Três estados tiveram recordes de mortes; colapso no sistema de saúde, antes restrito ao Amazonas, agora atinge várias partes do país.
O Brasil registrou, em fevereiro, 30.484 mortes pela Covid-19, segundo dados apurados pelo consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias de Saúde do país. Mesmo com dias a menos e últimos dias durante um fim de semana – o que afeta os registros das mortes –, fevereiro teve o segundo número mais alto de mortes desde o início da pandemia, e o maior desde julho.
Fevereiro também foi o terceiro mês consecutivo em que as mortes de um mês superam as do mês anterior:
As médias móveis diárias calculadas pelo consórcio de imprensa estão acima de mil mortes por dia há 39 dias. No dia 25, o Brasil registrou o recorde de mortes em 24h desde o início da pandemia: 1.582 pessoas morreram.
O dado referente às mortes de fevereiro foi calculado subtraindo-se as mortes totais até janeiro (224.534) do total de mortes até 28 de fevereiro (255.018). Os números dos meses anteriores foram determinados com a mesma metodologia (veja mais ao final da reportagem).
‘Voo cego’ com variantes
Pessoas usando roupas e equipamentos de proteção contra o coronavírus Sars-CoV-2 andam em meio a túmulos de vítimas da Covid-19 no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, no dia 25 de fevereiro. — Foto: Michael Dantas/AFP
O epidemiologista Airton Stein, professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), explica que a pandemia da Covid, no mundo inteiro, é como uma montanha-russa.
“Essa pandemia no mundo todo se caracteriza como uma montanha-russa – no sentido científico. Num momento parece que a gente está chegando no final – no ano passado, com as vacinas, parecia que iríamos estar próximos de uma solução. E aí, logo a seguir, vieram as variantes”, lembra.
“Certamente está tendo um vírus que é mais transmissível, o que faz parte da história evolutiva de todos os vírus, então isso também não é uma coisa nova. A gente sabe que o vírus tem mutação, mas não está controlando essas novas variantes. Não tem, em todo o país, um número adequado de vigilância genômica. A gente está fazendo um voo cego“, afirma Stein.
“Os indicadores são muito claros. Quanto mais transmissível, maior risco de ter um maior número de casos graves – por isso que está aumentando tanto a ocupação de leitos de UTI. Essa pandemia pegou o Brasil de calças na mão, despreparado. Houve um desinvestimento na saúde pública, na ciência, muita desinformação – dificuldade de passar uma informação coesa para a população”, avalia o professor da UFCSPA.
“É uma situação muito complexa, mas isso ficou mais exposto nos países onde tem falta de estrutura de bem-estar social – não apenas sistema de saúde, mas de apoio para aquelas populações vulneráveis e, principalmente, com um número muito grande de vulneráveis. Tanto que a gente está vendo que a epidemia causou um dano muito grande em países ricos como os EUA, onde tem muita iniquidade. A epidemia deixou mais em evidência essa interação social com a saúde. As pessoas estão mais expostas a circularem por terem trabalhos em que precisam circular e, também, por não terem acesso a serviços de saúde adequados. Esse é o cenário geral”, afirma Airton Stein.
Colapso nos estados
Drauzio Varella: ‘Olha no que deu fazer aglomerações nos bares, festas clandestinas e carnaval’
Vários estados viram o colapso de seus sistemas de saúde, tanto público quanto privado. Esse cenário já havia sido previsto por especialistas em janeiro, quando acabou o oxigênio de hospitais de Manaus e pacientes morreram asfixiados.
A avaliação de médicos, epidemiologistas e outros cientistas era de que o colapso visto no Amazonas se repetiria no resto do país por diversos motivos: as festividades de fim de ano, a variante mais contagiosa e a baixa adesão às medidas restritivas.
Ao G1, alguns afirmaram que a situação ainda pode piorar em março, por causa das aglomerações e viagens de Carnaval – cujos reflexos devem ser sentidos de forma mais intensa em meados do mês.
Veja, abaixo, a situação de alguns estados em fevereiro:
Rio Grande do Sul
O governo decretou bandeira preta para todo o estado na sexta-feira (26). No dia seguinte, os hospitais de Porto Alegre ultrapassaram 100% de ocupação pela primeira vez desde o início da pandemia. A Secretaria Estadual de Saúde recomendou a suspensão de cirurgias eletivas até 31 de março.
