Para conter epidemia, entidades se unem e elaboram recomendações ao governo
O Brasil, atualmente, é o segundo país do mundo com maior número de mortos e infectados pela covid-19. São 84.207 mortes em decorrência da doença e 2.289.951 casos confirmados.
Apesar de caminharmos para cinco meses desde o registro do primeiro caso, o país ainda segue sem um plano unificado de enfrentamento à doença. Preocupados com essa desgovernança, entidades ligadas à saúde coletiva elaboraram um documento com uma série de recomendações ao governo federal.
O Plano Unificado de Enfrentamento à Covid-19 foi lançado no dia 3 de Julho. O documento conta com aproximadamente 100 páginas com soluções para controlar, superar e reduzir os impactos econômicos e sociais da pandemia na população brasileira.
O Brasil de Fato conversou com o médico de família e comunidade da Rede de Médicos e Médicas Populares, Alysson Sampaio. Ele afirma que se não houve uma ação efetiva, em breve, o Brasil será o país do mundo com maior número de mortos e infectados pela doença. Confira:
Brasil de Fato: Como se deu a construção do Plano Nacional e quais os principais pontos?
Alyson Sampaio: Já estamos há quase cinco meses da pandemia no Brasil e desde então há uma descoordenação das três esferas de governo sobre como enfrentar a doença. Isso, em parte, devido à falta de planejamento do Governo Federal em apresentar um Plano Nacional de Enfrentamento à pandemia. Além de o presidente Jair Bolsonaro ser extremamente antipedagógico com relação ao distanciamento social e ao que há de evidências científicas disponíveis relacionadas ao tratamento da Covid-19 colocando ainda a cloroquina como a panaceia, que vai resolver todas as questões sem que haja comprovação científica de fato.
Todos esses pontos interditam o debate de organizarmos o Sistema Único de Saúde (SUS) para o enfrentamento. Por todas essas razões, no dia 3 de Julho, uma série de entidades da saúde coletiva: a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; a Sociedade Brasileira de Bioética, entre outros, formularam um plano amplo colocando algumas recomendações às autoridades políticas e de saúde aos gestores do SUS e também à sociedade em geral.
Isso considerando não o sistema público com um compartimento estanque, uma vez que 1/4 da população é coberto por planos privados de saúde, ou seja, 25% da população, mais da metade dos leitos de UTI estão no setor privado. Desta forma, um dos pontos que a plataforma propõe é que haja igualdade de acesso à população brasileira ricos ou pobres, classe média ou não e que o acesso à esses leitos seja a partir de critérios clínicos e não critérios de renda, ou seja, a criança da fila única semelhante que é reproduzido hoje na fila de transplante de órgãos e que essa fila única seja regulada pelo SUS.
A proposta não é de forma alguma fazer uma estatização forçada, tomar na mão grande. A ideia é que essa fila única e essa contra atualização do Estado com o setor privado seja feita mediante a ressarcimento, claro, sem que os preços sejam exorbitantes. Ou seja, preços do mercado. Isso a constituição prevê em situações de pandemia, de calamidade pública.
De forma resumida, o plano é bem abrangente, porque além de considerar essa questão de articulação público-privada para garantir o direito à saúde, tem também a questão do financiamento, os créditos que foram aprovados no Congresso Nacional e apenas 30%, liberado para a covid. (é importante) que o total desses créditos permaneçam para o orçamento de 2021.
Desde 2017 está em vigência a Emenda Constitucional 95 (EC 95), que congela durante 20 anos, os recursos da saúde. Então, mais do que nunca é importante que seja superado esse desfinanciamento da saúde pública. Nós temos um Sistema Universal de Saúde no Brasil, só que ele é extremamente subfinanciado desde da sua criação na década de 90.
O plano é bastante amplo, porque além de colocar esses elementos econômicos e financeiros, coloca também aspectos que devem considerar a diversidade da população brasileira, importante considerar não só a universalidade do acesso, mas também a equidade, que respeite as diferenças dos povos indígenas, da população quilombola, ribeirinha, marisqueiros, catadores, população LGBT, mulheres, negros, entre outros. Existe, institucionalmente, uma política específica para essas populações, mas que os gestores precisam operacionalizar ao tratar dessa pandemia.
Como funciona, na prática, a questão do ressarcimento e de que forma isso envolve os impostos que já pagamos direcionado ao SUS?
O financiamento do SUS é feito com base em impostos recolhidos sobre consumo. A maior parte do imposto é recolhido sobre a população trabalhadora e não nas empresas. O setor privado assistencial, tanto de planos, como o hospitalar se expandiram a partir de subsídios, não pagando imposto para o setor público para financiar a saúde e a educação.
Atualmente, no SUS apesar de se dizer Sistema Único, já ocorrem essas contratualizações seja em serviço para pacientes renais crônicos, por exemplo. Cerca de 90% é bancado pelo SUS, mas boa parte do serviços de hemodiálise vem do setor privado e está, cada vez mais, internacionalizado. O mesmo se repete nos serviços oftalmológicos e cirurgias. Em boa parte deles há essas contratualizações com o SUS.
Isso ocorre, porque muitas vezes o SUS não tem serviço próprio estatal. Contudo, nesse momento, há uma resistência do setor privado para que haja contratualizações, principalmente, dos planos de saúde, porque há uma diferença entre setor privado dos planos para os hospitais.
