Fim do licenciamento ambiental na irrigação permite a adoção de sistemas mais adequados ao bolso do que ao meio ambiente. Desperdício pode aumentar
São Paulo – Em novembro de 2017, moradores de Correntina e municípios vizinhos, no oeste baiano, danificaram equipamentos de captação de água da Fazenda Igarashi. Dias depois, reuniram mais de 10 mil pessoas em protesto contra a criminalização do movimento em defesa da água. Desde 2015, a fazenda de 2.530 hectares tinha autorização para retirar diariamente 180 milhões de metros cúbicos de água do rio Arrojado. A população, no entanto, que sofre com a escassez desde a chegada do agronegócio na região, ainda durante a ditadura, conta com 3 milhões de litros diários para abastecer sete mil residências.
O episódio tem semelhança com fatos ocorridos no verão de 2004 e 2005 em cidades da Bacia do Rio Santa Maria (RS). A retirada da água do rio abundante no inverno e seco no verão para irrigação de plantações de arroz deixou a população de muitas localidades sem água. “A situação foi tão grave que levou o governo a intervir”, conta Frei Sérgio Gorgen, coordenador do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). O departamento de recursos hídricos da Secretaria de Meio Ambiente estabeleceu regras e prazos para solicitações de outorga de uso de água para irrigação. E ainda reconheceu que o abastecimento público, que é prioritário, foi colocado em risco em função da alta demanda para irrigação.
Mas casos assim são cada vez mais comuns. E não só no oeste baiano e regiões fronteiriças do Maranhão, Tocantins e Piauí, que formam o Matopiba, a nova fronteira do agronegócio. Mas também no Rio Granbde do Sul em outras localidades dominadas pelo “agro”.
Em 2019, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 489 confitos pela água, envolvendo 69.793 famílias. Em 2018 foram 276. E em 2017, quando Correntina virou notícia, 197. Os números, porém, podem ser maiores, porque conflitos pela terra geralmente envolvem disputas pela água.
Irrigação ou defesa da água
Esses conflitos tendem a ser intensificados com a revogação da Resolução 284/2001 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), no último 28 de setembro. Foi durante a reunião em que o ministro da área Ricardo Salles passou uma mega boiada. A resolução estabelecia licenciamento ambiental para empreendimentos de irrigação e definia critérios – sem levar em conta a defesa da água – para escolha dos sistemas. Mas levou em conta características técnicas, localização, especificidades regionais e principalmente consumo de água e energia. E além disso, determinou a adequação e cadastramento de sistemas já em funcionamento junto aos órgãos licenciadores. Isso a pretexto de considerar que esses implementos agrícolas podem causar modificações ambientais.
Com a medida, Salles fazia outro agrado aos ruralistas, interessados na derrubada da Resolução 284. Afinal, a reivindicação partiu da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e seu braço no Congresso, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Esses grandes fazendeiros já contam com benefícios como perdão de dívidas, subsídios tributários e acesso fácil ao crédito, não querem regras. Para eles, a irrigação é uma “tecnologia utilizada pela agricultura para o fornecimento de água às plantas em quantidade suficiente e no momento certo, não sendo necessário o licenciamento por parte da União a este respeito”. O argumento está em nota assinada pelo presidente da FPA, o deputado Alceu Moreira (MDB-RS).
Impacto ambiental
A nota afirma ainda que a irrigação “já é regulamentada segundo a Lei nº 9.433/1997, da Agência Nacional de Águas (ANA), que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento destes recursos”. No entanto a lei genérica institui a outorga de direitos de uso de recursos hídricos, que tem como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água em caso de captação, inclusive de aquíferos, para uso como insumo de produção. As palavras agricultura e irrigação nem aparecem no texto.
