As crises têm nos ensinado muitas coisas. Uma delas é o aumento exponencial da vulnerabilidade social, que acaba criando condições para um processo acentuado de centralização e concentração de renda e patrimônio
Quando a epidemia de coronavírus foi descoberta pelos chineses, em dezembro de 2019, a economia-mundo já dava sinais de desaceleração. No meio da guerra comercial com os Estados Unidos, o crescimento econômico da China registrou, em 2019, seu pior resultado em trinta anos (6,1%). De todo modo, o crescimento do PIB norte-americano (2,3%), da zona do euro (1,2%) e brasileiro (1,1%) também ficou abaixo das expectativas. Com a coronacrise, em 2020, a previsão para o crescimento, “vaca sagrada dos economistas” (Celso Furtado), foi para o brejo.
Desde a crise financeira internacional, em 2007-2008, e a crise da zona do euro, em 2010, a economia-mundo apresenta sintomas de morbidade e, de maneira cada vez mais recorrente, está propícia a crises. Sem mesmo que houvesse uma plena recuperação do sistema econômico mundial, em 2020 a Covid-19 acelerou a crise econômica que já estava em processo. Como pano de fundo, juntamente com a crise do petróleo, a coronacrise tem provocado uma série de contradições imediatas nas economias nacionais, como desemprego, perda da renda monetária e empobrecimento das famílias, com forte tendência a se prolongar nos próximos anos.
Destarte, as crises têm nos ensinado muitas coisas. Uma delas é o aumento exponencial da vulnerabilidade social, que acaba criando condições para um processo acentuado de centralização e concentração de renda e patrimônio. Segundo relatório da ONG Oxfam, de toda a riqueza gerada no mundo em 2017, cerca de 82% foram parar nas mãos do 1% mais rico do planeta. O relatório ainda mostra que a riqueza dos bilionários aumentou, em média, 13% ao ano, desde 2010 – seis vezes mais do que os salários dos trabalhadores (2%) – e que oito homens têm a mesma riqueza que os 3,6 bilhões mais pobres do mundo. Esse indicador mostra que a escalada entre riqueza e pobreza não é convergente. Em todo caso, a crise faz o trabalho de limpar o mercado, jogando capital (pequeno, médio ou grande) e trabalho (qualificado ou não) para a franja do sistema.
Para tanto, com a coronacrise, os governos foram obrigados a adotar políticas de distanciamento social e quarentena para impedir o avanço da Covid-19. Seguindo orientações de infectologistas, o lockdown provocou a interrupção das atividades normais de circulação de pessoas, produção de mercadorias, consumo corrente, trocas comerciais, investimentos programados e linhas de crédito. Assim, a ruptura de todos os circuitos econômicos e fluxos de pessoas é acompanhada por uma escalada acentuada das desigualdades, que se tornou mais veloz com a coronacrise. O choque na oferta e na demanda desintegrou o equilíbrio geral walrasiano, que acontece quando em todos os mercados há perfeita compatibilidade entre a quantidade demandada e ofertada aos preços vigentes.
Pela evidência histórica, não é difícil dizer que a consequência dessa crise, acentuada pela Covid-19, não será o fim do neoliberalismo e das políticas liberais. Num sistema econômico como este, em que a acumulação e a valorização do valor são a essência, e não aparência, a anarquia da produção e o aumento da desordem econômica são combatidos com políticas de Estado, diga-se, de grandes proporções. Quando a riqueza capitalista, em seu movimento expansivo, encontra seu limite, esbarrando em sua própria valorização, como a crise atual, há um processo de socialização do prejuízo pelo Estado. Quanto maior a crise, maior o dispêndio de recursos públicos pelo Estado para garantir a acumulação capitalista.
Munidos de poder econômico e lobby político, os proprietários dos meios de produção recorrem à política estatal para salvar seu capital. Sabem os capitalistas que o Estado exerce uma influência considerável na economia de mercado por meio da demanda efetiva, seja adquirindo bens, comprando equipamentos, contratando serviços ou reciclando títulos podres. Sabem também que, no decurso de uma transação de salvamento, bilhões e mais bilhões de dólares são injetados para sustentar a não desvalorização do valor. Ao garantir a realização do valor, não necessariamente o Estado está assegurando condições necessárias para uma política de redistribuição de renda monetária. O socorro estatal, na valorização do capital, também não é sinônimo de ascensão social daqueles que estão marginalizados na franja do sistema.
Na coronacrise, como nas crises de 2007-2008 e 2010, aquele Estado de bem-estar que nasceu como resposta ao conflito armado de 1939-1945 tem sido novamente requisitado. Com esse pedido, fica evidente o caráter positivo da política de desenvolvimento social. Porém, a escalada do regime de acumulação financeira, sob a influência de políticas liberais de desregulamentação, tensionou o Estado de bem-estar, fazendo os direitos sociais e a cidadania começarem a desmoronar como um castelo de cartas. No âmago da “era de ouro” do capitalismo, a política estatal de proteção social e cidadania produziu mudanças qualitativas na sociedade europeia. Contudo, a periferia do sistema capitalista não sabe o que é um Estado de bem-estar, até porque a proteção social do centro dinâmico foi construída com base na superexploração da periferia.
No Brasil, por exemplo, o sistema tributário regressivo, que pune os mais pobres, acaba sustentando o exorbitante gasto estatal com o sistema financeiro e com os programas de subsídios creditícios e incentivos fiscais para o capital – sem considerar a reforma trabalhista, que precarizou as relações de trabalho, a reforma da Previdência, que praticamente nega o direito à aposentadoria, e o teto dos gastos, que congelou os gastos em saúde e educação. Logo, a capacidade do governo brasileiro de estabelecer respostas proativas para enfrentar a crise da Covid-19 e minimamente proteger os trabalhadores está comprometida.
Para tanto, dentro da estrutura do modo de produção capitalista, o que o coronavírus fará no Brasil, e no mundo, será multiplicar o cortiço Tom-All-Alone, de Charles Dickens (A casa noturna), e o número de Gente Pobre, de Fiódor Dostoiévski. É certo que a população urbana de São Paulo, Quito, Lima, Caracas, Cidade do México e Washington estará mais desnutrida e miserável nos próximos anos. Se hoje existem mais de 200 mil favelas espalhadas pelo mundo, cuja população varia de algumas centenas a mais de 1 milhão de pessoas, esse número será bem maior pós-coronacrise. Em breve, nos próximos vinte anos, cerca de quinhentos indivíduos deixarão mais de U$S 2,1 trilhões em herança para seus herdeiros, uma soma maior que o PIB dos países do Mercosul.
A Fantine de Victor Hugo (Os miseráveis), a Maheude de Émile Zola (Germinal), o Fabiano de Graciliano Ramos (Vidas secas) ou mesmo o Chico Bento de Rachel de Queiroz (O quinze) se reproduzirão aos milhares na Ásia oriental e no Pacífico, na Europa e na Ásia central, na América Latina e no Caribe, no Oriente Médio e no norte da África, no sul asiático e na África subsaariana. Todavia, mesmo diante da miséria, parafraseando Franz Kafka, há esperança suficiente e infinita para a construção de uma sociedade baseada nos princípios da justiça, mas não para nós.
www.diplomatique.org.br /Juliano Giassi Goularti, doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp