na quarta-feira, ao dizer que se trata de trabalho “quase escravo”. O sr. concorda com a avaliação de que, nas palavras do presidente, esses trabalhadores são tratados como “escória”?
Pinheiro – A definição do trabalho análogo à escravidão, de acordo com a legislação brasileira, considera dívidas, jornada de trabalho extenuante, condições de trabalho, impróprias. Teria que ver, dentro dessa definição, quais são os trabalhadores que poderiam se encaixar.
Claro que não são todos os trabalhadores que estão nessa condição, mas quem tiver nessa condição, o caso teria que ser averiguado. Não tenho comentário, isso tem que ser ponderado de acordo com a legislação brasileira.
BBC News Brasil – Mas qual é sua avaliação de acordo com sua experiência aqui e fora? Um argumento usado é o de que os trabalhadores teriam, por exemplo, a opção de não trabalhar, já que não há um contrato.
Pinheiro – É uma situação difícil. Isso tem que ser visto na situação socioeconômica do Brasil. Você sempre tem escolha de não entrar na plataforma, mas qual o resultado da sua escolha – você não poder levar o mínimo de recurso para casa para alimentar seu filho, sua filha?
BBC News Brasil – Entre as diferentes experiências internacionais, o que seria uma boa inspiração para o Brasil?
Pinheiro – Grande parte das boas práticas têm a ver com o fortalecimento da capacidade de organização da categoria. Essa organização serve como veículo para que as reivindicações sejam fortalecidas. E aí, as frentes fundamentais: a primeira é estabelecimento de pisos, discussão sobre mínimo que você receberia por viagem. O segundo, inegociável, é aumento da cobertura da seguridade social. E a observação de regras relacionadas à saúde e segurança do trabalho também é algo que tem que respeitar normas mínimas. Além disso, a transparência do algoritmo, que tem sido analisada em vários países.
Nessas quatro frentes, se há acordo, já seria um avanço brutal. E (a definição de) um caminho sobre autônomo, assalariado ou terceira categoria também parece fundamental.
BBC News Brasil – Vimos na semana passada uma decisão judicial no Brasil que aplicou uma multa de R$ 1 bi a uma plataforma, a Uber, e exigiu que a empresa contratasse os motoristas. Ainda cabe recurso e a empresa disse que vai recorrer, mas como o sr viu essa decisão?
Pinheiro – É uma demonstração de que há um movimento muito forte em direção ao reconhecimento de direitos – nesse caso específico, da aplicação da CLT, e da transformação de todos os motoristas em celetistas. Mas essa história ainda não terminou. Isso, acho, ainda vai ser levado ao STF, que tem se manifestado de outras formas.
Estamos atentos às deliberações da justiça e ao mesmo tempo seguindo os esforços do governo e também na frente parlamentar – dentro do Congresso há várias iniciativas também de regulamentação de legislação dessa matéria. Então, nesses três âmbitos, há esforços de avançar em termos de regulação.
BBC News Brasil – Nesse debate, tem problemas que são semelhantes em diversos países e outros pontos mais particulares em cada realidade. Por exemplo, o nível de informalidade no Brasil e em países da América Latina. Quais são os pontos em comum e quais são questões específicas do Brasil?
Pinheiro – Em relação à Europa e aos países mais desenvolvidos, a diferença é que, como há um colchão de seguridade social, e também políticas públicas de apoio, a vulnerabilidade é muito menor. Então a possibilidade de que um trabalhador seja explorado, ela se reduz muito – por exemplo, ele tenha que trabalhar horas extras, que ele tenha jornadas excessivas ou que ele tenha um carro ou uma moto fora dos padrões… Isso diminui muito o impacto que as plataformas possam ter em termos de aumento das vulnerabilidades.
No Brasil, como existem certas lacunas em termos de políticas públicas e informalidade muito grande, os trabalhadores ficam mais vulneráveis a condições de exploração.
BBC News Brasil – Um argumento bastante falado do lado das plataformas em relação à regulação é de que determinadas regras poderiam barrar inovações e acabar engessando um setor que tem prestado um serviço grande. E, junto com isso, há a avaliação de que, se ficar pouco interessante para algumas empresas, elas podem sair de determinado país.
Pinheiro – Acho difícil que uma plataforma saia de um país como o Brasil, porque é um mercado muito grande.
Existem muitos competidores, então hoje você tem grandes plataformas que estão dominando o mercado, mas no momento em que uma deixa espaço, outras podem entrar. É algo que pode ser facilmente reconstituído.
A fatia de mercado representa um país como o Brasil, emergente, é muito grande. Eu vejo, por exemplo, isso acontecendo ao nível de município, ou de países pequenos, mas não em um país muito grande.
A regulação barrar o avanço tecnológico, eu acho que não (acontece). O avanço tecnológico também se adequa à regulação. Claro que é necessário um ambiente favorável à inovação, mas eu não vejo a regulação e adequação às necessidades humanas como barreiras. Pelo contrário. A tecnologia tem que servir às pessoas, e não as pessoas servirem à tecnologia. Ela está aí para criar mais bem estar.
Não há uma dicotomia, um dilema entre aumentar a inovação e aumentar a exploração do trabalho.
www.bbc.com/portuguese/Laís Alegretti