Por que o Amazonas e o Ceará estão entre os principais focos da Covid-19 no Brasil? Artigo correlaciona a explosão de casos com os dados de saneamento básico nesses estados, e apresenta novos estudos que demonstram a persistência do coronavírus nas fezes de pessoas infectadas, mesmo as assintomáticas
Uma versão corrente do mito grego de Pandora diz sobre a possibilidade – devastadora – de uma caixa, que trazia as mazelas do mundo, ser aberta. Com a abertura da Caixa de Pandora os males da humanidade sairiam e se apresentariam tal como são na realidade.
Prometeu, pai da humanidade, cujo nome também pode ser traduzido como “aquele que vê antes” era irmão de Epimeteu “aquele que vê depois” ou imprudente. Em várias versões do mito a abertura da Caixa está ligada à atuação de Epimeteu junto à Pandora (pan = todos; dora = presente).
De alguma forma a pandemia do vírus Sars-Cov-2 está trazendo à tona de forma muito clara e indelével a grande mazela dessa sociedade dita moderna que, como sabemos, pauta-se por uma profunda desigualdade em âmbito global.
A mundialização da economia, ou globalização, como preferem alguns autores, tem ampliado e aprofundado as assimetrias da já sólida e conhecida divisão internacional do trabalho segundo a qual, cada país, ou bloco de países, “especializa-se” em determinados setores da economia e assume papéis diferentes.
O Brasil, como bem sabemos, tem consolidado seu papel na economia internacionalizada por meio da exportação de produtos primários: basicamente minérios e produtos de origem agropecuária.
Esta escolha de projeto de nação em que temos uma área equivalente ao território da Alemanha cultivada com soja, supostamente um alimento, e, ao mesmo tempo, temos quinze pessoas por dia morrendo de subnutrição no país, tem levado, obviamente, à vivência de uma tragédia cotidiana por centenas de milhares de pessoas.
A pandemia da Covid-19 escancara – de uma vez por todas – o drama da desigualdade social em escala nacional. O drama de um país que está entre as maiores economias do mundo e, no entanto, nem de longe tangenciou duas lições de casa fundamentais – uma delas inclusive preconizada pela ONU no momento de sua criação após a Segunda Guerra Mundial. A saber: a reforma agrária e o chamado direito à cidade.
Pagamos o preço pela desmesurada desigualdade social! Mas, evidentemente, não pagamos igualmente este preço. Como muitos artigos anteriores a este têm mostrado: há um perfil “dos que mais morremos e morreremos”! A morte e os casos de infecção pela Covid-19 não nos atingem igualmente, não nos atingem “democraticamente”!
O que a Covid-19, assim como Pandora, “trouxe à luz”, dentre outros elementos (inclusive o fato de que seu surgimento pode estar relacionado ao modelo agrícola hegemônico) é a assombrosa assimetria dessa sociedade e o risco iminente de que a pandemia tome proporções inimagináveis no Brasil. Alguns mapas nos indicam esta perspectiva de forma muito clara.
No Mapa 1 temos o número de casos de pessoas infectadas com a Covid-19 em termos absolutos, ou seja: os números brutos, os números oficiais totais de pessoas contaminadas. Já no Mapa 2 temos a taxa de casos confirmados por município, ou seja, o número de pessoas infectadas em relação ao total da população em cada município, conforme é possível conferir em sua legenda.
Ao analisarmos o Mapa 1 fica claro que os círculos maiores estão nas capitais dos estados, que são as cidades ou as metrópoles mais populosas e – evidentemente – terão maior número de casos: tanto em função da quantidade de habitantes, quanto em função da proximidade entre estes (densidade demográfica).
Entretanto, ao analisarmos o Mapa 2, que mostra a taxa de pessoas infectadas, nos chama a atenção dois elementos: o primeiro deles é que no estado do Amazonas há três municípios com as maiores taxas de casos confirmados de Covid-19 por município, dentre eles Manaus, como inclusive é de conhecimento geral. O segundo elemento é que, dentre os estados do Nordeste, aquele em que há não só o maior número de casos, mas, também, um “espraiamento” espacial maior, ou seja, um grande número de municípios com casos confirmados, é o estado do Ceará.
