Quando as primeiras vacinas contra a covid-19 foram anunciadas, estavam previstas uma ou duas doses. Mas agora, um ano depois, o governo de São Paulo, por exemplo, anunciou que a população receberá uma quarta dose do imunizante. E talvez não seja a última.
Esse cenário reforça comparações entre o coronavírus e o vírus da gripe (influenza), que é de fácil transmissão e que vive em constante mutação. E por isso, dentre as soluções adotadas contra a forma grave da doença, ocorre a aplicação de uma vacina a cada temporada. O mesmo acontecerá com a covid-19?
A verdade é que ninguém tem certeza, mas os sinais disponíveis até agora apontam para a probabilidade de mais doses da vacina contra a covid-19, talvez em frequência anual, principalmente para os mais vulneráveis (como os idosos).
Mas faz sentido comparar o esquema vacinal da gripe ao da covid-19 que ainda nem está consolidado? É possível que o coronavírus passe por um processo de mutação como o do influenza a ponto de termos vacinas sazonalmente? E precisaremos de mais doses porque as vacinas atuais e o nosso sistema imunológico não conseguirão combater as novas variantes?
O imunologista e vacinologista, Herbert Guedes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador da Fiocruz, explicou em entrevista à BBC News Brasil que as respostas para todas essas dúvidas passam basicamente por dois aspectos sobre os quais o mundo ainda tem grandes dúvidas: se o vírus vai passar por mutações a ponto de escapar das vacinas e anticorpos e se a defesa do nosso corpo vai cair ao longo do tempo, necessitando assim de reforços a cada um ou dois anos, por exemplo.
Apesar das incertezas e da falta de diversas informações cruciais sobre o coronavírus, para Guedes e outros dois especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o cenário atual tende à necessidade de novas doses nos próximos anos. “A gente tem que ter consciência que a gente vai ter que conviver com o vírus por um tempo.”
Mesmo com a percepção comum de que a pandemia está se aproximando do fim, com diversos países suspendendo completamente as medidas de restrição, é importante lembrar que a covid-19 ainda mata mais de 1.200 pessoas por dia no Brasil, e esse número cresce a cada dia. Até agora, morreram mais de 635 mil pessoas no país em razão da pandemia.
Por que a vacinação da covid poderia ser anual?
A resposta a essa pergunta passa por 4 aspectos: imunidade/memória, variantes, logística e sazonalidade. Mas principalmente os dois primeiros.
1. Em quanto tempo a imunidade cai e precisamos de mais doses de vacina?
Quando o corpo humano é invadido por um vírus ou uma bactéria, por exemplo, nosso sistema imunológico se defende com duas respostas principais: a resposta imune inata (a célula percebe que foi infectada e dispara sinais de alerta) e a resposta imune adaptativa (com capacidade de gerar memória imunológica, como os linfócitos chamados de células T e células B).
No momento da invasão, o nosso sistema imunológico armazena uma espécie de “ficha técnica” com informações de como combater esses agentes infecciosos. Esse é o objetivo primordial da vacina: gerar células de memória a fim de combater o invasor quando este surgir.
Vale lembrar que as vacinas atuais contra a covid-19 são eficazes em combater a forma grave da doença, e não a infecção. Ou seja, ajudam muito mais o corpo a evitar hospitalizações e mortes do que contrair o vírus.
Só que essa memória não dura para “sempre” em relação a todos os agentes infecciosos. E no caso da covid-19, o corpo vai “perdendo” o acesso a essa memória de uma forma aparentemente rápida, ficando mais vulnerável ao longo do tempo. Mas quanto? Não se sabe ao certo.
O virologista Fernando Spilki, professor e coordenador da rede Corona-ômica.BR/MCTI (que monitora o crescimento das principais variantes do vírus no país), explica à BBC News Brasil que “há alguns indícios de que você teria pelo menos 9 meses, medindo anticorpos, mas isso não quer necessariamente dizer que não vá ter proteção clínica do ponto de vista da imunidade celular”.