“A capacidade instalada de leitos de terapia intensiva em Porto Alegre está esgotada”, afirma Nadine Clausell, diretora do Hospital de Clínicas da cidade (HCPA), referência para atendimento a pacientes com Covid.
“A gente passa o dia inteiro recebendo pacientes não só da região metropolitana, mas também do estado, especialmente do litoral. Acaba tudo vindo para Porto Alegre, os hospitais aqui esgotados. É uma expansão de uma rede que já está esgotada e que caminha para a precariedade e às custas de reduzir a capacidade instalada para atender os pacientes que não são Covid“, lembra.
A UPA Moacyr Scliar, na zona Norte de Porto Alegre, já atendeu mais de 25 mil pacientes da Covid-19. Na terça-feira (23), atendimentos externos foram cancelados pela ocupação total de pacientes do novo coronavírus em atendimento na unidade. — Foto: Miguel Noronha/Agência Estado
“A gente está usando sala de recuperação, reorganizando salas de bloco para absorver esses pacientes, e com equipes muito exaustas que estão se revezando com uma quantidade gigantesca de horas de trabalho. Nós já botamos anestesistas para cuidar de leitos de terapia intensiva, cardiologistas. É realmente uma situação de caos em Porto Alegre”, afirma a diretora.
“É importante sinalizar que a gente está observando uma mudança na faixa etária, pessoas um pouquinho mais jovens. A gente tem a impressão de que nessa fase agora a doença está avançando mais rápido, de uma maneira mais agressiva. Isso são coisas que só sobrecarregaram e botam mais pressão ainda no sistema de saúde”, diz.
“Eu não sei o que vai acontecer, como é que a gente vai segurar essa onda nas próximas semanas. Todo dia é pior que o dia anterior, entende? Não tem um dia que melhore um pouquinho. Todo dia é pior”, afirma Clausell.
Fora dos hospitais a situação também é caótica.
“A gente está sobrecarregado. O sistema funerário está sobrecarregado. Ainda não chegou ao extremo de começar a abrir vala, como foi em Manaus, mas eu vou te falar que está perto disso”, diz o médico de família André Silva, que faz atendimentos domiciliares a pacientes com sequelas da Covid na capital.
Covid prolongada – sintomas permanecem mesmo depois da cura
“Pessoas que a gente conhece que faleceram, parentes, elas só conseguem fazer velório por uma hora e está conseguindo vaga em [uma espera média de] dois dias. Não é uma coisa assim, ‘faleceu, consigo ter acesso à capela para velar meu ente querido’. São dois dias. Então a gente está com o sistema funerário também no limite”, completa Silva, que também é professor da UFCSPA.
Ele também faz o alerta de que o aumento de casos na cidade ainda não é reflexo do Carnaval, e sim do verão.
“Porto Alegre tem um movimento migratório; a gente tem as pessoas que vão pro litoral e depois voltam, pós-Carnaval. O [efeito] do Carnaval a gente vai sentir ali pelo fim da primeira quinzena de março. Ainda não veio. A gente infelizmente está tendo que se preparar para o pior”, lamenta.
A epidemiologista e professora da UFCSPA Lucia Pellanda afirma que as pessoas cansaram de seguir as medidas contra a disseminação do vírus.
“Como por muitos meses não aconteceu nada [em Porto Alegre], as pessoas começaram a cansar. Esse comportamento da população – mais a nova variante – foi uma combinação explosiva. Quando é uma curva exponencial, é tão rápido que [o sistema de saúde] não vai dar conta. É o que a gente estava alertando há tanto tempo. Está faltando uma comunicação bem efetiva – acho que uma parte da sociedade não entendeu o problema. Às vezes dá um desânimo”, diz.
O Rio Grande do Sul teve, em fevereiro, o terceiro pior mês da pandemia em número de óbitos: 1.723 pessoas morreram. Nesta segunda (1º), a Justiça suspendeu as aulas presenciais no estado.
No Paraná, Curitiba tinha 4 hospitais com 100% de ocupação de leitos de UTI Covid nesta segunda (1°). Cirurgias eletivas foram suspensas no estado por 30 dias.
Acre
Além da pandemia, o Acre enfrenta surtos de dengue, enchentes e uma crise migratória. Só dois municípios do estado têm leitos de UTI: Rio Branco, a capital, e Cruzeiro do Sul. No sábado (27), só havia 6 leitos de UTI disponíveis pelo SUS.
