Entenda o que muda com o fim da política de Preço de Paridade Internacional (PPI) da Petrobras
Desde a implantação do PPI a Petrobras tem perdido participação no mercado, reduzido drasticamente os investimentos
Sempre que ouço uma discussão como essa sobre a política de preços da Petrobras eu me pergunto: o que são os liberais brasileiros de hoje, pervertidos, preguiçosos ou simplesmente ineptos?
No nível macro, me refiro a este negócio de deixar tudo para o mercado, da sociedade e o Estado não se envolverem; de se absterem de planejar, regular, ter estratégias de longo prazo, amarrar as pontas, fomentar, criar colchões de amortecimento, compensações, políticas de precaução, estas coisas que o Estado faz em qualquer parte do mundo e que eles dizem que é não só desnecessário como indesejável.
Parece que tem um elemento de preguiça aí, porque isso dá trabalho, e exige muito mais esforço mental do que deixar que tudo siga o rumo que quiser ou puder.
No plano micro não é diferente, vejo práticas empresariais ordinárias como estas que derrubaram as lojas Americanas, por parte de empresários até hoje incensados como heróis nacionais. A lógica também parece a mais preguiçosa e inepta possível, e a mais pervertida: gerar lucros de curto prazo para enriquecer seus donos vilipendiando fornecedores, dando calote em bancos e fraudando a contabilidade para parecerem mais do que são. Mesmo às custas do futuro da empresa, do emprego dos funcionários, da sobrevivência de toda a cadeia de suprimentos e da credibilidade dos dirigentes.
É perversão, preguiça ou inépcia mesmo? Ou tudo ao mesmo tempo?
Estratégia de privatização
Enfim, com o tal PPI que hora foi extinto não era diferente. Uma política de preços copy-cola.
Implantada por Pedro Parente na lúgubre alvorada do governo Temer, a política do Preço de Paridade Internacional impunha que a Petrobras vendesse os seus combustíveis não apenas pelo preço internacional, mas pelo custo que ela teria caso tivesse comprado os combustíveis no exterior (por exemplo, no Golfo do México) e trazido para o Brasil, incluindo os supostos custos de aquisição, todas as despesas de transporte e tarifas alfandegárias e portuárias, mais uma suposta margem de lucro. Mesmo o petróleo sendo extraído na Bacia de Campos e processado em Canoas, com custos genuinamente brasileiros e praticamente ao lado dos postos de abastecimento.
Bem, apesar da inepta e preguiçosa prática de simplesmente copiar os preços internacionais e colar nos preços internos, o PPI era baseado em três perversões intelectuais que corrompiam não só o bom senso como a teoria econômica mais básica. Exatamente aquela que os liberais brasileiros dizem defender, chamada “economia neoclássica”, e que se ensina nas faculdades como se fosse sinônimo de ciência econômica.
Chamo de perversões intelectuais porque elas são defendidas como se fossem virtuosas, quando na verdade são teoricamente fraudulentas e eticamente imorais.
A primeira perversão está no objetivo do PPI.
O PPI não foi implantado por nenhum interesse da Petrobras em si, como empresa. Ele não está baseado numa ideia de boas práticas empresariais, nem em uma estratégia de mercado da empresa ou em alguma visão de futuro promissor para a companhia. Tampouco tinha a finalidade de atender a qualquer interesse público aos quais está vinculada a fundação da estatal.
Ao contrário, desde a implantação do PPI a Petrobras tem perdido participação no mercado, reduzido drasticamente os investimentos, tem distribuído em dividendo aos acionistas a maior parte dos lucros, e tem feito uma política deliberada de desinvestimento (eufemismo para a venda de grande parte da empresa, como refinarias, distribuidora, transportadoras e áreas de produção). Além disso, ela vinha praticando preços exorbitantes que impactaram negativamente sobre a inflação, a produção nacional e a renda real dos brasileiros. Ou seja, não atendia aos interesses da empresa nem do país e dos brasileiros em geral.
O PPI fazia parte, isso sim, de uma estratégia de privatização, de encolhimento da Petrobras e de renúncia das suas funções públicas. E para que? Para beneficiar empresas estrangeiras, permitindo que estas ingressassem nos mercados brasileiros com vantagens competitivas compatíveis com as da Petrobras.
Explicando melhor: como a Petrobras detém tecnologia própria, uma estrutura de produção virtuosa, refinarias distribuídas em todo o território nacional e ampla rede logística, era natural que tivesse custos mais baixos que suas concorrentes multinacionais, que aumentaram a sua avidez pelo mercado brasileiro de combustíveis desde a queda da Dilma.
Muitas delas, porém, não tendo refinarias no Brasil, precisavam importar combustíveis de outros países para vender aqui, incorrendo exatamente naqueles custos que o PPI passou a impor aos preços da Petrobras. Então, com o PPI a Petrobras abria mão de sua principal vantagem competitiva – os baixos custos que permitiriam praticar preços menores que as demais – e passava a praticar preços como se tivesse os mesmos custos das suas concorrentes, preservando o lucro destas outras empresas e cedendo a elas parte do mercado nacional que antes ela detinha.
Então, eis a primeira perversão: o PPI era uma política contra os interesses empresariais da própria Petrobras e contra suas funções estratégicas e sociais, consignadas no ato da sua fundação.
