O Brasil comemora o Dia das Crianças em 12 de outubro, porque nessa data, em 1959, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) oficializou a Declaração dos Direitos da Criança. Com o objetivo de proteger a infância da exploração do trabalho infantil, dos maus-tratos e abusos sexuais. “Se os dez princípios dessa Declaração fossem seguidos, certamente estaríamos vivendo num mundo bem melhor, com menos egoísmo e menos violência”, afirma Vânia Marques Pinto, secretária de Políticas Sociais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
Basta atentar para o Princípio 2, pelo qual “toda criança tem direito a proteção especial, e a todas as facilidades e oportunidades para se desenvolver plenamente, com liberdade e dignidade”. Mas a realidade é bem diferente. “As crianças brasileiras vêm sofrendo muitas violências, desde a falta de escola e médicos até à exposição ao trabalho infantil e à exploração sexual e violência doméstica”, acentua.
Conheça a Declaração dos Direitos da Criança
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) garante existir cerca de 2,5 milhões de crianças e adolescentes explorados pelo trabalho infantil e na pandemia a situação ficou ainda pior com o crescimento do já grande índice de desemprego – com mais de 20 milhões sem trabalho.
Muito importante, então, “refletirmos sobre que tipo de infância estamos construindo, especialmente quando estamos sob a lógica de um discurso oficial que não vê problemas no trabalho infantil”, assinala Valdete Souto Severo, juíza do Trabalho e presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Como mostra o estudo Ending Violence in Childhood: Global Report 2017, pelo qual 68% das crianças brasileiras com até 14 anos disseram já sofrido violência corporal em casa. A maioria dos abusos e maus-tratos ocorrem dentro de casa.
Em 2017, 58,9% das denúncias recebidas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, pelo Disque 100, foram sobre algum tipo de violência contra crianças e adolescentes, com 84.049 denúncias maior do que em 2016, que foram 76.171 denúncias.
Lembrando que a maioria das famílias não faz a denúncia. Os principais tipos de violência denunciadas são: negligência (61.416), violência psicológica (39.561) e violência física (33.105). Isso bem antes da pandemia. Situação agravada pelas políticas neoliberais de Jair Bolsonaro.
Por isso, “precisamos considerar o Dia das Crianças como um dia de reflexão”, argumenta Valdete. Porque, “o Brasil ainda é um dos países que mais maltrata a sua própria infância, seja em função de um trabalho infantil, dos mais perversos, que muitas vezes se insinua em atividades que o Estado sequer reconhece como o tráfico de drogas”.
E isso “faz de nossas crianças não apenas trabalhadoras desde cedo e, portanto, crianças que não estão na escola, mas também alvo da repressão do Estado” e aí fica a certeza de que “elas não conhecerão a escola, mas irão conhecer bem as prisões”.
Veja o Estatuto da Criança e do Adolescente na íntegra
A questão é tão grave que o Ministério Público do Trabalho (MPT) lançou na terça-feira (6) nova campanha pela erradicação do trabalho infantil, que vem crescendo na pandemia. Para o MPT, 2021 será um ano muito difícil para combater a exploração de crianças no trabalho, por causa da crise econômica que se aprofunda e pelo abandono das políticas públicas em favor dos direitos da infância pelo desgoverno de Jair Bolsonaro.
“Para se ter uma ideia, estamos com níveis de emprego próximos a 1992, quando o trabalho infantil era altíssimo no Brasil”, afirma a procuradora Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), ao Brasil de Fato. Por isso, “ou tomamos medidas agora no sentido de fomentar a proteção social, a promoção de direitos, ou teremos um Brasil assolado pelo trabalho infantil e muito longe da meta de 2025 que é erradicar todas as formas desse tipo de abuso”, analisa Rachel Giotto, advogada especializada em direito médico hospitalar, da família e do trabalho.
Rachel lembra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Federal, que asseguram “o direito à vida, à saúde, à alimentação ao lazer, à educação, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à profissionalização e à convivência familiar e comunitária para todas as crianças”.