Há estudos que apontam a possibilidade de a imunidade não durar um ano, mas ainda não há certeza sobre isso. O Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, por exemplo, divulgou recentemente que a proteção dada pela terceira dose (booster) contra a covid-19 grave não dura mais do que quatro meses, o que sugere a necessidade de se aplicar uma quarta dose.
Além disso, o avanço da pandemia tem levado a mudanças na estratégia da aplicação de vacinas. Inicialmente, a terceira dose de reforço era para ser administrada seis meses após a segunda dose, mas o surgimento das variantes levou autoridades a anteciparem o intervalo de aplicação para quatro meses a fim de aumentar a resposta imune das pessoas e tentar garantir a proteção.
“Quando se aplica a terceira dose, você aumenta a resposta imune do indivíduo. Então, aumenta a resposta de anticorpos e aumenta a celular (aumenta as células T e B de memória)”, explica Guedes. Ou seja, a terceira dose teve a capacidade de aumentar os níveis de anticorpos neutralizantes, que são anticorpos que vão neutralizar regiões que não estão aumentando tanto com a chegada do invasor.
E o que falta então para sabermos quanto tempo realmente dura a capacidade do corpo de combater o coronavírus?
Atualmente, o principal indicador utilizado é a taxa de hospitalizados e mortos entre os vacinados (e há quanto tempo eles foram imunizados).
Mas Spilki explica que um dos desafios da covid-19 é a ausência de marcadores exatos. “Nós ainda não temos o que chamamos de correlato de proteção. Quanto de anticorpos preciso ter para estar protegido de uma infecção mais grave? Quanto de anticorpos preciso ter para evitar a multiplicação do vírus e não transmiti-lo? Quanto de resposta imune celular preciso ter para me proteger de uma infecção mais grave?”
Ele esclarece que isso se dá porque acabamos de descobrir a doença.
“Isso é uma coisa que leva bastante tempo mesmo para a gente conseguir determinar. No momento em que tivermos isso bem definido, esses marcadores de laboratório, vai ficar ainda mais fácil, porque vai poder se analisar soro, sangue de pessoas em geral e determinar: precisamos dar uma renovada na vacinação, precisamos ir adiante.”
2. Haverá variantes com mutações significativas a ponto de ‘driblar’ nossa imunidade?
O influenza é um vírus em constante mudança. E não é de hoje: há registro de mutação dele na década de 1950, por exemplo. O coronavírus, assim como o influenza, especialmente após o descobrimento da variante ômicron, trouxe dúvidas e comparações devido a sua quantidade de mutações que facilitam a adesão às células humanas para invadi-las e possuem comportamento similar se analisarmos por essa perspectiva.
Spilki explica ainda que o vírus da gripe (influenza) tem um genoma segmentado (dividido em partes), o que propicia uma evolução mais rápida. “Ele não depende apenas de mutação, o genoma também faz mutação, também tem alterações na sequência de letrinhas do RNA. (…) Ele também consegue se misturar em diferentes espécies ao longo do tempo, o que é uma vantagem evolutiva”.
No caso da gripe, a imunização acontece nos meses que antecedem o inverno, estação em que o número de casos de influenza costuma subir (por diversos motivos, entre eles mais aglomerações em lugares fechados). A vacina é aplicada sazonalmente porque o vírus da gripe muda continuamente.
Renato Mancini Astray, pesquisador científico do Instituto Butantan, explicou em entrevista à BBC News Brasil que as mutações do influenza são imprevisíveis, “por isso que é sempre uma surpresa, sempre uma expectativa para saber qual é a cepa que vai circular no ano seguinte, no ano corrente da fabricação das vacinas”.
Quem recomenda as cepas da vacina da gripe sazonal é a Organização Mundial da Saúde (OMS) que, a partir de uma hipótese baseada em dados epidemiológicos das cepas que estão em circulação, e do desempenho de cepas anteriores, seleciona geralmente três principais cepas para a próxima estação.
“Para o vírus que virá no próximo ano, ela [a vacina atual] não é uma vacina que vai proteger completamente, porque as mutações que o influenza sofre fazem com que ele escape um pouco da resposta imunológica”, explica Astray, do Butantan.
