Para não negros brasileiros, taxa de homicídios é semelhante à da Rússia, para os negros, Guatemala. Em 2018, a violência contra população LGBT+ aumentou 19,8%; dados são do Atlas da Violência 2020
Em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras. No contexto histórico, de 2008 a 2018, o número de homicídios de pessoas negras no país aumentou 11,5%, já entre pessoas não negras caiu 12,9%.
Os dados são do Atlas da Violência, levantamento feito pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) em parceria com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vinculado ao Ministério da Economia, lançado nesta quinta-feira em coletiva de imprensa online.
Diferentemente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que compila e analisa dados de registros policiais sobre criminalidade, o Atlas da Violência analisa os dados do SIM/MS (Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde), e as denúncias recebidas pelo Disque 100.
Em 2018, segundo SIM/MS, houve 57.956 homicídios no Brasil. Para cada 100.000 habitantes, a taxa é de 27,8 mortes. Esse é o menor nível de homicídios nos últimos quatros anos. A redução em relação a 2017 é de 12%. Em 2020, porém, os dados já apontam para uma nova crescente, principalmente durante a pandemia em Estados como São Paulo.
No contexto histórico, de 2008 a 2018, 628.595 pessoas foram assassinadas no país. O perfil das vítimas aponta que 91,8% eram homens e 8% eram mulheres. Entre os homens, 77,1% foram mortos por arma de fogo, enquanto a taxa das mulheres é de 53,7%. O risco de um homem negro ser assassinado é 74% maior e para as mulheres negras a taxa é de 64,4%.
“Como os processos de racialização incidem sobre as violências? É sobre a falta de acesso que os homens negros têm dos serviços e políticas públicos, enquanto a mulher negra é triplamente vulnerável. É sobre a falta de acesso e que principalmente ficam evidentes às imagens que o homem negro tem de bandido e da mulher negra sendo hipersexualizada”, explica a pesquisadora Amanda Pimentel, que participou do estudo.
A pesquisa ainda aponta uma disparidade racial em diferenças regionais. Em Alagoas, por exemplo, para cada homicídio de uma pessoa não negra, 17 pessoas negras morreram. Na Paraíba, 8,9 negros morrem a cada pessoa não negra morta.
Em Sergipe, o número é de 5,1 negros e no Ceará a taxa é de 4,7. No Brasil, para cada não negro assassinado, 2,7 negros são vítimas de homicídio. Observando as taxas de mortes de negros e não negros, é como se quem não é negro vivesse na Rússia, e os negros na Guatemala, México, Colômbia.
Para a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, esses dados “nos ajudam a mostrar o abismo que existe entre a população negra e a não negra, o quanto o racismo interfere na violência”. Segundo ela, “o debate antirracista é urgente, tem que ser prioridade no Brasil”.
Os homicídios ocultos também ganham destaque no Atlas. Listados como MVCI (morte violenta com causa indeterminada), esses homicídios registraram um aumento de 25,6%. Em São Paulo, aponta o estudo, a perda de qualidade das informações chega a ser “escandalosa”: em 2018, o Estado registrou 4.265 MVCI, das quais 549 pessoas foram vitimadas por armas de fogo, 168 por instrumentos cortantes e 1.428 por objetos contundentes.
Mulheres negras morrem mais
Em 2018, uma mulher foi assassinada no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas. Dessas, 68% são mulheres negras. A taxa de homicídios das mulheres negras é 5,2 para cada 100 mil, muito maior do que o dado de 2,8 por 100.000 para não negras.
Embora os homicídios de mulheres tenha caído 8,4% entre 2017 e 2018, a situação melhorou apenas para as mulheres não negras, o que, como aponta o estudo, mostra ainda mais a desigualdade racial: enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%.
“Que políticas públicas estamos implementando que protegem uma mulher não negra e não protege uma mulher negra?”, questiona Samira Bueno.
Historicamente, de 2008 a 2018, a maioria dos assassinatos de mulheres aconteceram em casa. Do total, 30,4% dos homicídios de mulheres ocorridos em 2018 no Brasil teriam sido feminicídios, o crescimento é de 6,6% em relação a 2017.
Mais violência para LGBTs
A violência para população LGBT+ aumentou no último ano. Em 2017, foi a primeira vez na história do Atlas da Violência que os recortes de LGBTfobia entraram na análise. Agora, em 2018, o texto direcionado para essa população contou com o apoio do autor desta reportagem.
A escassez de indicadores oficiais de violência contra LGBT+, aponta o Atlas, permanece sendo um problema central. Um primeiro passo para resolver a esse problema, continua o estudo, seria a inclusão de questões relativas a identidade de gênero e orientação sexual no recenseamento que se aproxima.
Paralelamente, essas variáveis, de orientação sexual e identidade de gênero, devem ser colocadas nos registros de boletins de ocorrência, para que pessoas LGBTs estejam contempladas também pelas estatísticas geradas a partir do sistema de segurança pública.
O Atlas também aponta que, sem esses avanços, é difícil mensurar, de forma confiável, a prevalência da violência contra esse segmento da população, o que também dificulta a intervenção do Estado por meio de políticas públicas.
A violência psicológica aumentou 7,4% entre LGBTs, de 1.693 em 2017 para 1.819 em 2018. Em relação à violência física, o aumento é de 10,9%, de 4.566 em 2017 e 5.065 em 2018. Em outros tipos de violência o aumento é gigantesco: 76,8% a mais em 2018, de 1.192 para 2.108.
A única redução acontece em relação às torturas, que caiu 7,6%, de 250 para 231 em 2018. O total das violências contra LGBTs tem um aumento de 19,8% em 2018, de 7.701 para 9.223. Os dados são do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), do Ministério da Saúde.
Entre a população LGBT+, negros e negras são os mais atingidos pela violência, de acordo com os dados do Sinan: 49,4%, com a soma de pretos e pardos, e 44,7% de brancos. Em relação ao gênero, 61% das violências foram contra mulheres e 38,9% contra homens. Mais de 93% dos casos acontecem em áreas urbanas contra 5,8% em áreas rurais. No estudo, não foi possível determinar dados com recortes de identidade gênero.
“Esse é um dado muito precário, não só da população LGBT+, mas do Sinan. O Sinan é um sistema que precisa de muitos esforços pra ter abrangência nacional. Esses são os dados e nos mostram a ponta de um iceberg, embaixo haja muitas coisas que não conseguimos olhar”, explica Samira.
Apesar de uma queda de 28% nos registros de homicídios contra a população LGBT+, o Atlas aponta um aumento de 88%, de 2017 para 2018, nas tentativas de homicídios, segundo os dados do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
www.brasil.elpais.com /Caê Vasconcelos / reportagem originalmente publicada no site da Ponte Jornalismo em 27 de agosto de 2020.