Poder de monopólio ao contrário
Mas – e aí vem a segunda perversão -, isso só foi possível justamente porque a Petrobras detém uma coisa que todo o liberal legítimo deveria detestar: poder de monopólio. Ou seja, o poder que empresas muito grandes têm de impor certas condições ao mercado, como preços abusivos. Ora, quando há uma empresa monopolista não há muitas alternativas de quem comprar, então consumidores e demais empresas se submetem às condições que ela impõe.
No caso de estatais como a Petrobras, o poder de monopólio é importante para que ela possa cumprir com suas funções públicas e estratégicas. Uma delas seria exatamente usar este poder para reduzir as variações indesejáveis nos preços dos combustíveis que decorrem da volatilidade especulativa dos mercados internacionais, protegendo a empresa, a produção nacional e a economia popular.
Mas o irônico aqui é que o PPI usou o poder de monopólio da Petrobras exatamente para o contrário, para fazer uma política contra os interesses da companhia e contra os interesses dos brasileiros, favorecendo apenas as empresas concorrentes e o lucro de curto prazo dos acionistas.
É claro que os liberais diriam: “viu, o poder de monopólio da Petrobras é ruim, permitiu estes preços extorsivos dos últimos anos com enormes danos à economia e aos brasileiros, por isso temos que privatizá-la e favorecer a concorrência”.
Ou seja, usar o poder de monopólio da Petrobras para provar que o monopólio é ruim, e assim privatizar a companhia para reduzir o seu poder de monopólio futuro. Foi mais ou menos isso que foi feito. Ora, isso é algo como enfiar o dedo de uma criança na tomada pra provar a ela que a eletricidade dá choque. Um liberal, neste caso, talvez dissesse que o melhor seria remover todas as tomadas da casa para evitar que alguém se machuque, quando o correto seria pensar que a mesma energia que dá choques também permite ligar a geladeira para conservar os alimentos, e que então o melhor seria ensinar a criança a não mexer na tomada, ou colocar-lhe uma proteção ao invés de removê-la.
Excedente para o bolso dos acionistas
Bem, a terceira perversão teórica praticada pelo PPI é descrita literalmente pela tal “economia neoclássica”, aquela teoria que os liberais geralmente evocam quando defendem que a mão invisível do mercado é tão benéfica para os consumidores e para a sociedade.
Diz esta teoria liberal que, quando há concorrência no mercado, há um equilíbrio entre o “excedente do consumidor” e o “excedente do produtor” (dois nomes técnicos, mas que no fundo representam algo bem próximo do que intuímos que sejam), maximizando o bem-estar social. Mas – e aí está a perversão no caso do PPI –, na condição de monopólio, aquela empresa que tem o poder monopolista geralmente usa este poder para aumentar seu excedente às custas do excedente do consumidor, reduzindo o bem estar geral. Ou seja, a empresa usa o poder de monopólio para extrair excedente dos consumidores em favor dela.
No caso da Petrobras, este excedente extraído dos consumidores brasileiros por meio de preços abusivos (e são abusivos porque são impostos por um poder de monopólio), foi usado para encher os bolsos dos acionistas privados, numa distribuição de dividendos sem precedentes na história da empresa, e uma das maiores do mundo.
Para se ter uma ideia, em 2021 o lucro líquido da Petrobras foi de cerca de R$ 106 bilhões, dos quais ela distribuiu R$ 72 bilhões, algo absurdamente alto perto dos R$ 24 bilhões de lucro em 2018 para uma distribuição de dividendos de cerca de R$ 3 bilhões de reais.
Olhando esta lucratividade mais de perto, vamos ver o caso da Refinaria da Petrobras Alberto Pasqualine (REFAP). Em 2021 ela teve uma receita de R$ 29,3 bilhões para um custo de R$ 9,7 bilhões de reais, ou seja, uma taxa de lucro de mais de 200%, algo irreal em qualquer setor que funcionasse minimamente bem, sem este uso abusivo e pervertido do poder de monopólio que a Petrobras tem, e que deveria ser usado apenas em prol do interesse nacional e do povo brasileiro.
Fachada liberal
Como se vê, o elemento que impulsionou a lucratividade foram as receitas, em função do aumento do preço dos combustíveis no mercado internacional internalizados pelo PPI. Mas a Petrobras, se quisesse, pelos custos que tem, poderia ter garantido preços substancialmente mais baixos para os consumidores e ainda assim manter uma taxa de lucro considerável, compatível com outros setores da economia. É só observar o caso da REFAP e seus custos.
Ou seja, esta lucratividade recorde carreada para os bolsos dos acionistas foi obtida por meio de preços abusivos impostos pelo poder de monopólio da Petrobras, pervertendo as funções públicas de uma estatal, as leis básicas de um mercado em funcionamento normal e mesmo a teoria econômica mais elementar.
Vejam, os ditos liberais brasileiros, apesar de usarem uma fachada liberal e de evocarem teorias liberais como se fossem científicas, pervertem (ou defendem quem o faz) a lógica, a teoria e o bom senso para fazerem coisas autoritárias e perversas em favor de interesses particulares.
O fim do PPI, ao contrário de representar uma intervenção indevida na Petrobras ou uma “estatização” dos preços, deve, na verdade, voltar as estratégias comerciais da empresa para os interesses de longo prazo da companhia. Deve colocar o setor em um funcionamento minimamente regular de mercado, e, sem abusar do seu poder de monopólio, voltá-la novamente para o atendimento das funções públicas da empresa estatal que é.
Renato Souza- Professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).
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