“O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)” (Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013).
Desde o dia 7 de junho acontece a 109ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, por meio de plataforma virtual, em função de restrições impostas pela pandemia de Covid-19.
Até o dia 19 de junho, 187 Estados membros da OIT permanecerão reunidos para debates sobre questões relacionadas ao mundo do trabalho, com enfoque especial contido no programa e propostas para 2022-2023 em relação à recuperação de perspectivas sociais e econômicas mundiais, centradas no ser humano trabalhador no período pós-pandemia.
Rememoremos que o Brasil, particularmente o chefe do poder Executivo, desde o início da crise sanitária trilhou o caminho do negacionismo e deslocou a discussão para uma falsa dicotomia entre o direito à vida e a economia. Nesse cenário, políticas públicas afastaram-se do debate sensato e baseado nos conhecimentos científicos, e por incúria na aquisição de vacinas e insistente desestímulo de medidas prescritas pelas autoridades sanitárias, concorreu para as mais de 470 mil mortes, além das sequelas ainda não completamente conhecidas e mapeadas, mas que afetam a saúde e o bem-estar de milhares de brasileiros.
É notório ter a pandemia agravado os índices de pobreza e das desigualdades sociais em todo o globo, conforme aponta o estudo “Social protection responses to the Covid-19 crisis: Country responses and policy considerations”, da OIT.
No Brasil, medidas legislativas anteriores, e sobretudo a Reforma Trabalhista, muito prestigiada em alguns setores da vida pública e alardeada como uma modernização das relações de trabalho, ampliaram drasticamente as hipóteses de precariedade social. São dados de evidência o incremento do número de trabalhadores autônomos que por abstração puramente jurídica se converteram em microempreendedores individuais após a Leis 13.429 e 13.467, ambas de 2017.[1]
Sem as tradicionais proteções sociais, trabalhadores formais precarizados, além dos trabalhadores informais (afetando sensivelmente a situação de trabalhadoras e trabalhadores domésticos), sofreram e ainda sofrem com os impactos da redução da atividade econômica.
Qualificados como “invisíveis” pelo ministro da Economia, autoridade pública que é gestora da pasta que alberga os destroços do antigo Ministério do Trabalho, esses trabalhadores foram tardiamente assistidos e, ainda assim, com aporte (definido entre cartadas políticas) por período que se mostrou aquém do necessário frente ao descontrole da pandemia.
Desalinha-se o Brasil com as atuais preocupações da Organização Internacional.
Encontra-se na ordem das discussões da 109ª Conferência Internacional do Trabalho a construção dialogada de normas internacionais de proteção social, inclusive de natureza previdenciária, medidas que destoam da festejada reforma da previdência e do regime de excepcionalidade fiscal adotados no Brasil e que postergam a discussão da renda básica, não como caridade ou moeda política, mas como política pública séria e volta à inclusão social.
Quanto ao emprego, as medidas adotadas pelo governo por meio da Medida Provisória 933, convertida posteriormente na Lei 14.020, além de insuficientes à proteção do emprego no largo período de duração da pandemia (e os números do IBGE estão aí para não mentir), geraram, segundo dados do Ministério da Economia, impacto em mais de 11,7 milhões de contratos de trabalho com suspensões e reduções de jornada e salário, sem a necessária proteção sindical, o que configura quebra do dever de estímulo da negociação coletiva prevista pela Convenção 98 da OIT, ademais do injustificado tratamento diferenciado por faixas salariais e que desafia o senso de igualdade e não discriminação que vertem como ius cogens dos tratados internacionais de direitos humanos.
A despeito do entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADI 6.363, que permitiu a excepcional redução salarial sem negociação coletiva prévia, a Organização Internacional do Trabalho estimulou seus membros a adotar medidas de proteção a saúde e ao emprego em diálogo social.
A crise sanitária não espalhou boas práticas e, ao contrário, agravou a posição brasileira na explícita vulneração dos marcos de governança do diálogo social.
