Seja em Goiás, seja em Minas Gerais, brasileiros que vivem em municípios com baixo IDH relatam o drama de enfrentar a alta de combustíveis, uma das faces do cotidiano de inflação. É comum a população carente pagar mais pela gasolina
Que as famílias brasileiras estão gastando mais com transporte e alimentação, todos os indicadores mostram. Mas é no dia a dia que as dificuldades provocadas pela carestia, agravada pelo aumento de 18,8% na gasolina, se mostram reais, concretas.
Longe das explicações de salão e dos gabinetes de Brasília, pessoas em idade produtiva enfrentam problemas como baixa renda, alto preço das passagens de transporte público, ruptura de sonhos e um horizonte de incertezas.
Em Águas Lindas (GO), município do Entorno, a 47 quilômetros de Brasília, trabalhadores já modificaram a rotina para se adaptar aos preços dos combustíveis. A cidade de 217 mil habitantes, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em 0,686, o litro da gasolina pode ser encontrado a R$ 7,39.
É um sacrifício diário para a população com renda per capita em R$ 584, de acordo com a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). “Carro mesmo, agora, só se estiver chovendo”, resume o motorista de ônibus Domingos Lustosa. Assim como ocorre em diversas cidades nas cercanias da capital federal, os moradores de Águas Lindas sofrem para se deslocar até o trabalho. E ainda precisam regular os parcos recursos para manter o orçamento doméstico.
De acordo com o economista e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Felipe Queiroz, a alta do combustível provoca um efeito cascata, que afeta todos os setores dependentes direta ou indiretamente dos derivados de petróleo. “O combustível é um bem intermediário. Ou seja, aumenta o custo dos fretes, porque a maior parte do transporte brasileiro é feito sobre rodovias. Além dos fretes, aumenta o custo de produção de outros bens que são derivados de petróleo ou dependem dele. Por exemplo o custo dos alimentos, aumenta o preço dos fertilizantes. Além disso, aumenta diretamente o preço da passagem do transporte, então é todo um aumento em cadeia”, descreve o analista.
A alta prejudica majoritariamente as famílias financeiramente mais vulneráveis. Como elas têm menor renda, a maior parte do dinheiro é direcionada ao consumo. “Famílias de menor renda acabam alterando as cestas de produtos. Há um aumento muito alto dos preços, não só nos combustíveis, e isso tem afetado a capacidade das famílias de menor renda de manter a própria cesta básica”, acrescenta Queiroz.
“Se os preços aumentam e a renda não aumenta, elas vão, consequentemente, diminuir a quantidade e a qualidade daquilo que compram. Então há uma deterioração da qualidade de vida e do poder de compra dessas pessoas”, completou o especialista.
O economista da Troster Associados, Roberto Luís Troster, considera a situação desoladora. “Esse comprometimento maior da renda em razão de um custo de vida mais alto aumenta a inflação e encolhe o consumo de todos, principalmente os mais pobres.”
Realidade perversa
Em Minas Gerais, a realidade nos postos de combustível é perversa. Os moradores dos municípios mais pobres e isolados, situados no Norte do estado e no Vale do Jequitinhonha, pagam mais caro do que a população de Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), município mineiro com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), de 0,813.
Com 97,3 mil habitantes, Nova Lima tem Produto Bruto Interno (PIB) per capita anual de R$ 124.987,23, quase 20 vezes o PIB de São João das Missões, que é de R$ 6.428,57, cidade do Norte de Minas que tem o menor IDH do estado: 0,529. No entanto, a população de São João das Missões (11,8 mil moradores, 70% indígenas xacriabá) está pagando 40 centavos a mais por cada litro do combustível (R$ 7,99) do que os mais bem estruturados moradores de Nova Lima, onde o litro do produto pode ser encontrado a R$ 7,599 na bomba.
Dos lugares pesquisados em Minas Gerais, a cidade com a gasolina mais cara é Coronel Murta. A cidade tem duas revendas de combustíveis: em uma delas, a gasolina a está custando R$ 8,59 o litro; na outra, R$ 8,49 o litro, R$ 1 a mais do que o valor do combustível (R$ 7,49) encontrado em postos de Belo Horizonte — que tem o segundo maior IDH de Minas (0,810) e PIB per capita anual de R$ 38.695,31.
A professora Vânia Vilas Boas, coordenadora do índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Departamento de Economia da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), afirma que moradores dos pequenos municípios de regiões carentes como o Norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha pagam mais caro pelos combustíveis por causa do chamado “custo logístico”.
“Temos o custo do transporte dos derivados de petróleo da refinaria até a bomba no posto. Soma-se a isso a questão que em Minas Gerais temos uma das maiores tributações sobre gasolina, de 31%, a segunda maior do Brasil, perdendo apenas para o Rio de Janeiro (34%). Isso faz com que o preço dos combustíveis seja mais alto nessas regiões”, observa a economista.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi criado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/ONU) e é baseado nos indicadores de educação, saúde e renda de países, estados e municípios. Quanto mais próximo de 1, mais alto é o IDH.