O médico Rodrigo Damasceno, que atendeu um menino em meio à cheia do rio em Tarauacá, a 400 km de Rio Branco, descreve a situação:
“Eu estou muito preocupado com essa situação da alagação, porque já estamos com o sistema saturado, no limite. [Com as inundações], muitas famílias que saíram de casa e foram para os abrigos compartilharam espaços comuns. A chance de se contaminarem [com a Covid] é grande. Aqui as casas nas regiões onde alaga são em palafitas. Então, se tem essa casa bem alta, as pessoas iam todas para lá. Casas com 5, 6 famílias”, relata.
Bebê, que tem apenas dois anos, está com pneumonia, segundo o médico Rodrigo Damasceno — Foto: Arquivo pessoal
Ele também se preocupa com o impacto social que as enchentes e a pandemia têm deixado no estado.
“O nosso município tem 40 mil habitantes. Metade dos postos de saúde ficou submersa, 80% da cidade ficou comprometida. O impacto social é muito grande, as pessoas perderam tudo. O Acre é muito pobre economicamente falando. A capacidade de ajuda, de superação dessas dificuldades é bem menor. Dependemos muito da transferência do governo. Deixou de vir o auxílio [emergencial], muitas famílias estão sentindo de forma abrupta. São 6 mil famílias cadastradas. Nem pessoas, famílias“, reforça Damasceno.
“Quando a água baixa, a tendência é acumular água. O depois é tão importante quanto. É quando vai colher os frutos das doenças, o período de incubação da Covid”, lembra.
O Acre teve 131 mortes por Covid em fevereiro. O número é o terceiro maior desde o início da pandemia.
Rio Grande do Norte
Redes pública e particular de saúde no RN entram em colapso
O Rio Grande do Norte começou, de sábado para domingo, um toque de recolher, na tentativa de frear os casos de Covid-19. Em Natal e região metropolitana, o colapso do sistema de saúde fez com que pacientes tivessem que ser transferidos para o interior.
A fonoaudióloga Jéssica Lima, que atende em domicílio pacientes que tiveram Covid-19, afirma que a situação na capital potiguar é “extremamente difícil”.
“Está quase inviável. Nós estamos lidando com UPAs superlotadas, hospitais fechando emergência, tem lista de espera em UTI, número de óbitos crescendo, tem gente morrendo todos os dias. As pessoas conveniadas não têm leito, não têm vaga. Os pacientes ficam em poltrona na UPA. A gente está passando por uma situação bem difícil”, afirma.
Ela também relata que há pouca conscientização das pessoas quanto às medidas preventivas.
“O nível de conscientização das pessoas é muito baixo, ficam na rua a torto e a direito. A falta de conscientização eu digo, sem medo de errar, é da população de classe alta. Por terem acesso à saúde, eles se acham no direito de fazer o que quiser. Tem pessoas que foram expulsas de locais por não quererem usar máscara”, diz Lima.
A fonoaudióloga relata que, nos atendimentos que faz na casa de pacientes, o cuidado com o vírus também relaxou, e também avalia que profissionais de saúde que atendem em domicílio têm sido desconsiderados como linha de frente.
“No início da pandemia era muito mais [preocupação]. Hoje já banalizou, você entra [na casa] de qualquer jeito. A gente [que atende em domicílio] é um alvo negligenciado. As pessoas não entendem a gente como linha de frente à Covid”, diz.
“Eu acho que o que está piorando é que as pessoas colocaram na cabeça que o lockdown feito no início da pandemia não funcionou – que se tiver que adoecer, adoece. O maior hospital daqui é o Rio Grande, lá já fechou urgência. São Lucas fechou, Hospital do Coração fechou. Sorte que isso aconteceu em dias distintos. Eu me preocupo no dia em que todos fecharem“, afirma Lima.
O Rio Grande do Norte registrou 300 mortes por Covid em fevereiro, o quinto maior número desde o início da pandemia.
São Paulo
Pela primeira vez desde o início da pandemia, o estado de São Paulo registrou, em fevereiro, mais de 7 mil pacientes internados em UTIs com Covid-19. Na capital, três dos maiores hospitais privados têm leitos com índice de ocupação próximo a 100% ou com lotação máxima, assim como o hospital de referência da rede estadual.
Em Araraquara, a cerca de 270 km da capital, o número de mortes neste ano já é maior do que o visto em todo o ano de 2020: no domingo, eram 205.
A enfermeira Jéssica Cantão, que trabalha na cidade, afirma que a região está saturada, até no hospital de campanha local. “Na semana passada, a gente tinha vários pacientes aguardando vaga. Não tinha nem UTI, nem enfermaria”, relata.
