Para padre coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, a solução para quem mora na rua não pode ser camping quando “a cidade tem mais casa sem gente do que gente sem casa”
Um dos maiores aliados da população em situação de rua em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti, 71 anos, falou à Agência Pública sobre as recentes mortes de pessoas em situação de rua durante a onda de frio na cidade no mês passado. A prefeitura confirma dois óbitos, Júlio cita cinco.
Indagado sobre a crueldade que é morrer de frio, o que remeteria a uma ideia de morte medieval, ele discorda: “Não acho que é uma morte medieval, é uma morte de agora, do século 21, pois é agora que essas pessoas estão morrendo de frio”.
Sem melindres, o padre que atua junto aos mais vulneráveis há 35 anos afirma que o poder público não é só negligente, mas incompetente quando se trata do povo de rua. “Achar que a solução para a cidade hoje é camping para morador de rua? Isso quando 80% da rede hoteleira está ociosa, quando São Paulo tem mais casa sem gente do que gente sem casa?”, questiona.
Segundo ele, durante a pandemia mais de 8 mil pessoas passaram pela primeira vez pelo núcleo de atendimento em sua pequena paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, na zona leste de São Paulo, onde são distribuídos alimentos, roupas, entre outras ações de solidariedade. “De 4 mil em um mês, foi para 8 mil”, diz. “Ouço todos os dias ‘cheguei de tal lugar’, ‘cheguei de tal estado’”.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Você acha que teve uma negligência maior do poder público em relação ao frio que levou às mortes da população de rua que tivemos no mês passado?
Acredito que não é só uma questão de negligência, é uma questão de incompetência. Eles até querem fazer, é evidente que a cidade está cheia, todo mundo vê. Agora, o que me espanta mais é que a solução que vereadores como a Soninha [Francine] estão dando é fazer camping. Achar que a solução para a cidade hoje é camping? Isso quando 80% da rede hoteleira está ociosa, quando São Paulo tem mais casa sem gente do que gente sem casa?
Nós tivemos cerca de cinco pessoas que morreram de frio na última semana. Vocês tiveram alguma atualização?
Nós localizamos cinco, e a prefeitura fala em duas.
Por que tem essa divergência?
Pode ser o período que eles computaram. Eu não sei o porquê dessa divergência.
Houve um aumento da população de rua, que já vinha acontecendo nos últimos anos com a crise econômica. O senhor notou um aumento causado pela própria pandemia?
A gente está percebendo um aumento rotativo, com uma circulação muito grande de gente. Assim como tem gente chegando, tem gente saindo. Por exemplo, só do núcleo de atendimento na Mooca, que é de convivência, passaram pela primeira vez cerca de 8 mil pessoas em um mês. De 4 mil em um mês, foi para 8 mil. Então, imagine 8 mil pessoas que pela primeira vez estão passando ali…
Ouço todos os dias “cheguei de tal lugar”, “cheguei de tal estado”.
São pessoas que pela primeira vez estão chegando nessa situação de ter que morar na rua?
Não temos esse levantamento. Se está chegando da rua agora nós não sabemos, mas eles estão circulando pela cidade e aqui ficam em situação de rua ou vão procurar lugares do centro de acolhida.
Entre as pessoas que chegam há o discurso de desemprego recente?
É claro, eles estão procurando trabalho, estão à procura da sobrevivência.
Há relatos sobre a população de rua que antes estava mais no centro e agora está se expandindo mais para as periferias?
Sim, isso está discriminado na cidade. Mas a concentração maior ainda continua no centro e no centro expandido, como a Mooca, que é um lugar que tem muita população de rua. Mas hoje tem população de rua no Jardim Rincão, na Brasilândia. Tem pessoas em situação de rua em todos os distritos da cidade, em quantidades diferentes, mas tem.
Em relação à própria pandemia, na sua opinião, como o poder público tem lidado com a população de rua e as medidas que deveriam ser tomadas?
Um destaque positivo é a atuação dos Consultórios na Rua [política pública que leva equipes multidisciplinares da saúde para atuarem com a população de rua]. Por outro lado, o Ministério Público recomendou [em 20 de maio] à prefeitura 8 mil leitos na rede hoteleira, e a prefeitura, mais de 120 dias depois da emergência, conseguiu disponibilizar 150, depois mais 50. Então são 200 leitos temporários em hotel. Mas o Ministério Público recomendou 8 mil.
Teve alguma mudança adotada em relação aos abrigos?
Diminuíram a lotação para manter o distanciamento social. Onde tinha 440 diminuiu para 300, onde tinha mil diminuiu para 600.
E foram criados outros dispositivos para abrigar essas pessoas?
Foram criadas algumas vagas emergenciais, mas que não cobre essa defasagem. É por isso que tem tanta gente vivendo na rua.
Como estão as medidas de higiene dentro dos abrigos?
Estão bastante fracas e inadequadas, não são suficientes.
Pelo que o senhor conversa com os moradores em situação de rua, como é que eles se informam sobre a pandemia?
Tem os que banalizam, os que acreditam, os que não acreditam, como a sociedade como um todo.