Guedes, da Fiocruz, afirma que a atualização da vacina de influenza ocorre, então, tanto por causa das mutações quanto para aumentar a resposta imune anualmente.
Mas como aparecem essas mudanças e mutações no vírus? Bom, todo ciclo de replicação do vírus influenza pode passar por mutações, e nesse caso pode ocorrer a “deriva antigênica”, que é como se fosse uma “estratégia” do vírus para mudar sua estrutura, e com isso escapar do nosso sistema imunológico (isso tudo de forma aleatória, e não planejada pelo vírus). Então precisamos de novos anticorpos e vacinas para se proteger.
E o coronavírus Sars-CoV-2, que causa a doença covid-19?
Por questões evolutivas, Spilki não aposta na possibilidade de atualização do coronavírus na mesma velocidade que se dá com o vírus influenza a ponto de obrigar a atualização anual da vacina. “Mas nós teremos necessidade ao longo do tempo de ir renovando vacinas”, ressalta.
Astray, do Butantan, afirma que a variante ômicron já escapou bastante da resposta imune mediada por anticorpos, fazendo com que eles não sejam mais tão eficazes para bloquear a infecção, mas, graças às vacinas atuais, o sistema de defesa do corpo ainda se mostra eficaz para diminuir a gravidade da doença, só que essa taxa vem caindo.
“Foi o que aconteceu, por exemplo, quando entraram as variantes. A gente tinha então vacinas que tinham uma eficácia, por exemplo, na segunda dose de 86%, 90% contra sinais clínicos. Entraram as variantes e a gente começou a ver essa eficácia baixar para próximo de 70%, 60%. Esse tipo de sinal populacional já indica que você precisa dar uma reforçada nessa memória”, diz Spilki.
A princípio, as variantes (novas versões do coronavírus com mudanças genéticas consolidadas) têm bastante semelhança entre si, a ponto de não afetarem tanto a eficácia da vacina. Mas não é possível prever quanto o coronavírus ainda vai sofrer mutações, e em que medida elas serão capazes de driblar nosso sistema imunológico.
Mesmo com todas essas incertezas, Guedes, Astray e Spilki estimam, com base nas parcas informações disponíveis, que a população será imunizada anualmente por algum tempo ainda.
“Na minha opinião, o que se espera chegar? Seriam doses anuais, o que se espera, atualizando frente aquilo que circulou. Como se faz com o influenza. Vai atualizando para garantir essa proteção. Agora, se vai ser um ano, se vai ser 6 meses, não tem como a gente saber, depende muito. A dinâmica ainda está acontecendo. E por que a gente pensa sempre em anual? Porque passaram as estações, inverno, verão, passa pelo ciclo sazonal e aí, passado esse período, vamos vacinar com os vírus que transitaram para garantir a proteção”, diz Guedes.
Para Spilki, é provável atualizar as vacinas com as mutações gerais, como ômicron, e outros alvos, para tentar bloquear também a infecção, e não “só” a forma grave da doença. Ele estima que a aplicação das vacinas deve avançar para doses anuais, e não menos que isso para todas as faixas etárias, também por questões logísticas.
Na opinião de Astray, o cenário mais provável é “que a gente vai ter uma indicação de uso, um reforço anual, ou bianual, a cada dois anos, ou ainda uma questão de reforço em campanha, se começarem a aparecer muitos casos, mas de uma população vulnerável”.
Ele estima que a imunização primária contra a doença deve ocorrer na pré-adolescência, “para todo mundo ficar protegido e diminuir a circulação da doença”, mas a “questão do reforço deve acabar sendo mais predominante para os grupos de risco”.
Não está claro, ressaltam os especialistas, como seria esse esquema vacinal, ou seja, quantas doses seriam aplicadas em cada um desses grupos. E por quanto tempo.
“Se nós formos continuar a conviver com o vírus, então a vacinação também irá continuar. Ora para aumentar a resposta imune, ora para atualizar a vacina contra novas variantes”, diz Guedes.
