Não houve nenhum programa federal para minimizar o impacto da alta dos preços para a população carente, diferentemente de governos anteriores
A cadeia da indústria do gás liquefeito de petróleo é composta por diversos elos, entre a produção/importação e a distribuição ou revenda. A atividade de distribuição, considerada de utilidade pública, compreende a aquisição, o armazenamento, o envasilhamento, o transporte, a comercialização, o controle de qualidade e a assistência técnica ao consumidor. Por seu turno, a atividade de revenda varejista de GLP, também considerada de utilidade pública, compreende a aquisição, o armazenamento, o transporte e a comercialização em recipientes transportáveis de GLP com capacidade de até 90 quilogramas.
No se refere à atividade de GLP a granel, a comercialização é realizada entre as empresas distribuidoras e os consumidores que atuam principalmente no setor comercial. E que usam o combustível para cozinhar e para aquecimento de água em shopping centers, hotéis, restaurantes, lavanderias e hospitais.
Histórico recente da política de preço do gás
O processo de desregulamentação dos preços dos combustíveis foi iniciado em meados da década de 90. As principais alterações da política de preços estão sintetizadas abaixo:
- Lei n.º 9.478/1997 e Lei n.º 9.990/2000. Definiram o período de transição do processo de desregulamentação da política de preços dos derivados de petróleo até dezembro de 2001.
- Portaria do Ministério da Fazenda n.º 195, de 31/07/1996. Fixação do preço de faturamento do GLP na refinaria e liberação dos fretes e das margens de distribuição e de revenda; observados os preços máximos de venda ao consumidor estabelecidos por portarias conjuntas do MF e MME.
- Portaria Interministerial MF/MME n° 322, de 30/11/1998. Liberação dos preços do GLP, em botijões, nas unidades de comércio atacadista e varejista nos estados das regiões Sul e Sudeste.
- Lei nº 10.336, de 19/12/2001. O processo de desregulamentação foi finalizado em 1º/1/2002. Foi criada a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), liberados os preços nas unidades produtoras e retiradas barreiras à importação de combustíveis.
- Portaria Interministerial MF/MME n.º 125, de 03/05/2001. Liberação dos preços do GLP nas unidades de comércio atacadista e varejista nos estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
- Resolução ANP n.°17/2006 que vigorou no período de julho de 2006 a fevereiro de 2020. Comercialização entre produtores ou importadores e distribuidores de GLP destinado exclusivamente ao uso doméstico em botijão de até 13kg poderá ser efetuada a preços inferiores aos praticados na comercialização de GLP para venda aos demais usos.
Ressalta-se que o GLP exerce papel importante para a sociedade como um todo. Afinal, abastece a grande maioria dos domicílios brasileiros, em todas as classes socioeconômicas e não apenas as classes de renda mais baixas. Por isso, em 2002, após a liberação dos preços dos derivados de petróleo, o governo federal criou um programa de transferência de renda, denominado vale-gás. O programa contemplou cerca de 8 milhões de famílias já cadastradas em programas sociais do governo. Assim, elas passaram a receber R$ 7 por mês, que representava cerca de 25% do preço médio de um botijão de 13 quilos.
Já em 2003, com o objetivo de garantir renda às famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, foi criado o Programa Bolsa Família. Assim, esse novo programa unificou quatro diferentes programas sociais: Bolsa Escola, Cartão Alimentação, Auxílio Gás e Bolsa Alimentação. A incorporação do benefício do Auxílio Gás no Programa Bolsa Família resultou em uma ampliação significativa do número de famílias beneficiadas.
Em 2019, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) aprovou o fim da diferenciação do preço do gás nas unidades produtoras, aplicada desde julho de 2006. Essa medida passou a vigorar a partir de 1º de março de 2020. Nos nove primeiros meses do ano de 2020, o preço médio botijão de 13 kg de gás manteve-se estável em torno de R$ 70 (gráfico). Portanto, mesmo após o fim da diferenciação dos preços nas refinarias, não houve alteração dos preços médios ao consumidor final.