O próprio controle constitucional promovido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, prévio ao debate social e parlamentar, pode ser compreendido como prática em desacordo com o diálogo social a que se obrigou a República Brasileira pela Convenção de 144 da OIT.
Mas vamos à verdade, pois, sim, ela importa. Em artigo publicado na ConJur e intitulado “Brasil saiu da lista curta da OIT: a verdade importa?”, afirmou-se que a suposta saída o Brasil dessa “lista curta” teria ocorrido porque “a OIT não vislumbra, neste momento, que nosso ordenamento jurídico viola suas normas internacionais”.
Perdoe-nos o leitor, mas alguns reducionismos serão necessários.
A OIT não profere juízos de valor sobre “casos”. A mais antiga das organizações internacionais funciona de forma muito similar aos Estados nacionais, com um Legislativo (Assembleia Geral), Executivo (Conselho de Administração), “Judiciário” (Sistema de Controle de Normas), e sua composição é tripartite — representantes dos trabalhadores, empregadores e governo são constituintes com iguais direitos.
Cabe aos órgãos de controle de normas analisar o cumprimento das Normas Internacionais do Trabalho, Convenções e Recomendações da OIT. Para os fins desse artigo, interessa-nos a Comissão de Aplicação de Normas (CAN). Esta é composta pelos representantes de cada constituinte e pelo Comitê de Peritos e se reúne anualmente durante a Conferência Internacional do Trabalho (CIT).
A partir do Relatório Anual produzido pelos Peritos, os representantes dos trabalhadores e dos empregadores constroem uma “lista longa” de casos (em torno de 40) que pretendem analisar na CAN. Dessa lista preliminar, os constituintes, em processo de negociação, selecionam em torno de 24 casos (“lista curta”) que efetivamente serão debatidos.
O Relatório Anual dos Peritos tem por base as informações que são enviadas pelos constituintes sobre o cumprimento ou não das convenções ratificadas pelos Estados, e obedecem a um ciclo pré-definido que correlaciona o país e um determinada Convenção. Por exemplo, neste ano o Brasil tem que enviar memoriais/informações sobre as Convenções 6, 29, 105, 122, 124, 138, 182 e 189[2].
A escolha dos casos para a “lista curta” não é feita pela OIT, e a ausência de um determinado caso na lista não significa que não existam violações, ou que não é grave.
Como se trata de um processo negocial, as partes priorizam suas escolhas de acordo com critérios próprios. Dentro dessa dinâmica, o “caso do Brasil” cedeu espaço para que as violações aos direitos humanos mais básicos, como a vida, que estão ocorrendo na Colômbia e Honduras, fossem objeto de debate e escrutínio internacional.
O fato de o Brasil não ter entrada na “lista curta” de casos da CAN só significa que o debate foi postergado para CIT’s futuras. A inadequação da Lei 13.467 com as Convenção 98 e 154 da OIT segue inquestionável.
Basta trazer à baila que o Comitê de Peritos da CAN tem afirmado de forma reiterada, desde 2016, que “el objetivo general de los Convenios núms. 98, 151 y 154 es la promoción de la negociación colectiva para encontrar un acuerdo sobre términos y condiciones de trabajo que sean más favorables que los previstos en la legislación (véase Estudio General de 2013, La negociación colectiva en la administración pública: Un camino a seguir, párrafo 298). La Comisión subraya que la definición de la negociación colectiva como proceso destinado a mejorar la protección de los trabajadores brindada por la legislación está recogida en los travaux préparatoires del Convenio núm. 154, instrumento que tiene la finalidad, tal como especificado en su Preámbulo, de contribuir a la realización de los objetivos fijados por el Convenio núm. 98. En dichas discusiones preparatorias se consideró que no era necesario explicitar en el nuevo convenio el principio general según el cual la negociación colectiva no debería tener como efecto el establecimiento de condiciones menos favorables de las establecidas en la ley — el comité tripartito de la Conferencia establecido para encaminar el proyecto de convenio consideró que ello era claro y que, por consiguiente, no era preciso incluir una mención expresa al respecto”[3].