Como serão as novas vacinas?
O Sistema de Saúde Britânico (NHS) explica que o principal ingrediente de qualquer vacina é uma pequena quantidade de bactéria, vírus ou toxina que foi enfraquecida (vacina viva) e destruída (vacina morta) primeiro em laboratório.
A vacina contra o influenza, por exemplo, é feita com ovos embrionados de galinhas, onde o vírus será multiplicado. Esses ovos são incubados por cerca de 3 dias e o líquido que envolve o embrião é retirado, centrifugado, concentrado, fragmentado e inativado. É esse líquido, portanto, que se torna a suspensão da vacina de uma cepa do vírus. Para a vacina trivalente (contra três tipos), é necessário unir e misturar as três suspensões de cada vacina monovalente.
As vacinas contra o coronavírus usam diversas técnicas, como vírus inativado, vírus atenuado, mistura com outros vírus e até pedaços do genoma do vírus (RNA), como a proteína spike (usada para invadir a célula humana).
Cada vacina possui seu esquema vacinal, definido após testes que indicam a formulação e intervalo entre as doses, além do momento em que elas serão administradas. Os testes em laboratório é que irão definir as doses, as quais serão colocadas à prova nas primeiras fases dos ensaios clínicos e a dosagem será testada e regulada, ajustada.
Normalmente, o processo de desenvolvimento de uma vacina pode levar cerca de 10, 15 anos ou mais, pois costuma trilhar um caminho muito definido, com etapas estabelecidas. Só o planejamento costuma levar de 6 meses a 1 ano para ser feito. Pausas, testes e verificações estão presentes. Os aspectos regulatórios para desenvolvimento de uma vacina, que são as exigências para a liberação, podem levar anos para serem concluídos.
Mas a emergência da pandemia de covid-19 fez com que esses prazos fossem todos acelerados. Especialistas e autoridades médicas ao redor do mundo garantem, com bases em testes de milhares de voluntários e avaliação e acompanhamento de outros milhares de pessoas vacinadas, que os procedimentos de segurança e eficácia foram preservados.
“A vacina é um produto farmacêutico muito controlado, muito vigiado, estudado ao máximo, porque você toma uma vacina quando você está saudável e não é algo que você toma já estando doente. O rigor para você colocar uma vacina no mercado, todas as agências sanitárias, os médicos que são responsáveis pela segurança dessas preparações”, explica Astray.
Com o avanço da pandemia, as vacinas podem acabar precisando ser atualizadas. Ou seja, a nova forma do vírus é estudada e isolada pelos cientistas e a vacina, reconstituída. Mas isso não significa que o processo de produção comece todo da estaca zero. Laboratórios têm estimado que isso duraria em torno de seis meses.
E não se trata apenas de atualizações em relações às variantes, com objetivo de torná-las mais eficazes em reconhecer e combater as novas versões do coronavírus. Há também tecnologias diferentes que podem ser utilizadas.
No Reino Unido, a vacina da gripe intranasal (em spray inalável) já é distribuída para os alunos da rede pública de ensino, por exemplo. E isso pode acontecer também com o coronavírus, ajudando a combater o coronavírus em sua principal porta de entrada (e de saída): as vias aéreas superiores.
Isso porque muitas das vacinas injetáveis contra a covid-19 geram menos anticorpos nessa região, principalmente no caso da variante ômicron.
Há mais de uma dezena de vacinas inaláveis contra a covid-19, ainda em fase de estudos. Estima-se que essa forma de imunização teria um papel fundamental para ajudar a evitar não só que as pessoas fiquem gravemente doentes, mas, antes disso, que sejam infectadas e contaminem outras pessoas. A vacina inalável também é considerada mais fácil de ser distribuída para uma grande parcela da população, porque demanda menos tempo e técnica.
“(Vacinas nasais) são a única maneira de realmente evitar a transmissão de uma pessoa para outra”, disse Jennifer Gommerman, imunologista da Universidade de Toronto (Canadá), em entrevista ao jornal The New York Times.
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