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/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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Sakamoto: Brasil ainda está libertando a ‘doméstica da casa’ 135 anos após Lei Áurea

Casos de trabalhadoras domésticas negras em situação análoga à escravidão são recorrentes no Brasil - Freepik
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Pelo país, persistem situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho

Dos 61.459 resgatados da escravidão no Brasil desde 1995, 77 estavam no trabalho doméstico. O número, pequeno, não representa a real dimensão do problema em um país onde “pegar para criar” a filha de uma família pobre do interior e colocá-la para trabalhar é visto como favor e não tráfico de pessoas.

Nos últimos anos, os casos de libertações de domésticas escravizadas tiveram ampla visibilidade na imprensa. Com isso, vizinhos começaram a perceber que trabalhadoras de residências do mesmo bairro estavam em condição similar.

Os primeiros dois resgates ocorreram em 2017, depois foram mais dois em 2018, cinco em 2019, três em 2020, 31 em 2021 e 2022 e, até agora, três em 2023, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego.

“Em razão da grande repercussão do resgate da trabalhadora doméstica Madalena Gordiano no final de 2020 em Patos de Minas, o número de denúncias aumentou”, afirmou o auditor fiscal Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho e Emprego.

O mais longo caso de escravização de uma pessoa no Brasil contemporâneo foi o de uma mulher de 84 anos resgatada, em 2022, após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro. Nesse período, ela cuidou da casa e de seus moradores, todos os dias, sem receber salário, segundo a fiscalização.

Quando a trabalhadora, que é negra, passou a atuar para a família, a Lei Áurea (1888) tinha apenas 62 anos, o presidente era Eurico Gaspar Dutra e o Rio, a capital do país.

De acordo com a fiscalização, seus pais trabalhavam em uma fazenda no interior do estado. Aos 12 anos, ela se mudou para a residência do casal proprietário para realizar serviços domésticos. Quando faleceram, migrou para a casa da filha deles, onde manteve suas atividades, incluindo o cuidado com as crianças. Ao ser resgatada, atuava como cuidadora da empregadora, apesar de ambas terem idade semelhante.

Pegar meninas ‘para criar’

Outra mulher que trabalhava há 32 anos como empregada doméstica foi resgatada da residência de um pastor em Mossoró (RN) também no ano passado. Segundo auditores fiscais do trabalho, ela chegou ao local ainda adolescente, com 16 anos, e sofreu abuso e assédio sexual do empregador.

Constataram que ela era responsável pelos serviços domésticos e recebia em troca moradia, comida, roupa e alguns presentes. Mas nunca teve salário ou conta bancária, nem tirava férias ou interrompia os afazeres nos finais de semana.

“Famílias ‘pegam meninas para criar’, gerando uma relação de exploração. É uma prática comum na região, infelizmente”, explicou na época a auditora fiscal do trabalho Gislene Stacholski, que atuou a investigação da denúncia. Para os donos da casa, de baixa renda e humilde, ela era tratada ‘como se fosse uma filha’. Mas, de acordo com a fiscalização, o casal nunca cogitou uma adoção formal da “filha”.

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Serviço doméstico não é encarado como trabalho no Brasil, mas uma obrigação relacionada a um gênero e, muitas vezes, a uma cor de pele. Nesse contexto, a superexploração de mulheres negras tem carregado nos ombros a reprodução social tanto de ricos quanto de pobres por aqui.

Durante as discussões sobre emenda constitucional que elevou os direitos das trabalhadoras empregadas domésticas para um patamar mais próximo do restante da população, lemos e ouvimos um festival de preconceitos. Ainda hoje, escutamos ecos de reclamações sobre o inferno no qual mergulharam as vidas dos patrões a partir do momento que “essa gente” passou a achar que era “igual a eles”.

Empregadores que, provavelmente, avaliam que a Lei Áurea foi longe demais. Na época, coletei vários exemplos nas redes:

– Pedi para a mocinha que trabalha lá em casa ficar mais duas horinhas porque o Arnaldo ia se atrasar do tênis e ela disse que não. Disse que tinha os filhos em casa. E os meus?

– Ela não quis trocar a folga. Disse que tinha marcado uma viagem. Agora, esse povo viaja!

– Pediu demissão e se foi. E tá me processando por direitos! Eu que a tratava como uma filha.

– Ela disse que não quer mais dormir no quartinho dela porque é fechado e não tem janela. Na favela dela, também não deve ter e ela nem reclama.

E outros casos mais recentes:

– O câmbio não está nervoso, mudou. Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada.

Parte do Brasil se ressentiu em equiparar direitos de empregadas

Durante meses, o Brasil acordou com “especialistas” no rádio ou na TV dizendo que não era o momento de garantir direitos a determinada categoria de trabalhadoras porque a economia não aguenta e eles seriam demitidas. Só o fato de essas posições ganharem tração indicam que uma parte da sociedade tinha normalizado a superexploração de um grupo de pessoas.

A Organização Internacional do Trabalho demorou meio século para conseguir aprovar uma convenção sobre os direitos das trabalhadoras empregadas domésticas. A “civilizada” Europa precisava de mão de obra barata, mas não queria garantir aos migrantes os mesmos direitos de quem nasceu no continente. E, através dessa exploração do trabalho informal, regulava o custo de vida em várias economias.

No Brasil, ainda há compradores que procuram um “Quarto de Empregada” ao adquirir um imóvel novo, um espaço destacado ao lado da cozinha e da lavanderia – versão contemporânea da senzala. Aquele tantinho de espaço ao lado das vassouras, rodos e produtos de limpeza, destinado à criadagem é o nosso fardo de vergonha.

Se uma pessoa tiver que dormir no serviço, deveria compartilhar um quarto de hóspedes, por exemplo. Mas ela é “quase” da família. E nesse “quase” residem 523 anos de História.

Somos (quase) um país justo, conseguimos ser (quase) civilizados, a dignidade aqui é (quase) respeitada, a gente (quase) trata pobre com respeito.

A escravidão foi (quase) erradicada. Quase.

Em tempo: No dia 27 de abril, a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) realizou um evento sobre o trabalho escravo doméstico em Brasília.

Nele, o governo Lula afirmou sua disposição de fortalecer o enfrentamento a esse crime. Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ou pelo Disque 100. Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.

www.brasildefato.com.br/Leonardo Sakamoto UOL

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