Como se vê, São Paulo e Rio de Janeiro, as duas maiores metrópoles do Brasil, lideram o número de casos confirmados. O que, evidentemente, já era esperado, tanto em função do volume populacional, da densidade demográfica desses estados que são as maiores e, também, pelo fato dessas duas metrópoles liderarem o ranking de vôos internacionais: a grande porta de entrada da Covid-19. Ocorre que, na sequência, temos os estados do Nordeste, além do Amazonas (região Norte), com maior número de casos confirmados: Ceará, Pernambuco, Maranhão e Bahia.
Ora, poder-se-ia perguntar: por que o município de Manaus, cuja densidade demográfica é de cerca de 170 habitantes por km², número bem inferior aos dos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro com, respectivamente, cerca de 7.300 e 5.200 habitantes por km², tem tantos casos de Covid-19 confirmados? Com taxas similares às de São Paulo e Rio de Janeiro? E, poder-se-ia perguntar também por que o estado do Ceará, como um todo, que tem uma densidade demográfica em torno de 56 habitantes por km², teve um número de casos confirmados de Covid-19 até 19 de abril que equivalia a cerca de 70% do total de casos do Rio de Janeiro?
Os próximos mapas nos possibilitam tecer algumas hipóteses para responder a estas perguntas.
Mapa 3
Mapa 4No Mapa 3 temos representado o Abastecimento de Água por município: porcentagem da população total (de cada município) com acesso à água tratada. Já no Mapa 4 temos a porcentagem da população urbana com acesso à água tratada.
Como se vê, a realidade do estado do Ceará é bastante precária no tocante ao acesso à água: na esmagadora maioria dos municípios nem metade da população tem acesso à rede geral de abastecimento de água e, com relação à população urbana dos municípios do Ceará, em grande parte dos municípios mais de 25% da população urbana não têm acesso à água tratada.
Qual pode ser, portanto, a conexão entre água tratada e maior número de casos de Covid-19? Esta conexão pode estar associada à outra ponta do problema da água no meio urbano: coleta de esgoto. A associação entre esses dois fatores pode ser uma pista muito importante no sentido de construirmos hipóteses que nos permitam compreender o porquê da distribuição desigual da gravidade da pandemia no Brasil.
Além disso, esperamos também contribuir para alertar os diversos segmentos da sociedade e, sobretudo, o poder público, para que medidas cabíveis sejam adotadas diante da gravidade desse quadro. Vejamos os mapas 5 e 6:
Mapa 6O Mapa 5 refere-se à taxa da população de cada município que não tem acesso à coleta de esgoto e, no mapa 6, tem-se essa taxa em relação à população urbana em cada município. Como se vê, em Manaus, por exemplo, 87,4% da população urbana não é atendida com coleta de esgoto!
Esses dois mapas mostram de forma crua e inequívoca o cruel padrão de urbanização brasileiro: desigual, segregacionista e nefasto para a saúde humana. A maior parte da população brasileira sequer tem acesso à coleta de esgoto! Como se vê em ambos os mapas: o Brasil está praticamente inteiro “tingido” com os tons mais escuros. Ou seja, na maior parte dos municípios do Brasil mais de 50% da população não tem seu esgoto coletado.
Isso significa que – literalmente – grassa no país a quantidade de pessoas que convive com a exposição às fezes e à urina em seu ambiente.
Muito embora os pesquisadores ainda estejam levantando hipóteses tanto sobre a real origem da Covid-19 quanto sobre suas várias formas de disseminação, alguns estudos têm mostrado a persistência do Sars-Cov-2 nas fezes. Este é o caso do recente artigo publicado na revista The Lancet: “Prolonged presence of SARS-CoV-2 viral RNA in faecal samples”. De acordo com este artigo é possível que o vírus continue a ser eliminado nas fezes dos pacientes infectados por muitos dias após o início da infecção e, mesmo, após a sua cura.