Ela diz ter notado que aumentaram os casos entre jovens.
“Por conta dessa nova cepa, a gente viu um crescimento muito em jovem. E esses jovens estão indo a óbito, mesmo não tendo comorbidades. Eles estão chegando mais graves. A forma de transmissão está sendo mais rápida”, relata.
“Acredito que muitos ainda não caíram na realidade. Essa semana eu abri o Facebook e só via luto nas redes sociais. Muitas pessoas perderam seus entes queridos – pessoas jovens, de 30, 40 anos. É revoltante que as pessoas não se cuidam. Elas não imaginam o que a gente passa lá dentro. A gente está cansado, faz um ano que está nessa. Claro que não pode julgar, mas acaba ficando revoltado com a situação”, diz.
Ela acredita que a pandemia poderia ser um momento de valorização, inclusive salarial, da enfermagem.
“A gente não deveria receber só aplauso e não ter benefícios, algo palpável. Tudo o que a gente passa lá dentro é muito difícil. E tem a questão psicológica: será que eu vou levar pra casa? Se eu me contaminei ou minha família, será que meus familiares vão ficar graves?”, questiona.
Quase 11% do total de mortes por Covid no estado de São Paulo foram em fevereiro: 6.459. Ao todo, eram 59.493 mortes pela doença até domingo (28).
Recordes de mortes
Três estados tiveram recordes de mortes mensais em fevereiro: Minas Gerais, Rondônia e Roraima.
Em Minas, 3.505 pessoas perderam a vida para a Covid em fevereiro. Uberlândia tem um dos cenários mais graves.
Em Roraima, foram 244 mortes em fevereiro, levando o total a 1.100. O recorde anterior era de julho, quando 222 pessoas morreram pela doença. O Hospital Geral (HGR), referência no tratamento da doença no estado, segue com 100% de ocupação nos leitos semi-intensivos pelo segundo dia nesta segunda (1°).
Mortes por estado
Em fevereiro, os estados registraram as seguintes mortes por Covid-19, segundo as secretarias de Saúde:
- SP: 6.459
- MG: 3.505
- RJ: 3.269
- AM: 2.743
- RS: 1.723
- BA: 1.722
- PR: 1.628
- GO: 1.032
- SC: 1.018
- PA: 988
- CE: 807
- MT: 677
- PE: 648
- RO: 606
- ES: 547
- PB: 440
- MS: 410
- MA: 355
- RN: 300
- PI: 287
- DF: 284
- AL: 253
- RR: 244
- SE: 183
- TO: 144
- AC: 131
- AP: 81
Vacinas em falta
Ao menos oito capitais tiveram que suspender ou restringir a vacinação por alguns dias por falta de doses: Salvador, Cuiabá, Campo Grande, Rio, Curitiba, Fortaleza, Florianópolis e São Luís. Com a chegada de novos lotes, a imunização foi retomada.
No dia 23, o Brasil recebeu 3,2 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19: 2 milhões da vacina de Oxford/AstraZeneca e 1,2 milhão da CoronaVac. As doses começaram a ser distribuídas aos estados no dia 24; um erro do Ministério da Saúde, entretanto, fez com que 76 mil doses fossem entregues ao Amapá ao invés do Amazonas. O erro foi corrigido.
O balanço da vacinação contra Covid-19 no país aponta que, até domingo (28), cerca de 6,5 milhões de pessoas haviam recebido a primeira dose de uma vacina contra a Covid no país. O total corresponde a 8,44% das 77 milhões de pessoas que estão em grupos prioritários e a 3,1% da população brasileira.
Metodologia
O consórcio de veículos de imprensa começou o levantamento conjunto no início de junho. Por isso, os dados mensais de fevereiro a maio são de levantamentos exclusivos do G1. A fonte de ambos os monitoramentos, entretanto, é a mesma: as secretarias estaduais de Saúde.
Outra observação sobre os dados é que, no dia 28 de julho, o Ministério da Saúde mudou a metodologia de identificação dos casos de Covid e passou a permitir que diagnósticos por imagem (tomografia) fossem notificados. Também ampliou as definições de casos clínicos (aqueles identificados apenas na consulta médica) e incluiu mais possibilidades de testes de Covid.
Desde a alteração, mais de mil casos de Covid-19 foram notificados pelas secretarias estaduais de Saúde ao governo federal sob os novos critérios.
www.g1.globo.com /Lara Pinheiro