Para o juiz André Tredinnick, titular da 1ª Vara de Família da Leopoldina Regional da Capital (Rio de Janeiro), “as crianças precisam de um ambiente saudável de cooperação, sem o terror de uma educação massacrante e que desperte uma consciência crítica, educação sexual e integrada à comunidade, como Paulo Freire (1921-1997) preconizava”.
Pesquisa recente do Unicef mostra que 48% da primeira infância – de zero a 6 anos – vivem na pobreza, sem escola de qualidade, sem a alimentação necessária para um desenvolvimento saudável e sem acompanhamento médico adequado. A situação é muito grave porque “os acontecimentos da primeira infância deixam marcas por toda a vida”, revela Claudete Alves, presidenta do Sindicato dos Educadores da Infância de São Paulo (Sedin).
Claudete reforça a necessidade de a criança “ser respeitada na integralidade, desde o nascimento, em sua individualidade para ter o direito a todos experimentos lúdicos que o exercício da cidadania da infância possibilita para se tornarem adultos felizes e plenos”.
O Menino Maluquinho (1995) de Helvécio Ratton, com base em obra homônima de Ziraldo
De acordo estimativa do Unicef, 44 milhões de meninas e meninos ficaram longe das salas de aula no país por causa da suspensão das aulas em função da pandemia do coronavírus, sendo que 91% das famílias com crianças ou adolescentes de 4 a 17 anos afirmaram que seus filhos e filhas continuaram realizando, em casa, as atividades escolares durante a pandemia (sendo 89% dos matriculados em escolas públicas e 94% nas particulares.
“Mas a desigualdade vem se aprofundando com as políticas adotadas pelo atual governo, pelas quais privilegia o setor financeiro e os mais ricos, tirando verbas da educação, da saúde, da moradia decente e atacando os direitos humanos e da infância e juventude”, reforça Vânia. E assim. “aumenta a violência e a negligência em relação às crianças”.
Já Ludmila Yarasu-Kai, psicóloga, doula e professora da Dança Materna, defende o “respeito pelo nascimento” como uma forma de “respeito pelas crianças”. Segundo ela, se olharmos “para os bebês como seres autônomos e competentes no seu desenvolvimento” já é um começo para “a criança ser respeitada e ouvida” e com isso aprender “sobre respeito, diálogo e empatia desde sempre, possibilitando que aja dessa forma no futuro”.
Para a criança levar uma vida com dignidade “ela precisa ter paz em casa e na comunidade”, alega André, com “acesso à educação e cultura, além de ter garantido o direito de brincar muito”. Para Valdete, “valorizar e respeitar a infância é essencial para qualquer sociedade que almeje ser minimamente civilizada”.
Ela contradiz a infeliz afirmação do ministro da Educação, Milton Ribeiro na defesa do “castigo físico” como forma de educar. “Precisamos reafirmar os valores contidos na Constituição de proteção à infância e de compreensão de que a violência física em qualquer relação social, como mostram os casos de violência doméstica, é destrutiva dos laços de afeto e das possibilidades de construção inclusive de uma subjetividade saudável”.
Nunca Pare de Sonhar (1984), de Gonzaguinha
Importante ressaltar, destaca Valdete, que “a criança aprende mais e muito melhor com diálogo, com tempo de convivência e com respeito”. Uma criação saudável significa “não permitir nenhum tipo de abuso contra crianças e deixá-las longe de fanatismos, de moralismos e propiciar-lhes acesso à uma informação qualificada, respeitando sempre a faixa etária”, diz André.
Para Vânia, “a sociedade precisa de novos parâmetros para entender a necessidade que todas as pessoas têm e as crianças muito mais de viver em uma ambiente harmonioso, em segurança e cercada de afeto, condições dignas de vida e liberdade para desenvolver-se em toda a sua plenitude”.
www.ctb.org.br / Marcos Aurélio Ruy