Nos primeiros meses, quando nós tivemos uma quarentena mais forte, essa população chegou a sofrer com a ausência de comércios abertos, de banheiros…
Claro. Agora que abriu mais, eles estão tendo mais possibilidade. Nós vivemos com eles aqueles momentos tenebrosos, que não tem ninguém na rua, e eles estavam sem nada. Por isso estamos com eles durante toda a pandemia.
Qual foi a maior ausência nesse começo, o que mais impactou?
Falta tudo, acesso à água potável, acesso a álcool em gel, acesso a medidas de higiene. Eles não tinham acesso à alimentação. Faltou tudo.
Ao mesmo tempo, teve um aumento de solidariedade?
Houve um aumento de solidariedade proporcional ao fechamento: quanto mais fechava, mais a solidariedade abria. Agora, quanto mais abre, mais a solidariedade diminuiu.
A situação dos abrigos piorou nesse governo?
Os abrigos são, como toda a sociedade, heterogêneos. Há mais sujos e mais limpos, e, em um universo como São Paulo de mais de cem centros de acolhida, nem todos têm o mesmo nível de atendimento. Então, tudo dependeu de ter um padrão de qualidade semelhante, e, no entanto, nós continuamos vendo abrigos onde há percevejos, onde há muquiranas [piolhos]. Não podemos dizer que são todos, mas muitos ainda continuam nessa situação precária. Há abrigos onde os banheiros estão entupidos, porque a maior parte deles são adaptáveis, não foram feitos com esse fim.
Vocês chegaram a ter algum tipo de resposta do poder público?
A palavra do poder público é sempre a mesma. Eles negam e falam que não é verdade, que não é isso que acontece, porque em todos esses lugares as condições de higiene são as mais adequadas possíveis. É aquele discurso técnico sempre, aquele discurso político dizendo que está tudo uma beleza. Mesmo quando eu coloquei vídeos, quando mostrei os percevejos, quando mostramos a situação de esgoto, a resposta é sempre que aquilo não é verdade. Eles sempre falam que todos eles estão muito bem, que estão todos muito adequados, higienizados, que em todos há distância social, que em todos o cardápio é de primeira qualidade, que em todos tem toalha para tomar banho, sabonete, shampoo e condicionador, desodorante, que todos estão sanitizados. É o que eles falam.
Conversando com as pessoas que frequentam esses abrigos, você acha que eles têm sido um centro da infecção da Covid-19?
Olha, isso a gente não pode afirmar porque em muitos lugares o número de pessoas infectadas não tem sido alarmante. Mas isso se deve muito ao trabalho do Consultório de Rua, às próprias questões de imunidade da população de rua. Agora, que os abrigos são um foco de doenças dermatológicas, são. Que são um foco de doenças respiratórias, são. Por isso é tão prevalente a tuberculose no meio da população de rua. Todos os dias eu ouço eles falarem da sinfonia da tosse à noite nos centros de acolhida, todo mundo tossindo. Agora, você imagina um dormitório que tem 200 pessoas e que estão todos em beliche, uns em cima e outros embaixo, se 50% ali estiverem tossindo, como é que fica?
Para falar de população de rua, precisamos falar de habitação…
Claro, é um binômio que se repete, trabalho e moradia, sem um não existe o outro. E aí dar uma solução meia-boca porque “ah, é emergência”… Emergência tem uma estrutura pronta, que é o hotel. Mais do que ter um camping com banheiro químico, é ter uma unidade habitacional no hotel onde cada unidade tenha um banheiro, que cada unidade habitacional tenha três ou quatro pessoas, no máximo, com um banheiro.
Algumas cidades do Brasil promoveram a solução dos hotéis, caso de Niterói. Isso chegou a ser discutido aqui?
O que acho extraordinário é que as pessoas não sabem dessas coisas. Aqui em São Paulo a Câmara Municipal autorizou a prefeitura a contratar vagas em hotéis. A prefeitura fez um primeiro edital onde concorreram sete [hotéis] e nenhum foi homologado pela prefeitura. Aí a prefeitura fez um segundo edital que faliu porque ninguém concorreu. E agora a prefeitura tem 240 leitos contratados em hotel em emergência, sendo que a própria prefeitura tinha anunciado que teria 500 leitos em hotel e o MP, respondendo a uma representação, recomendou à prefeitura 8 mil leitos…
Essa recomendação tem sido ignorada?
Sim.
Pela última resposta que vocês tiveram da prefeitura em relação a isso, eles não pretendem colocar esses 8 mil leitos?
Eu não sei.
Um colega comentou que morrer de frio é uma “morte medieval”, uma morte que tem mil formas de ser evitada…
Não acho que é uma morte medieval, é uma morte de agora, do século 21, pois é agora que essas pessoas estão morrendo de frio. Quando tem toda a tecnologia, quando 80% da rede hoteleira está vazia, quando tem vereadores propondo camping… Na Idade Média, talvez não tivesse 80% de leitos ociosos em nenhuma hospedaria. Hoje tem. Acho que na Idade Média não tinha uma cidade tão rica como é São Paulo hoje. Acho que nem a Roma medieval era tão rica como é São Paulo hoje, nem Atenas, Florença, Veneza.
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