No relato de uma profissional da rede de atenção psicossocial, as marcas da reforma humanizadora. Consultórios de Rua. Respeito à singularidade dos vulneráveis. Arte contra os transtornos. No desmonte, tentativa de mercantilizar a loucura
Loucura não se vende, Loucura não se prende, Loucura não se tortura, Loucura se cuida em liberdade
A manhã do domingo, 6 de dezembro do infausto ano de 2020, foi invadida por uma sucessão de mensagens que nos dão conta de que o desmonte total da última Política de Saúde Mental está com dados marcados para acontecer. Cabe a todos nós continuar entrincheirados na batalha em defesa do legado libertário que fundou a luta antimanicomial no Brasil e que tem em seu DNA os Direitos Humanos, a desinstitucionalização antimanicomial, o tratamento de base comunitária e, acima de qualquer questão, o às individualidades e diversidade humanas.
Nos grupos de WhatsApp, como mensagens chegam sob a forma de mobilização, abaixo-assinados, manifestos e inúmeros links com a reportagem da Revista Época que viralizou na manhã dominical i . Amigos buscam-me para saber se tenho informações mais comuns ou ligam espontaneamente para impressões do trocarte sobre mais esse desastre que se avizinha.
Desde a quinta-feira anterior à publicação, após a reunião do CONASS a questão estava posta. Verdade seja dita, mais precisamente desde 2017 uma sucessão de eventos vem tomando de assalto o campo da luta antimanicomial e antiproibicionista. Uma sequência de políticas de Saúde Mental, assim como mudanças de rumo na Política e nas ações relativas ao Álcool e outras Drogas, um exemplo do financiamento desproporcional das comunidades terapêuticas em detrimento do relatório de recursos financeiros para os CAPS-AD (Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas). Não é por acaso que a mais exorbitante ofensiva seja no campo de álcool e drogas. Não é de agora que os governos ultraconservadores buscam, na pseudo cientificidade psiquiátrica, apoio para suas políticas de controle social de corpos.
O Golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 trouxe consequências políticas e técnicas para a área da saúde. A famigerada Emenda Constitucional nº 95, fruto da “PEC da morte” que congelou os gastos da Seguridade Social, parecia ser o mais violento ataque ao SUS (Sistema Único de Saúde), no entanto, o sub e desfinanciamento do SUS não ocorrerá sem que são destruídas por dentro como estruturas que dão sustentação àquele que é um dos sistemas públicos de saúde mais robustos em todo o mundo. A Política de Saúde Mental brasileira, construída com uma sólida base antimanicomial, é uma estrutura que o governo Bolsonaro busca agora destruir.
Fato é que Bolsonaro parece não dar sossego à saúde pública. Uma imagem me vem à cabeça: penso que nunca gostei de nadar na praia de tombo, nelas o mar está sempre revolto. Sabe aquela coisa de levar caixote, onda atrás de onda, mal chega e já vem outra… Uma sensação sufocante de tentar ficar em pé e não conseguir. Essa é a imagem que construir a partir desse conjunto de Bolsonaro. Mal levantamos de um susto e lá vem outro. Destruir a Política de Saúde Mental em meio a Pandemia da COVID-19, acabar com importantes programas diante da maior crise sanitária da nossa geração é um incremento de sadismo que pode extrapolar nossa capacidade de fazer uma crítica racional, somos afetados, nos embaralhamos anteriores do discurso e das práticas paranóicas desse governo perverso e persecutório.
Vivemos momentos extraordinariamente disruptivos e que têm trazido tanta dor e sofrimento. Os resultados objetivos e objetivos dessa sucessão de tragédias inundam os serviços de Saúde Mental em todo o país. Sou trabalhadora de um Centro de Atenção Psicossocial, na modalidade álcool e drogas (CAPS-AD) que ainda resiste sob Administração Direta; isso porque, na cidade de São Paulo, a maior parte dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial são administrados pelas Organizações Sociais (OSs), uma outra peça importante na conjuntura. Como mencionei, o desmonte no campo da Saúde Mental não é recente, a destruição do serviço público estatal é parte dessa engrenagem e vem de longa data. Não é objetivo da minha análise aqui,
A perversidade do Bolsonaro é flagrante, no entanto, reduzir o desmoronamento da Política de Saúde Mental única e exclusivamente à malevolência do presidente é não compreender que aquilo que está em jogo é a versão atualizada da mercantilização da loucura , ou seja, existem e sempre existiram) setores da sociedade interessada em abocanhar fatias do fundo público e comercializar estruturas hospitalares e manicomiais de confinamento e controle dos corpos.