Aureliano Maciel, recepcionista em hospital
Ao perceber o impacto do aumento dos combustíveis, o recepcionista Aureliano Maciel, 26, tinha duas opções. “Ou comprava uma moto ou mudava de Águas Lindas”, explicou o jovem ao Correio, enquanto acompanhava a manutenção da motocicleta Yamaha Ténéré. Aureliano comprou o veículo usado recentemente. É o meio de transporte que ele utiliza para rodar os 100 quilômetros de percurso, ida e volta, entre Águas Lindas e Brasília. Ele faz esse trajeto diariamente para trabalhar em dois turnos na capital federal. Proprietário de um carro 1.0, Aureliano mudou a rotina para se adaptar ao litro da gasolina a R$ 7,36 nos postos da cidade. Com a compra da moto, reduziu de R$ 1 mil para R$ 400 os custos de combustível. Com seis pessoas na família e responsável por grande parte da renda, o também administrador de empresas soube facilmente o seu caminho. “O dinheiro da moto, eu recupero. Dinheiro de combustível, a gente nem vê”.
Domingos Lustosa, motorista de ônibus
Aos 44 anos, Domingos Lustosa passou a deixar o carro na garagem quando precisou priorizar os estudos da filha. Ela segue todos os dias de Águas Lindas para Brasília, onde frequenta uma escola de ensino médio. A filha de Domingos viaja com a mãe, que é professora e compõe renda com Lustosa na família composta por quatro pessoas. “Elas usam o transporte público e gastam uns R$ 20 por dia, para não perder”, diz. “Carro mesmo agora só se tiver chovendo”, diz o motorista de transporte público. Ele ressalta a despesa com o veículo particular, especialmente após o último reajuste. “Para andar de carro, agora, são uns R$ 50 por dia. Com o que a gente economiza dá pra comprar a carne do final de semana, alguma coisa ou outra de lazer”, explica. Lustosa também lamenta outra mudança: ele passou a ter menos tempo com a família. “De carro, chego ao trabalho em 10 minutos. De ônibus, lá se vão 40 minutos.”
Adriano Lima, serralheiro
A dengue pegou a família de Adriano e Ana Cléia Silva Lima em dezembro. A situação ficou crítica no Natal e exigiu medidas emergenciais para a sobrevivência da família de cinco pessoas. “Em janeiro, vendemos a bicicleta do Adriano para pagar a dívida da cesta básica que compramos no dia 23 de dezembro”, explica Ana Cléia. Os problemas de saúde na virada do ano agravaram a crise financeira pela qual passava o casal. As dificuldades empurram os sonhos de melhoras de vida, como a compra de uma motocicleta. Serralheiro, Adriano conseguia movimentar até R$ 2 mil por mês antes da pandemia. Mas a crise veio, e a família se desfez de uma mobilete para procurar trabalho autônomo. Atualmente, ele não consegue mais do que R$ 500 por mês. “O jeito é procurar trabalho a pé. Aqui, um monte de gente perdeu o emprego por causa do preço do custo de transporte. Nem todos os patrões conseguem manter”, conta.
Talysson Henrique e João Pedro
Sabrina é uma égua Quarto de Milha de seis anos muito bem cuidada pelo seu dono, João Pedro, 21. No início da tarde de ontem, ele e o amigo, Talysson Henrique, 24, cavalgavam pelas ruas do Pérola 1, bairro de Águas Lindas de Goiás, para “ver as coisas” e ir a uma padaria. “Qualquer volta de carro é R$ 20. Cavalo, não. Cavalo tá ali, cuidado, não gasta”, avalia João, sentado sobre o lombo de Sabrina. Os amigos trabalham em outras cidades da região do Entorno. João é auxiliar de pedreiro e está no segundo período de engenharia civil. Talysson é agente comercial. Embora ganhem mais do que dois salários mínimos, eles concordam que a renda familiar está precarizada. “Eu tenho moto, mas deixo de usar para usar ou cavalo ou transporte público”, conta Talysson.
Milqueias Mota, assistente social
Em Bonito de Minas, de 11,5 mil habitantes, município do norte-mineiro que tem o terceiro pior IDH (0,537) do estado, a gasolina está sendo vendida a R$ 7,85. O valor impôs sacrifícios à população da cidade, onde a renda média dos trabalhadores é de 1,6 salário mínimo. Com o aumento da gasolina, moradores da cidade estão deixando de andar de veículos motorizados. “O movimento de veículos na cidade diminuiu bastante. O pessoal passou a andar mais de bicicleta. A gente também percebe que muitas pessoas voltaram a andar a cavalo”, descreve Milqueias Mota Figueiredo, assistente social, servidor público e vereador em Bonito de Minas. Segundo Milqueias, o reajuste provocou “mudanças drásticas”. “As famílias acabam deixando de fazer coisas que faziam antes, como frequentar os bares. O lazer diminuiu bastante. O consumo de carne também caiu”, constata.
Adimar de Lima, indígena xacriabá
Os moradores dos pequenos municípios mineiros têm mais despesas com transporte porque sempre precisam se deslocar para tratamentos de saúde ou procurar atendimento bancário, não existentes onde vivem. Essa situação ocorre em São João das Missões (MG/foto), onde mais de 70% da população pertence à tribo indígena xacriabá e reside na zona rural, em 32 aldeias que ocupam 70% do território do município. Os indígenas acabam necessitando de constantes deslocamentos até a cidade, para tratamento médico, receber benefícios ou cuidar de compromissos pessoais. “As pessoas estão reduzindo as viagens por causa preço da gasolina, que subiu demais enquanto a renda da população continua baixa. Ninguém aguenta isso”, afirma Adimar Seixas de Lima, integrante da etnia xacriabá e supervisor da Secretaria Municipal de Cultura e Assuntos Indígenas de São João das Missões.
www.correiobraziliense.com.br/ Luiz Ribeiro e Michelle Portela