BdF ouviu religiosos e especialistas sobre o poder do diálogo e da comunidade na superação de uma perda sem precedentes
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O Dia de Finados, celebrado nesta terça-feira (2), chegou para a população brasileira permeado por estatísticas consternadoras este ano. Em vinte meses, o Brasil perdeu mais de 600 mil vidas para a pandemia do coronavírus.
Com menos de 3% da população mundial, chegou a concentrar mais de 13% das mortes de todo o planeta. O total de óbitos por causas naturais em território nacional, no ano passado, aumentou 22%, dado que inclui as vítimas fatais da covid-19.
Até o último mês de setembro, foi registrado um total de 1,4 milhões de falecimentos no país, um salto de quase 250 mil em relação ao mesmo período de 2020. Março deste ano foi o mês em que mais pessoas morreram em toda a história da nação.
O risco de perder a vida na pandemia chegou a ser 19 vezes maior do que no resto do mundo. Em meio a tantos números, foi difícil evitar a naturalização, mas o luto por mais de meio milhão de vidas perdidas permanece.
“São coisas que chocam e que acabam gerando posturas diferentes, outros rituais, em termos até de atitudes diante da morte”, afirma a historiadora Juliana Schmitt, que tem o luto como tema de pesquisa. Segundo ela, a pandemia gerou mudanças bruscas nos processos de despedida.
O ambiente hospitalar, antes ligado à sensação de segurança, hoje representa, muitas vezes, uma morte solitária. “A gente nunca imagina que essa pessoa vai estar lá sem ninguém que a ame em volta”, pontua.
Juliana ressalta que o distanciamento de assuntos relacionados à morte, potencializado nos últimos 100 anos, foi exacerbado pela covid-19.
Nas palavras da pesquisadora, a sociedade de hoje “terceirizou” o tema, mas a pandemia cortou o contato com os pacientes ainda em vida, tirou os momentos finais junto com pessoas queridas.
“É uma situação extrema. Até o século XIX, as pessoas morriam em casa. A gente já não tem isso, mas não ter nenhum contato mais com a pessoa? Esse nada, essa ausência é muito dramática e tem um peso emocional, psicológico muito grande”, diz ela, que percebe um movimento de retomada do diálogo sobre o assunto.
“Sozinhos não”
Embora o Dia de Finados não seja celebrado por todas as religiões, o peso emocional citado pela historiadora está presente na vida de seguidores e seguidoras de todas as crenças. Por isso, mesmo quem não visita os túmulos para homenagear os mortos, está diante do desafio de superar as perdas.
O Babalorixá Pai Lucas Minervino explica que, no Cadomblé, o luto não remete à amargura, mas à celebração da memória. Filhos e filhas de santo usam branco nos rituais e o 2 de novembro é vivenciado em casa e com a família. “Não são mortos, são os nossos antepassados. Estamos celebrando a vida daqueles que nos deram a vida.”
Segundo ele, é preciso reverter a naturalização das perdas. “Não tem uma pessoa que você vai apontar que não conhece alguém que morreu por causa desse vírus”, relembra. “A gente não pode se acostumar com o que é ruim. É preciso trazer a vida para a normalidade. Isso juntos, sozinhos não.”
“A ideia do luto é de união, de reunir as pessoas. Contar histórias, lembrar de coisas engraçadas que a pessoa viveu. Isso perdura anos e anos, vidas e vidas. Essa ancestralidade vai estar muito mais feliz.”
No catolicismo, onde é tradicional, a data existe desde o século X e começou com a intenção de dedicar um dia do ano às orações pela purificação das almas que se foram. Em 2020, fiéis buscam também o fortalecimento de quem fica.
“O respeito aos mortos se estende na solidariedade com os enlutados. Não podemos esquecer seus nomes, suas histórias, seus feitos. Fazer memória dos mortos pela visita aos cemitérios ou pela oração em casas ou igrejas é reconhecer que há inúmeros corações feridos pela morte das pessoas amadas”, afirmou dom João Justino de Medeiros Silva, arcebispo de Montes Claros, em Minas Gerais.
Entre os evangélicos, o Dia de Finados não é celebrado. O pastor e pesquisador Brian Kibooka, da Igreja Batista, que atua em Feira de Santana (BA), explica que a compreensão dos protestantes sobre a morte não prevê a salvação após o fim da vida, mas pelos atos de fé durante a existência.
Segundo ele, a ideia de que os efeitos da morte não podem ser remediados, abre espaço para que avance uma perspectiva negacionista. “Talvez por isso, muitos evangélicos consigam redimensionar a morte pela falta das medidas de proteção.”
O pastor faz um alerta: “Essa dança da morte – piorada, porque é liderada por um indivíduo que tem rasgos genocidas – está em curso e utiliza essas peculiaridades para que isso seja eficaz, para que isso seja eficiente.”
Em contrapartida a esse caminho, em entrevista ao Brasil de Fato em maio deste ano, Kibooka mencionou a importância da lembrança e da coletividade para superação do luto.
“O remédio que os cristãos encontraram para isso foi o compartilhamento da memória e a convicção de que a justiça tinha que ser feita.”
O que fica
A percepção de que o acúmulo de mortes pela pandemia tem levado as pessoas a falarem mais sobre o tema – trazida pela historiadora Juliana Schmitt – caminha junto com o movimento de coletivizar a superação das perdas, encarado como essencial nas comunidades religiosas e que pode servir de combustível para a continuidade.
Como parte de um projeto que chama a atenção para as responsabilidades do poder público diante dos óbitos causados pela covid, a Anistia Internacional Brasil e mais de vinte movimentos ouviram enlutados e enlutadas.
Os vídeos da campanha Omissão não é política pública mostram o impacto das ausências como motor de mudança e como peso emocional de toda a sociedade.
“Fomos testemunhas e vítima de muitas mortes. Essas muitas mortes passaram a ser consideras números e aconteceu uma desumanização dessas pessoas que perderam suas vidas. As pessoas que perderam entes tiveram que lidar com a dor de uma maneira muito brutal”, afirma Alexandra Montgomery, diretora de programas da organização*.
” A gente começou a ver que o estado estava falhando. Parte do governo começou a espalhar fake news, descredibilizar a imprensa. Tudo isso gera nas pessoas que sofrem uma dor adicional. Além da incerteza de não saber se você é o próximo, você continua vivendo sem perspectiva.”
Frente a essa constatação, a Anistia Internacional começou a buscar formas institucionais de pressionar as autoridades. “Não podem ficar de fora as histórias das pessoas”, ressalta Alexandra.
“É fundamental a gente resgatar a humanidade dessas pessoas. Resgatar e construir o processo de vivência do luto coletivo. Se a gente perde a dimensão coletiva, a gente pede a motivação para lutar. A motivação para entender que isso foi errado e que é uma injustiça”, finaliza.
www.brasildefato.com.br /Nara Lacerda