Os hospitais privados querem as contratualizações, porque é recurso público chegando fácil, já os planos de saúde, não. Eles afirmam que vai ferir o direito do consumidor, alegando que quem paga plano de saúde se sentirá lesado pela população do SUS que estará assumindo o acesso, o que na verdade é uma grande mentira.
Contudo, na prática a contratualização é feita por um período específico – nesse caso da pandemia – e respeitando um determinado nível de ocupação dos leitos.
Outro ponto importante dentro do plano é com relação aos critérios de flexibilização para pandemia. Ou seja: será que está na hora de abrir ou não? Tem que ter um Plano Nacional que estabeleça critérios. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece esses critérios. Dessa forma, cada município, estado adota o seu abrindo comércio e fechando comércio.
Assim, o Plano coloca alguns pontos: não pode abrir se o número de casos e a taxa de incidências estão em ascensão – é o caso do Brasil; se o número de óbitos e a taxa de mortalidade estão em ascensão; se a disseminação geográfica da epidemia estiver ocorrendo ainda – é também o caso do Brasil porque a epidemia está se interiorizando – e as taxas de ocupação dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) sejam superiores a 70%. No Brasil há casos de municípios com 96% de ocupação do leito, como é o caso da região Norte.
A ideia vem no sentido de forçar o governo a minimizar os impactos da pandemia?
Com certeza. Embora existam funcionários de carreira dentro do Governo Federal, do Ministério da Saúde, a gente sabe que a política de Saúde está subordinada ao Executivo, ao governo neofascista do Bolsonaro e à política econômica também dessa articulação público-privada e ao subfinanciamento.
Assim, o plano se faz necessário porque, apesar de pandemia afetar todos os países e classes sociais, ela afeta as pessoas de maneira diferenciada por duas questões: primeiro a população mais pobre é mais afetada. As periferias das grandes cidades têm aglomeração de pessoas e junto com a falta de saneamento básico, tornam essa população mais vulnerável. Cobrar da população periférica que possa manter uma higienização, lavar as mãos sempre faltando água é de uma maldade muito grande.
Logo, as taxas de mortalidade e disseminação do vírus são maiores nas populações mais pobres. Ou seja, a desigualdade social que é estrutural no país contribui para isso, mas o Sistema de Saúde Brasileiro, vem na concepção de cidadania, que dá um status de igualdade a toda população ricos ou pobres.
Isso acontece em outras partes do mundo, como na Inglaterra, Austrália, no Canadá, em Cuba. Isso não acontece nos Estados Unidos, não acontece na China, porque eles não contam com um Sistema Universal de Saúde.
Então, cada país vai ter uma estratégia diferente e os países que tiveram uma estratégia de maior coordenação entre as esferas de governo municipal, estadual e nacional, em que houve uma participação popular grande, de isolamento os resultados foram outros. No Brasil isso não ocorreu. Podemos dizer que são diferentes formações sociais, desiguais também, mas o Estado teve uma política e plano nacional de enfrentamento e isso está faltando no Brasil.
O auxílio emergencial cumpre esse papel para amortecer os efeitos da pandemia, sobretudo, econômicos, mas também precisamos de um Plano de Enfrentamento.
Outra questão importante é com relação à Ciência e Tecnologia no Brasil, que também vêm sofrendo com o subfinanciamento na educação pública. Somos referência internacional em produção, contudo, nos últimos anos esse setor vem perdendo financiamento e sendo criminalizado pelo governo federa. Ainda assim nossos cientistas resistem e dão exemplo na produção de vacina de imunobiológicos, a exemplo da Bio Manguinhos e do Instituto Butantan, em São Paulo, tanto é que a Fiocruz está trabalhando intensamente na produção da vacina que está prevista para ser lançada ainda esse ano.
Quais seriam, então, os cinco principais pontos do documento?
A gente tem um país continental, ou seja, milhões de Brasis dentro do Brasil não só termos de desigualdade econômica social, mas também cultural. Temos os povos indígenas, todas as populações que já têm suas políticas negligenciadas historicamente, mas que se agravam em um momento de crise econômica, social, política e sanitária, porque quem acaba pagando a conta são os mais pobres.
Com relação ao plano, acredito que a principal questão é que exista uma Coordenação Nacional para o enfrentamento da pandemia, porque é preciso pensar serviço de saúde de maneira regionalizada e não só de maneira estadual e municipal e isso requer uma engenharia gestora muito grande.
É preciso ter um Comitê Nacional de enfrentamento a pandemia, em que esses comitês tripartites e bipartites regionais participem para que os gestores dos Estados e Municípios tenham participação, assim como as entidades científicas e da sociedade civil, que não estão sendo ouvidas.
Precisamos superar os subfinanciamento do crônico e histórico de 30 anos do SUS e a perda de financiamento causada pela EC 95. Para encerrar, os propósitos para o financiamento são três: primeiro que os créditos aprovados esse ano sejam repassados para orçamento de 2021 para a Saúde, para que ele seja incrementado, revogação imediata da EC 95 e que 10% das receitas correntes brutas sejam destinadas para a Saúde Pública.
Essas são as três propostas que nossos economistas estão discutindo, além do incentivo à Ciência e Tecnologia para produção de insumos e da vacina, além de proteção aos trabalhadores da Saúde, porque somos o segundo país com o maior número de casos do mundo e em breve seremos o primeiro em número de mortes, mas já somos o país com o maior número de mortes de profissionais do mundo, principalmente na área da enfermagem e médicos.
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