No documentário ‘Sem Descanso’, Bernard Attal busca as raízes históricas e sociológicas da violência policial, cada vez mais naturalizada
Geovane Mascarenhas Santana, de 22 anos, foi visto pela última vez em 2 de agosto de 2014, durante uma abordagem policial no subúrbio de Salvador. Uma câmera de segurança registrou o momento em que o jovem, conduzindo uma moto, foi parado e agredido por agentes das Rondas Especiais da Polícia Militar da Bahia. Depois de ser levado pela viatura, o rapaz desapareceu.
Jurandy Santana passou 13 dias procurando pistas sobre a localização do filho, até a Polícia Científica concluir a identificação de um corpo decapitado e carbonizado encontrado dias antes, em dois bairros distintos da capital baiana: a cabeça em Campinas de Pirajá e o tronco no Parque São Bartolomeu. Era Geovane.
Em cartaz no circuito nacional a partir de 5 de novembro, o documentário Sem Descanso, do diretor Bernard Attal, mostra a saga do pai Jurandy e de repórteres do Correio da Bahia em busca de respostas. Primeiro, sob o paradeiro de Geovane. Depois, sobre o que aconteceu enquanto ele estava sob a custódia do Estado.
Mais do uma simples reconstituição dos fatos que levaram à morte do jovem negro, o filme procura as raízes históricas e sociológicas da violência policial no Brasil, uma chaga que acabou naturalizada pela população. Não por acaso, Attal busca estabelecer um paralelo com o movimento Black Lives Matter nos EUA.
“As vidas negras importam. Lá fora, não no Brasil”, lamenta o diretor, em entrevista a CartaCapital. “A letalidade policial brasileira é cinco vezes maior que a americana. Os negros são 75% dos mortos pela polícia no Brasil. A todo instante, surge uma nova ocorrência com indícios de execução, mas poucos se comovem. A reação popular e dos formadores de opinião está muito aquém do que vemos nos EUA ou na Europa em casos semelhantes”.
A pandemia de coronavírus atrasou o lançamento do documentário, previsto incialmente para maio. “Há, porém, um lado positivo nesse contratempo. Nas últimas semanas, foram divulgados vários indicadores sobre o aumento da letalidade policial no Brasil. O tema também voltou a ficar em evidência nos EUA, com novas jornadas do movimento Black Lives Matter”, afirma Attal.
De fato, ao menos 3.148 cidadãos foram mortos por policiais no primeiro semestre deste ano em todo o País, atesta o Monitor da Violência, fruto de uma parceria do Núcleo de Estudos da Violência da USP, do Fórum Brasileiro Segurança Pública e do portal G1. O número é 7% mais alto que o registrado no mesmo período do ano passado, quando foram contabilizadas 2.934 mortes. Apenas o governo de Goiás não forneceu dados.
A violência policial é, por sinal, um dos elementos que explica o aumento das mortes violentas intencionais no Brasil após dois anos de queda. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 25.712 cidadãos foram mortos no primeiro semestre de 2020, alta de 7% em relação ao mesmo período do ano passado. Com isso, o País registra um assassinato a cada dez minutos.
“Difundiu-se, no Brasil, a falaciosa tese de que dar carta branca para a polícia matar seria eficaz para reduzir a criminalidade e os homicídios em geral. Os dados divulgados revelam que esse discurso está completamente equivocado”, observa Attal. “Na verdade, a violência policial gera ainda mais insegurança para população”.
Sem Descanso participou de 18 festivais de cinema em todo mundo e conquistou vários prêmios, como melhor documentário no Black Montreal International Film Festival, melhor documentário no Fenavid Santa Cruz da Bolívia, melhor longa no Araial Cinefest, além de receber menção de excelência no Impact Doc Awards. Produzido pela Santa Luzia Filmes e distribuído pela Livres Filmes, ele será exibido em Belém, Campinas, Fortaleza, Manaus, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Teresina.