Evidentemente que esse modelo arcaico não deveria receber um alcunha de tratamento , entretanto ele ganha um verniz neoliberal reificado em práticas higienistas no contexto da narrativa falaciosa da eficiência e da resolutividade da iniciativa privada em comparação com o serviço público que se quer destruir. Uma contrarreforma proposta por Bolsonaro se alinha aos interesses dos setores profissionais que defendem modelos hospitalocêntricos segregados e hierarquizados em estruturas biomédicas, radicalmente opostos aqueles modelos preconizados pelos princípios da Reforma Psiquiátrica e que agora, no contexto do COVID-19, devem ser defendidos acima de tudo .
A alegação, pretensamente técnica, de que parte dos serviços possam ser transferidos para o Ministério da Assistência e Desenvolvimento Social é mais uma dessas ardilosas estratégias de fragmentação e focalização da política social. É lá que parte significativa dos recursos para as internações em comunidades terapêuticas estão concentrados. A desestruturação do serviço de Saúde Mental, cindindo o atendimento psiquiátrico da atenção psicossocial, assim como da reabilitação, é o que dá fundamento à gênese do modelo manicomial. Ou seja, desde os tempos de Nise da Silveira, o tratamento aos pacientes com agravos mentais é palco de disputas e concepções. Nise, àquela época, já demonstrava que setores da psiquiatria tradicional pareciam não dar qualquer importância aos reais problemas dos sujeitos que atendiam e, com isso, promoviam uma espécie de apagamento das subjetividades que era a marca dos pacientes internados nesses manicômios. O modelo ambulatorial que é proposto agora em nada difere daquele antigo e já ultrapassado modelo cindido de acolher os pacientes psiquiátricos. E por falar em cisão, ironicamente ou não, a proposta fragmentária parece um espelho da desestruturação psíquica que “eles” buscam, com “remédios”, reparar.
Fotos das Bonecas produzidas em um CAPS-AD por mulheres usuárias do serviço.
Por outro lado, é importante assinalar um rosto invisibilizada e ainda mais cruel desse processo. Refiro-me ao fato de serviço que parte da população local atendida no de Saúde Mental é composta por pessoas negras ou pardas, ou seja, desestruturar a Rede de Atenção Psicossocial substituindo-a por serviços baseados em modelos asilares e manicomiais é acentuar ainda mais a Violência e controle de corpos negros ocorridos desde sempre à lógica eugenista e manicomial. Os usuários do CAPS-AD têm cor, o povo de rua tem cor, os pacientes dos manicômios têm cor, a raiz desse fenômeno está no âmago do racismo estrutural e colonial.
A luta antimanicomial em intersecção com a luta antirracista, identificada, por exemplo, na pesquisa, na clínica e na produção teórica do psicólogo e psicanalista Emiliano Camargo, vem produzindo um importante acúmulo discursivo sobre a necessidade de desvelar essa chaga secular. Com a proposta de aquilombamento dos serviços de Saúde Mental, o que se propõe é racializar a terapia, compreendendo que esse país é profundamente racista e desigual e que, portanto, uma determinação do processo de saúde-doença tem um componente estruturante racial. Em OUTRAS Palavras, O Que se propõe E um Denúncia da necropolítica ordenada pelo governo de Bolsonaro e por seus agentes, representantes da plutocracia nacional integrada por uma elite branca, moralmente conservadora, eticamente rebaixada e economicamente atrasada.
As informações sobre o conteúdo da proposta de alteração sorrateira da Política de Saúde Mental apresentado pelo Governo Bolsonaro caíram como bombas sobre minha cabeça e me derrubaram com a força de ondas violentas e inesperadas às minhas costas. Pergunto-me como podem propor algo com atos à saúde pública dessa magnitude ao final de um ano tão difícil?
Trabalhei presencialmente no CAPS-AD durante todo o ano de 2020. Uma corrida contra o tempo marcou os primeiros meses de trabalho: reorganizar os projetos terapêuticos singulares; distribuir medicação; monitorar as condições de saúde dos mais frágeis e vulneráveis; pensar nas alternativas para as pessoas em situação de rua… Pedalar até a casa de pacientes para garantir a medicação de uso prolongado (tenho usado minha bicicleta como meio mais seguro de locomoção); sustentar as inseguranças e medos dos pacientes que utilizam e diariamente dos atendimentos do CAPS-AD; construir percursos que garantam o sigilo no atendimento e, ao mesmo tempo, o distanciamento social e as condições sanitárias seguras para eles e para mim.Abraços, apertos de mão e as saudações mais efusivas foram ao longo do ano sendo substituídos por máscaras, álcool em gel, água e sabão, além dos olhares amedrontados diante de qualquer espirro ou tosse. Ao mesmo tempo, uma clínica potente, um trabalho em rede estruturado, a articulação territorial comunitária sustentaram aquilo que potencialmente fundamenta os CAPS’s: o tratamento em liberdade, acolhimento do sofrimento psíquico, respeito às diferenças.
