No último dia 11, o Banco do Brasil anunciou um plano de reestruturação da empresa, reacendendo o sinal de alerta para uma possível privatização. O plano prevê, entre outras medidas, o fechamento de 361 agências e a demissão voluntária de cerca de 5% do total de empregados.
Após repercussão, o presidente Jair Bolsonaro ameaçou demitir o atual presidente do BB, André Brandão. Na opinião de Antônio Vicente Martins, ex-presidente da Associação Gaúcha de Advogados Trabalhistas e integrante da Rede Lado, organização de escritórios trabalhistas que têm realizado um debate público sobre as reformas, o gesto do presidente da República está longe de indicar alguma preocupação em relação aos empregados ou à sociedade. Revela, simplesmente, a preocupação de Bolsonaro com eventuais danos à sua imagem, já bastante arranhada por conta da inação diante da pandemia.
Em entrevista à Carta Capital, Martins fala das consequências da “uberização” das relações de trabalho, acelerada pela reforma das leis trabalhistas pelo governo Temer, do fechamento das fábricas da Ford no Brasil, e do papel do governo Bolsonaro na continuidade dessa política.
A saída da Ford e o anúncio de um plano de demissões do Banco do Brasil têm relação com a reforma trabalhista?
As reformas trabalhista e da Previdência prometiam uma modernização das relações de trabalho e até um aumento de contratações de trabalhadores. E, na verdade, as consequências são opostas a isso. A reforma só precarizou as relações de trabalho e a própria política industrial de desenvolvimento do País. O fechamento de empresas, como está acontecendo agora, é em decorrência da própria estratégia adotada por esses setores.
Nós sustentávamos que, ao contrário do que os apoiadores da reforma diziam, ela só serviria para precarizar e favorecer o grande capital; e o grande capital é um capital usurpador, rentista; é um capital internacional e especulador. Isso se comprova agora. Por quê? Porque esse capital especulador, quando não vê mais num País da dimensão do Brasil a possibilidade de consumir seus produtos, se retira. É o que aconteceu agora com a Ford, por exemplo. Longe de melhorar as relações de consumo, longe de aumentar o número de trabalhadores formais, a reforma trabalhista serviu, simplesmente, para diminuir as relações formais de emprego.
E essa precarização pode ser exemplificada pela situação dos trabalhadores de aplicativos?
Se há uma massa de mão de obra excedente, ela só pode ser mais e mais explorada. A reforma transforma a massa trabalhadora em informais; joga essa massa para um mercado dominado pelos aplicativos, que é precarizado, sem garantias mínimas por parte das empresas.
Então, isso, em vez de eliminar custo, gera um custo gigantesco do ponto de vista social e do ponto de vista do Estado, que vai ter de arcar com esses custos. Portanto, o trabalhador que está desempregado, ou no subemprego, trabalhando como Uber, quando ficar doente, vai ter atendimento por parte do Estado, apesar de não ter feito nenhum tipo de contribuição para esse atendimento. E a empresa a qual ele está vinculado, também não fez nenhum tipo de contribuição, ou seja, é uma situação dramática a curto e médio prazo.
Qual o papel do governo Bolsonaro nesse processo?
Quando o governo Bolsonaro extingue, como primeiro ato, o Ministério do Trabalho e Emprego, já traz uma consequência: eliminar qualquer política de proteção ao trabalhador. E isso afeta as empresas nacionais.
O governo Bolsonaro não tem uma política de desenvolvimento nacional. Não tem política nenhuma, vamos deixar bem claro. Mas quando o governo extingue o Ministério do Trabalho, claramente sinaliza a inexistência de políticas de proteção ao trabalho e e ao emprego. Ou seja, que trabalho e emprego não são preocupações deste governo.
E isso gera uma precarização gigantesca nas relações de trabalho, gera essa multidão de desempregados, aprofundando a miséria e a própria recessão, que acaba atingindo as empresas que deram sustentação à reforma trabalhista.
Como contrapor o discurso de que os encargos atrapalham o empresário brasileiro?
A grande questão que deveria ser discutida, com um mínimo de integridade intelectual, é que o Estado tem de ter um papel importante nas políticas de desenvolvimento. Não temos que criminalizar o empresário, mas, também, não podemos achar que a lei do mercado pode e deve regular as relações das pessoas. Então, o Estado deve, sim, proteger e incentivar políticas de desenvolvimento. Mas políticas de desenvolvimento que respeitem os direitos das pessoas.
A gente vê exemplos em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos, em que o Estado tem, sim, política de desenvolvimento e proteção. Não podemos esquecer, por exemplo, que na grande crise de 2008 foi o governo dos Estados Unidos quem salvou as grandes empresas americanas. A indústria do automóvel americana foi salva pelo governo dos Estados Unidos. Como também não podemos esquecer que, no Brasil, todo um parque industrial foi favorecido por políticas adotadas pelo Estado. E o empresariado também tem de reconhecer isso. “Ah, o empresário não se sente atraído por investir no Brasil”. Como assim?
