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/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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Intolerância religiosa: “Brasil vive negação de direitos”, afirma especialista

Manifestação pelo combate ao preconceito religioso em frente ao Congresso Nacional, no ano de 2014; movimentos relatam crescimento da violência de lá para cá - ©Edilson Rodrigues / AFP
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21 de janeiro – Dia de combate à intolerância Religiosa. Violência aumentou nos últimos anos e políticas de combate foram enfraquecidas

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Em 21 de janeiro de 2000, a ialorixá Gildasia dos Santos morreu após sofrer uma ataque dentro do Ilê Axé Abassá de Ogum, terreiro de candomblé fundado por ela na década de 1980, em Itapuã (BA). Mãe Gilda, como era chamada, vinha sendo alvo de assédio e intimidação por membros da Igreja Universal do Reino de Deus.

No mês do outubro do ano anterior, o jornal Folha Universal publicou uma foto de Mãe Gilda em uma reportagem que trazia violentas e falsas acusações contra as religiões de matriz africana. A ialorixá teve a casa invadida por pessoas que destruíram o terreiro e agrediram o marido dela.

Após o crime, a saúde da religiosa se deteriorou e ela faleceu, vítima de um infarto. Além de líder espiritual, ela exerceu papel importante como ativista social. Anos mais tarde, em 2007, a data da morte de Mãe Gilda foi fixada como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.

Nos quinze anos de criação da efeméride, pouco mudou e os períodos mais recentes representaram retrocesso de parte do que foi alcançado, relata Ana Gualberto, ao Brasil de Fato. “Eu gostaria muito de estar aqui celebrando, dizendo que a gente tem números negativos. Mas infelizmente, nos últimos quatro anos, o que a gente tem percebido é um acirramento dos conflitos” relata  a historiadora.

Ela é coordenadora de ações com comunidades negras tradicionais da organização ecumênica Koinonia. Desde a década de 1990, o movimento se dedica a promover ações educativas e debater ações pela tolerância religiosa com a sociedade e o poder público.

Em entrevista, a historiadora fala sobre o cenário atual e alerta que para retomar os avanços pelo fim desse tipo de violência será preciso “refazer o país”.

Brasil de Fato: A lei que criou o Dia Nacional de Combate à intolerância religiosa completa quinze anos em 2022. É um marco, mas é possível dizer que houve avanço nesse período?

Ana Gualberto: É importante a gente lembrar que a lei vai fazer 15 anos, mas neste dia 21, completam-se também 22 anos que Mãe Gilda, do Abassá de Ogum, morre, vítima da intolerância religiosa. Essa data é instituída em um marco de morte. É a morte de Mãe Gilda que ilumina essa pauta para a sociedade brasileira.

Desde a morte de Mãe Gilda, foram sete anos de luta em que o processo que é movido contra a Igreja Universal vai até a última instância para ser julgado em Brasília. Mas ele é uma marco porque é a primeira vez que a gente tem uma instituição sendo condenada por intolerância religiosa. É a comprovação de que a lei pode ser cumprida. Pode e deve.

Eu gostaria muito de estar aqui celebrando, dizendo que a gente tem números negativos. Mas infelizmente, nos últimos quatro anos, o que a gente tem percebido é um acirramento dos conflitos. Os conflitos que têm como pano de fundo a intolerância, o ódio religioso e o racismo e chegam à prática de terrorismo religioso, só tem crescido no Brasil.

É possível conectar esse aumento ao momento político e social do país?

Não tem como deslocar esse crescimento desses casos das práticas extremamente conservadoras que a gente tem vivido no nosso país. O que temos vivido no Brasil é uma negação do direito do outro. Temos um estado teocrático, um estado cristão e fundamentalista.

A prática desse estado nessa construção faz com que as pessoas se sintam à vontade para praticar seu ódio, se sintam à vontade para praticar atos ilícitos e que não são qualificados como crime. A maioria das pessoas que chegam à delegacia para fazer uma denúncia de intolerância religiosa, não tem sua denúncia acolhida.

Somos um país que tem uma lei contra o racismo, que é um crime inafiançável, e não temos uma pessoa presa por racismo. É esse o cenário em que vivemos.

No ano passado, em plena pandemia, o busto de Mãe Gilda foi depredado, na Lagoa do Abaeté. O homem que estava depredando o busto foi preso na hora, conduzido à delegacia, inclusive as pessoas do terreiro foram juntos. Não se conseguiu realizar a queixa por intolerância religiosa.

A delegada colocou nos autos que o homem teve um surto psicótico, ela não tipifica o crime. Quando não tipificamos o crime, não conseguimos culpabilizar as pessoas. Nesses quinze anos, se criou instâncias de denúncias, onde as pessoas se sentem seguras para trazer esses casos. Mas infelizmente esses processos não andam. Eles não trazem a culpabilização dos seus personagens.