Fora essa aula sobre Negociação Coletiva, os Expertos da CAN também já se manifestaram de forma reiterada no sentido de que o Brasil deve, em conjunto com os representantes dos trabalhadores e empregadores, revisar o Artigo 611-A da CLT para adequá-lo às Convenções 98 e 154.
Cabe aos trabalhadores, por meio de suas organizações, vocalizar o que lhes é melhor, o que é negociável, e aquilo de que não se abre mão. A Reforma Trabalhista em nada auxiliou as entidades sindicais a serem mais representativas e legítimas, se é que essa era sua intenção mesmo.
Podemos dizer tranquilamente que o desejo não é o “retorno ao que era antes”, mas que qualquer construção e alteração das legislações e políticas públicas voltadas ao mundo do trabalho sejam feitas dentro de parâmetros democráticos considerados indeclináveis e considerem a necessária participação e consideração a da vontade de todos, e não só dos empresários.
E dizer isso não significa qualquer conduta antipatriótica ou política de agravamento da imagem internacional do Brasil. É apenas o dever de dizer a verdade!
O caso de violação da Convenção 98 pelo Brasil permanece apontado na lista longa e sua conclusão está longe de acabar, podendo retornar, inclusive, em 2022. Nesse, período o caso brasileiro está sob observação e dever de informação.
Não há o que comemorar
A inclusão de um país na lista longa ou na lista curta da OIT como países violadores das normas internacionais do trabalho, não se comemora, pois isso significa retrocesso social, precarização, desprezo pelo ser humano trabalhador, asfixiamento de entidades sindicais e afastamento das negociações coletivas e do imprescindível diálogo social.
Um país que possui atualmente 14,4 milhões de desempregados, mais de seis milhões desalentados e 34 milhões de trabalhadores e trabalhadoras na informalidade não pode ser considerado um país com “boas práticas trabalhistas” perante a comunidade internacional. Isso não é motivo para aplausos.
As Medidas Provisórias editadas em 2020 que privilegiaram acordos individuais em detrimento do coletivo apontam que o Brasil, além de permanecer desatento à Convenção 98 da OIT (que o incluiu na lista curta nos anos de 2018 e 2019), ainda demonstra cabalmente que despreza as solicitações do Comitê de Peritos daquele órgão para que promova o diálogo social e que preste informações à OIT.
Com as adequações legislativas, e nas práticas, comemoraremos de verdade a saída do Brasil da lista curta de países violadores de convênios fundamentais da OIT e, quem sabe, comemoraremos juntos a alteração de um modelo social de miséria e desigualdade instalado em nosso país, saindo, definitivamente, da década do autocentrismo.
Até lá, compete às entidades de trabalhadores e àquelas compromissadas com os direitos sociais, que possuem voz na OIT, permanecer vigilantes, prestando as devidas informações, lastreadas na verdade, na realidade do país e efetivando as denúncias necessárias, competindo ao estado brasileiro seguir as regras constantes das normas internacionais do trabalho das quais é signatário e adequar a legislação e práticas trabalhistas e governamentais às normas internacionais.
[1] Segundo os dados pela Receita Federal do Brasil até dia 05 de junho de 2021 são 12.280.867 trabalhadores registrados como microempreendedores individuais no Brasil. Confira: Estatísticas Sinac (fazenda.gov.br).
[2] https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=1000:14000:0::NO:14000:P14000_COUNTRY_ID:102571
[3] https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=1000:13100:0::NO:13100:P13100_COMMENT_ID:3300844
www.conjur.com.br /por Alessandra Camarano, Daniela Muradas e Fabio Tibiriçá Bon