“Em Juazeiro da Bahia há produção de cana com mais de 60 mil hectares irrigados, o que demandou muito espaço, a derrubada da caatinga, infraestrutura e a captção de água no rio São Francisco. O impacto é muito grande. Ao exigir licenciamento ambiental, cobra-se dos empresários empreendedores a aplicação de técnicas de irrigação de menor impacto ao meio ambiente”, diz Roberto Malvezzi, assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no São Francisco.
Malvezzi dá outro exemplo da importância para a defesa da água das regras revogadas pelo Conama, que foi sendo lapidado pelo governo de Jair Bolsonaro justamente para deixar a boiada passar. “A irrigação por aspersão em pivô central não é adequada no Nordeste. Com o método há muito desperdício, porque até 60% da água evapora antes de cair no chão. É recomendado outro método de irrigação para poupar água. Mas sem a necessidade de licenciamento ambiental para a implementação do sistema, o proprietário vai usar a técnica mais conveniente para ele e não a mais poupadora de água.”
Desperdício
“O que se sabe é que essas tecnologias são mal empregadas pelos grandes produtores. Há uso excessivo e desperdício de água. Tanto que, segundo a FAO (órgão das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), 70% de toda a água é consumida pelo agro”, diz a assessora da Secretaria de Meio Ambiente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), Hélica Araújo Silva.
De acordo com a assessora, essas técnicas carecem de aprimoramento que as torne mais específicas para as necessidades de cada lavoura quanto à quantidade de água que necessitam para se desenvolver. “Mas isso demanda investimento, tem custo e os grandes fazendeiros trabalham com margem de lucro maior e nem todos têm responsabilidade socioambiental. A gente não vê uso sustentado para conservação das nascentes, da água, dos solos, das florestas. Usam tudo até exaurir, ao contrário dos pequenos agricultores, que plantam em estação de chuvas e que vão sofrendo com as mudanças no clima. Se não chove, não tem colheita”, diz, referindo-se à redução gradativa da assistência técnica à agricultura familiar a partir de 2017. “O aumento da demanda por alimento demanda o consumo de água. Se nada mudar, teremos sim uma guerra pela água no sentido literal.”
Mais conflitos
Dados da Agência Nacional de Águas (ANA) indicam que a agricultura irrigada no Brasil retira 969 mil litros por segundo e consome 745 mil litros por segundo, correspondendo a 46% da retirada. Juntos, a agricultura como um todo e a pecuária consomem atualmente 81% da água.
Outro dado alarmante da agência reguladora é que a maior parte das bacias em situação crítica no Brasil tem como causa a alta demanda da agricultura irrigada. E a situação tende a piorar. Há projeção de aumento da atividade em 42% até 2030, quando a vazão deve subir para 1 milhão de litros por segundo enquanto os recursos hídricos serão menos abundantes devido às mudanças no clima.
Por isso as estimativas da ANA incluem a intensificação das disputas existentes e e surgimento de novas áreas de conflitos pelo uso da água onde a irrigação tem avançado mais recentemente. Ou seja, Mato Grosso, Goiás e Matopiba – onde está inserido o oeste baiano – e também o Rio Grande do Sul, na bacia do alto rio Jacuí e de afluentes do rio Uruguai.
O tema da defesa da água é tão preocupante que a agência iniciou nesta quarta-feira (14) uma série de seminários on-line para discutir gestão da seca e da escassez hídrica. O reúso de água na agricultura será tema de evento em 11 de novembro, quando a manifestação em Correntina completa três anos.
Justiça
No último dia 2, a Rede Sustentabilidade ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), com pedido de liminar. O partido pede a suspensão da Resolução Conama nº 500/2020, pela qual foram revogadas as resoluções 284, 302/2002 e 303/2002. E também a resolução que permite a queima de resíduos em fornos de produção de cimento, o que contraria preceitos fundamentais da Constituição Federal, principalmente no tocante ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e todas as derivações daí decorrentes – saúde e vida. Além disso, pede a declaração de inconstitucionalidade da Resolução 500.
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