Para as religiões de matriz africana, coloca as pessoas em um lugar de dizer, “essa justiça, de verdade, ela não é para a gente”. Embora a intolerância religiosa possa ser praticada por qualquer outra fé, no nosso país mais de 75% dos casos são contra pessoas de religião de matriz africana.

Isso mostra que o racismo continua sendo a grande base da desigualdade e do processo de vilipendiar outras pessoas de seus direitos. Precisamos combater o racismo em sua estrutura social, que coloca a religião de matriz africana ainda demonizada, que coloca a nossa história, a nossa identidade como uma questão negativa para essa sociedade brasileira.

O fundo dessa discussão é racial. Para a gente superar a intolerância religiosa, a gente precisa confrontar o racismo.

No artigo, Intolerância Religiosa – a construção de um problema público, as pesquisadoras brasileiras Ana Paula Mendes de Miranda, Roberta de Mello Corrêa e Rosiane Rodrigues de Almeida citam a necessidade de que esse tipo de violência deixe de ser encarado como um conflito de valores, crenças e costumes e seja inserido no debate nacional como um problema público. Esse é um desafio?

O problema é público, estrutural e estruturante. Ele acaba estruturando as nossas relações. Por que a nossa fé incomoda? Porque toda a nossa história é negada. Porque desde a construção desse país nós fomos vistos como mão de obra em massa e continuamos sendo vistos dessa forma.

Continuamos sendo a pedra a ser lapidada, as pessoas que precisam melhorar. E o que é melhorar na visão intolerante? É abandonar essas identidades. Tudo o que nos traz a nossa raiz  afrobrasileira e afroindígena. É importante pontuar a quantidade de casas de rezas indígenas que tem sido queimadas no país.

As pessoas se sentem à vontade para invadir um terreiro e tocar fogo, para chegar numa casa de reza e tocar fogo. Muitas vezes, há ação do próprio estado de desrespeito desses espaços religiosos. Há diversas narrativas e processos em que a polícia militar adentrou espaços de religião de matriz africana de forma totalmente arbitrária.

Isso não acontece numa igreja dentro de uma comunidade, porque aquele espaço é reconhecido socialmente como espaço religioso, enquanto outros não são. Isso estrutura a forma como as relações são vividas dentro do nosso país. Como isso é construção social, podemos construir de outra forma.

Podemos desconstruir e construir outras relações e, a partir disso, pensar os espaços da educação e da comunicação como espaços onde vamos propôr novos debates, ouvir outros atores. Simplesmente entender que vivemos em uma sociedade diversa e múltipla, onde todas as pessoas, segundo a nossa constituição, deveriam ter seus direitos garantidos.

O processo democrático, essa democracia que nós defendemos, nunca chegou de forma real e concreta para a população negra e ela continua sendo negada.

É possível vislumbrar alguma possibilidade de resgate do que foi perdido em anos mais recentes?

Não sei se vamos conseguir resgatar. Acho que vamos voltar para um estágio no Brasil muito parecido com o que vivemos no processo de redemocratização. Na verdade, vamos refazer um país. Vamos tentar recuperar bases, compromissos, contratos sociais que achávamos que estavam tácitos nas nossas relações. Eles não estão ou estávamos sendo muito ingênuos em achar que algumas coisas estavam resolvidas e pactuadas.

Pensando principalmente no governo federal, que vai precisar ser totalmente reestruturado, vamos precisar ter pessoas técnicas de novo que entendam dos temas, que possam dialogar com a sociedade de forma ampla, que ouçam a sociedade e que ouçam a diversidade da sociedade. Para que a gente possa, de novo, começar uma caminhada.

Anos atrás, havia espaços de diálogo propostos pelo governo federal. Por que havia isso? Não era porque essa pauta era inventada, é porque o país é múltiplo e essas pessoas tem seus direitos, que precisam ser garantidos, precisam ser reconhecidos pelo Estado.

Vamos precisar fazer de novo esses compromissos, construir nossos pactos. Para isso vai ser fundamental o compromisso de uma gestão para todos os brasileiros e brasileiras, não apenas para um grupo.

Isso vai demorar, vai levar um tempo, mas a gente também entende que o nosso processo de violência também é muito longo e a gente está acostumado a resistir. Claro que enxergávamos vitórias à frente que não aconteceram. Mas veja, estamos falando de uma população que por muito tempo não tinha coragem de fazer uma denúncia.

Hoje, temos coragem de fazer uma denúncia e colocar essas pautas nas redes sociais na internet, nas redes, em veículos de comunicação. Temos conseguido, de alguma forma, que a nossa voz ecoe em alguns lugares.

Precisamos que ecoe mais ainda, porque essas vozes não são solitárias. Precisamos unir essas vozes para que elas consigam chegar ao país como um todo. Vai ser fundamental o compromisso de gestão que seja do Brasil de verdade, o país de todas as pessoas.

É esse Brasil que precisamos retomar. O país que está em voga hoje é um país branco, heteronormativo, cristão e que não vê o que não é igual a ele. O que desejamos de verdade é que possamos retomar essa construção de uma sociedade para todas as pessoas.

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