Algumas pessoas não fazem ideia do que significa trabalhar em um serviço da RAPS no contexto da pandemia. Explico: o trabalho te convoca como agente do SUS, ou seja, somos trabalhadores da saúde pública e isso impõe construir uma rotina que te mobiliza e te afeta em situações muito distintas. Como agentes de saúde, trabalhamos também com prevenção e orientação. Ao mesmo tempo, atendemos às situações graves de Saúde Mental. Escutamos a dor inominável do luto. Acolhemos a angústia cuja manifestação por vezes não é (ou não pode) ser simbolizada. Nos primeiros meses da pandemia começamos a perceber, por meio das conversas telefônicas e presenciais, que alguns dos pacientes estavam descompensando. Outros pareciam negar a realidade, talvez para criar uma proteção psíquica. Lembro-me de um rapaz em situação de rua que me disse se sentir integrado socialmente pela pandemia, afinal, o caos estava instalado para todos, não só para ele. Ele me disse, com certo ar de espanto, ter a impressão de que o “Caos de fora parecia ser mais insolúvel que o interno” . Incentivamos que ele produzisse um diário para descrever a cidade “educar”.
Outros homens e mulheres mais fragilizados eram acompanhados pela equipe do Consultório na Rua , serviço esse que agora está na lista daqueles que devem ser encerrados. É aviltante pensar no término do Consultório na Rua , ou sequer no seu reordenamento. Só na cidade de São Paulo, o último levantamento indica mais de 25 mil pessoas em situação de rua na capital paulista, não ter esse serviço é lançar à própria sorte pessoas fragilizadas e adoecidas.
Conto-lhes brevemente a história de um senhor negro de 67 anos que chegou ao CAPS-AD acompanhado pela equipe do Consultório na Rua com histórico de alcoolismo de mais de 35 anos. Ele estava em situação de rua há dois anos. No final de 2019, já abstinente, com sua situação clínica estabilizada, com seus direitos previdenciários garantidos e morando em um quartinho alugado, ele contou que seu sonho era aprender a escrever. A equipe do CAPS mobilizou uma vaga em um curso de alfabetização de adultos em uma escola renomada no bairro. Com o início da pandemia, em 2020, as aulas foram transferidas para a modalidade online. Aos 67 anos, ele – que nunca frequentou banco escolar – tem de aprender a escrever o nome próprio pela internet. Toda semana a equipe do CAPS liga para ele e faz o teleatendimento, ele compartilha suas lições e seus progressos na escola. Mais recentemente, estava orgulhoso com o elogio da professora que disse estar emocionada, pois ele fez um desenho e aprendeu a escrever “Racismo Não”. Em descrição de maio uma breve recaída o assusta e lhe traz muita angústia, uma equipe sustenta o projeto terapêutico singular de cuidado em liberdade. Ele segue bem e toda quarta feira atende ou telefone com uma frase: “Estava esperando você me ligar. Quero te contar sobre a escola e sobre a professora. ”
Esse atendimento não faz o menor sentido para os “gestores” e para suas planilhas. Esse senhor não é apenas um indivíduo, é também a expressão da potência de um CAPS que tem por tratamento o tratamento fornecer. Essa história não comove aqueles que estão embrutecidos pela ganância, pois esse senhor negro, não alfabetizado e com “transtornos mentais” é apenas um número, e são tantos… Oxalá outros homens negros em situações como essa aprender a ler e escrever, ter uma possibilidade de sonhar e concretizar seus desejos.
Por fim, no dia 6/12, o Brasil atingiu o número assunto de 177.388 mortos por COVID-19. A pandemia à brasileira segue politizada (em seu pior termo), depositando os governos todas as esperanças em um dispositivo biológico, a vacina. Não nego sua importância, tampouco a centralidade que ocupa no contexto pandêmico, mas seria desejável que a maior parte dos brasileiros soubessem que mesmo antes da vacina nós temos um sistema de saúde poderoso e que precisa urgentemente ser defendido, pois sem o SUS não adiantarão doses e seringas, pois estes são produtos inertes que depende de uma rede dinâmica e comprometida para chegar até as pessoas.
Vivo mesmo é o SUS!
Em tempo 1 – No período de maior isolamento social muitas pessoas reclamaram, legitimamente, do insuportável do confinamento. Foi-lhes indicado investir tempo em atividades lúdicas, nas artes, nas práticas terapêuticas, não autocuidado. Todosem perceber como o isolamento é enlouquecedor. Nosso princípio de cuidado em liberdade ressalta muito isso. A liberdade é terapêutica. O confinamento não pode ser sinônimo de tratamento.
Em tempo 2 – Não nomeie mais as atitudes perversas de alguns políticos como loucura . Da loucura nós cuidamos e acolhemos; a perversão do fascismo nós combatemos!
www.outraspalavras.net / Fernanda Almeida