Pode dar um exemplo dessa regulação?
Não há nada mais regulatório do que, por exemplo, o mercado europeu. Não existe nada mais regulador, que estabeleça condições para todas as indústrias, do que o mercado europeu. É isso que o Brasil precisa ter: políticas muito claras de desenvolvimento e de proteção ao trabalho e ao emprego. Essas medidas incentivam o empreendedorismo com responsabilidade social.
A precarização das relações de trabalho no Brasil vai em direção à África. Nem nos Estados Unidos é tão precário. O que tem de ser pautado é a renda mínima, como defendida pelo vereador Eduardo Suplicy (PT-SP). As relações de trabalho são relações de dignidade humana.
Por que dá segurança…
Dignidade. O emprego tem um caráter de dignidade. As pessoas se sentem dignas tendo um trabalho, um emprego. E o projeto de precarizar o trabalho, de eliminar as formalidades do trabalho, é um projeto de atentado à dignidade humana. Ninguém pode ter dignidade tendo de trabalhar 16 horas por dia para conseguir comer. Não é honesto, do ponto de vista intelectual, alguém defender que uma pessoa que trabalhe de Uber, ou no Ifood, seja um empreendedor. Não é honesto intelectualmente alguém defender isso.
É cinismo?
É uma completa hipocrisia. Não tem como esse cidadão ser empreendedor. Empreendedor de quê? Trabalhando 16 horas por dia, com uma bicicleta, levando comida. No final do dia, vai ter dinheiro para pagar a comida dele e pronto. O que se tem de pensar é na criação de uma rede de proteção para essa nova classe trabalhadora de entregadores de aplicativos. Porque ela é, sim, uma classe trabalhadora. Pensar isso é fundamental.
Passados três anos de reforma trabalhista, estamos numa situação muito pior?
Estamos em uma situação muito pior porque o governo Bolsonaro, com sua ausência de políticas de desenvolvimento nacional e com seu ataque ao trabalho formal, acelera e aprofunda o processo de precarização. O aprofundamento da precarização, ao contrário de aumentar os investimentos no Brasil, afasta os investidores, porque o nível de precarização atingido aumenta o custo do País. Diminui receitas e aumenta despesas do Estado, agravando a questão da segurança pública e jogando, consequentemente, uma multidão de miseráveis nas ruas das cidades.
A chamada Lei da liberdade econômica, já aprovada, e o projeto da “Carteira Verde e Amarela” agravam essa situação?
Tanto uma quanto a outra, reforçam essa precarização, não melhoram as condições de investimento, não atraem investidores. Porque não são fruto de uma política de desenvolvimento sério. A saída das grandes montadoras do País confirma isso.
O discurso de que outras montadoras virão é populista?
Não é populista. É mentiroso. Mentiroso e inconsequente.
O plano de reestruturação do Banco do Brasil provocou rumores, inclusive, de que o presidente do banco seria demitido por Bolsonaro. O que podemos inferir desse cenário?
A ameaça de demitir o presidente do Banco do Brasil não é para preservar empregos que estão em risco com o plano de demissões. É apenas fruto do delírio ditatorial que ele tem. É evidente que o Banco do Brasil, quando propõe um plano de reestruturação, propõe o fechamento de agências, fechamento de postos de atendimento, e isso vai gerar desgaste nos locais onde houver os fechamentos. Por exemplo, cidades que contam com o banco há mais de 50 anos, 60 anos. Então, é evidente que vai provocar desgaste. E Bolsonaro passou a questionar o presidente do Banco do Brasil em relação à uma falta de propriedade para fazer isso, neste momento. Ou seja, por causa do desgaste político, e não porque ele divirja do plano de demissões.
E qual é o papel dos sindicatos do Banco do Brasil neste momento?
O papel dos sindicatos é construir algum tipo de resistência. Criar políticas de resistência, estabelecer mobilizações e fazer o enfrentamento. Ou seja, criar pautas de reivindicação que tenham ligação com a sociedade. Construir pautas de reivindicação que não sejam corporativas, e sim conectadas com os interesses da sociedade.
Por exemplo?
É preciso mobilizar as populações das cidades onde o Banco do Brasil pretende fechar agências e, consequentemente, postos de trabalho. As comunidades que serão atingidas pelo fechamento desses postos de trabalho têm de ser mobilizadas e conscientizadas das consequências que isso tem. Os deputados que são vinculados a essas comunidades, os prefeitos, vereadores, as lideranças empresariais, lideranças dos trabalhadores, todos têm de se mobilizar.
Se o Banco do Brasil resolve fechar uma agência num local onde só ele faz o atendimento aos agricultores da região, o que isso tem de repercussão negativa para toda a economia da região? Desde o dono do boteco da esquina até o dono da revendedora de carros. Esses elementos podem ser criados e debatidos, dos sindicatos para a sociedade, como forma de pressão contra as demissões.
www.ctb.org.br / Fonte: Carta Capital