Já o estudo “First confirmed detection of SARS-CoV-2 in untreated wastewater in Australia: A proof of concept for the wastewater surveillance of COVID-19 in the community” mostra que a eliminação do Covid-19 nas fezes se dá não só em pacientes efetivamente infectados, como também por pessoas assintomáticas. Este estudo, o primeiro a evidenciar a presença do vírus no esgoto na Austrália, mostra o quanto o monitoramento da água é essencial no sentido de orientar políticas de saúde pública para a contenção do avanço da pandemia. O estudo aborda também a gravidade da presença do vírus em esgoto e, particularmente, sua gravidade em locais que não tenham tratamento.
Nesse sentido, se somarmos a falta desses dois elementos básicos do saneamento ambiental urbano no Brasil, coleta de esgoto e tratamento de água, podemos inferir que os efeitos da disseminação da Covid-19 serão catastróficos em função da possibilidade contaminação “fecal-oral”.
É muito possível, portanto, que a tragédia vivida hoje em Manaus, no Ceará e nas periferias das grandes cidades esteja relacionada à associação entre estes dois fatores, ou, apenas a um deles: a falta de coleta de esgoto.
A pandemia – cuja etimologia remete à “pan” de “todos”, ou seja, uma doença que se espalha e que atinge o mundo todo – em países como o Brasil, que tem um padrão de urbanização acintosamente desigual, que mal chega a coletar as fezes (que dirá tratar) de seus cidadãos e, em que muitas vezes as pessoas são obrigadas a conviver com esgotos a céu aberto, pode vir a tornar-se “pandemônio” (palavra cuja etimologia remete ao “palácio de Satã”). À histórica desigualdade social brasileira (no campo e na cidade) soma-se agora, diante da pandemia, à absoluta iniquidade do Estado que, em vez de posicionar-se coerentemente com relação aos já referendados estudos científicos que indicam o isolamento social como medida de prevenção cabível, ao contrário, estimula a aglomeração. É, pois, necessário que medidas urgentes sejam tomadas no sentido de considerar a falta de coleta de esgoto e de tratamento de água no Brasil como um potencial multiplicador dos casos de pessoas contaminadas pela Covid-19.
Ao contrário do caminho que nos levaria ao pandemônio, seria bastante pertinente que considerássemos a perspectiva alvissareira de Pandora. Pandora, ao abrir a caixa, traz “para fora”, para a luz, as mazelas, os males do mundo, mas, com eles, traz também a verdade e a possibilidade de sua superação. Será muito positivo se esta pandemia puder nos fazer olhar para as nossas chagas que precedem à própria pandemia. Com a pandemia estas chagas se abrem ainda mais, são escancaradas, gritam! Estamos convivendo, em nosso cotidiano, com cenas e fotos de valas sendo abertas em cemitérios em uma velocidade jamais vista. Com a pandemia vemos claramente quem é que mais morre. Com a pandemia não é mais possível fingir não ver a desigualdade. Com a pandemia as desigualdades e as assimetrias emergem: mundialmente os países mais vulneráveis são os mais pobres. Nacionalmente vemos as desigualdades regionais aflorarem: a região Nordeste, proporcionalmente, é a que mais padece. Em âmbito local: as desigualdades raciais, de gênero e econômicas se mostram no “número” daqueles que mais morrem.
Felizmente, avolumam-se as experiências democráticas e solidárias de resistência e busca de superação dessas vulnerabilidades. Se, tomarmos de empréstimo o mito de Pandora para enxergarmos o que realmente essa pandemia revela, teremos a chance de superar as nossas grandes desigualdades. A pandemia, nos leva, portanto, à oportunidade de pensarmos qual projeto de nação e de sociedade queremos.
Imediatamente, a questão que se impõe é a seguinte: com qual projeto vamos enfrentar a pandemia? Com um projeto que olhe de frente as nossas vulnerabilidades ou aquele, em curso, que deixa morrer uma parte da população, notadamente, a mais pobre? Buscamos Pandora ou pandemônio?
*Larissa Mies Bombardi é professora-doutora do Departamento de Geografia da USP; e Pablo Luiz Maia Nepomuceno é técnico do Laboratório de Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento – Depto Geografia USP.
www.diplomatique.org.br / Larissa Mies Bombardi e Pablo Luiz Maia Nepomuceno