Evolução recente do preço do gás
No último trimestre de 2020, as variações do preço de revenda do botijão de gás de 13 kg iniciaram trajetória de alta. Assim, passaram do patamar de R$ 70 para R$ 74,75, o que representou aumento de 6,8%.
Com a alta dos preços internacionais de petróleo e, consequentemente, a elevação dos preços domésticos dos derivados, o governo federal, em março de 2021, zerou as alíquotas do PIS e Cofins sobre óleo diesel e GLP, com o intuito de minimizar o impacto sobre os índices de inflação. No caso desse último, o prazo de duração da medida era indeterminado.
Porém, a desoneração fiscal não foi suficiente para conter a alta dos preços. Desse modo, os sete primeiros meses de 2021 foram marcados pela disparada do preço do gás ao consumidor final. Com isso, o produto alcançou média de R$ 91,92/ botijão em julho de 2021. Ou seja, incremento de 23% em comparação com o preço médio de dezembro de 2020. Esse aumento, assim como a elevação dos preços ao consumidor final da gasolina, pressionou os índices de preços. Em consequência, o IPCA registrou alta de 4,76% entre janeiro e julho.
A alta dos preços impossibilitou a compra desse combustível essencial por parte das famílias menos favorecidas, o que resultou na substituição do GLP pela lenha e carvão com a finalidade de cocção dos alimentos e aquecimento de água.
Esse processo de substituição já estava ocorrendo nos anos anteriores à Pandemia, pois, de acordo com os dados disponíveis do IBGE, registrou-se, entre 2016 e 2019, aumento de 18% para 21% no número de famílias que usam lenha ou carvão para cozinhar. Nesse mesmo período, o Balanço Energético Nacional aponta que a participação da lenha na matriz energética residencial subiu de 24,4% para 26,1% e o GLP recuou de 26,5% para 24,4%.
Nesse contexto de situação gravíssima para as famílias de baixa renda, em função da escalada dos preços do GLP, do aumento da pobreza e das altas taxas de desemprego, alguns estados implementaram ou estão em fase de implementação de programas de transferência de renda para amenizar o problema. Com o intuito de exemplificar, seguem, em linhas gerais, os programas implementados em três estados: Ceará, Maranhão e São Paulo, conforme informações a seguir.
- Programa Social. Doação de botijão de GLP diretamente para as famílias de baixa renda cadastradas no Bolsa Família na faixa da extrema pobreza e no Programa Social Mais Infância Ceará. A estimativa é que 255 mil famílias serão beneficiadas com o programa até o final de 2021.
- Maranhão. Programa Social – Doação de botijão de GLP diretamente para as famílias inscritas no Cadastro Único. A estimativa é que 109 mil famílias serão beneficiadas com o programa até o final de 2021.
- São Paulo. Programa Social – Doação de três parcelas de R$ 100 para compra do botijão de GLP a serem pagas no segundo semestre de 2021. A estimativa é que 104 mil famílias serão beneficiadas com o programa até o final de 2021 no estado.
Conclusão
O GLP é um combustível essencial no uso de cocção de alimentos para a sociedade como um todo e abastece a grande maioria dos domicílios brasileiros, em todas as classes socioeconômicas.
Com a alta dos preços do gás no ano de 2021, as famílias de renda mais baixa que não têm condições para adquirir esse combustível, passaram a utilizar lenha para cozinhar alimentos.
Apesar da gravidade da situação, não houve nenhuma proposta de programa social ao longo do primeiro semestre de 2021, por parte do governo federal, para minimizar o impacto da alta dos preços do GLP para a população carente, como ocorreu em governos anteriores. Nesse período, alguns governos estaduais e/ou municipais implementaram programas de transferência direta de renda para a compra de GLP, os quais contemplam famílias de baixa renda e aquelas em situação de extrema pobreza.
www.redebrasilatual.com.br /Lúcia Navegantes Bicalho, mestre em Planejamento Energético (Coppe/UFRJ). Trabalhou no Programa de Conservação de Energia Elétrica, Estudos de Mercado e Planejamento Financeiro da Eletrobras. Foi Coordenadora da Área de Defesa da Concorrência (2011-2015) na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). É pesquisadora convidada do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.