Coronavírus nas favelas: como combater a pandemia na periferia
Vale o bike-som informando nas vielas de Recife. Vale meme no WhatsApp para população dos morros do Rio. Vale também bater de porta em porta nas comunidades de São Luís. O que importa é informar e oferecer alguma proteção para os 13 milhões de brasileiros que vivem em favelas em meio a pandemia, ao descaso histórico dos governantes e a falta de uma comunicação que enxergue a realidade de populações pobres.
Ecoa reuniu nesta sexta-feira (24) quatro lideranças comunitárias no debate ao vivo “Enfrentamento do coronavírus nas favelas brasileiras”, mediado pela escritora e pesquisadora Bianca Santana, colunista do canal. Eles deram exemplos de como a população de favelas e periferias está se organizando, se informando e criando soluções para poder se alimentar, higienizar e se isolar do coronavírus, relataram as dificuldades e questionaram as ausências do Estado.
“Hoje não tem água aqui. Meu baldinho está lá na bica para juntar um pouco. Então, não adianta ficar falando na TV: ‘lave a mão toda a hora’. Água aqui é um dia sim, no outro não. Álcool gel é artigo de luxo“, contou Christiane Teixeira, idealizadora do projeto Coroadinho Sem Corona, que atua para reduzir o impacto da doença na favela com 100 mil habitantes na capital maranhense.
O fortalecimento de processos comunitários foi destacado pelos entrevistados. “Se álcool gel não é uma realidade aqui, então a gente distribui garrafas pet com água e sabão para as pessoas”, disse Anna Karla Pereira, cofundadora da Frente Favela Brasil, organização com atuação a partir das favelas do Coque e Ibura, na capital pernambucana.
Se a gente está vivo hoje é porque temos laços
Anna Karla Pereira, cofundadora da Frente Favela Brasil
Na segunda maior favela de São Paulo não é diferente. Até três ambulâncias foram alugadas (a um custo diário de R$ 5.000) para poder dar conta do que as autoridades eleitas não fazem em Paraisópolis. “As ambulâncias do Samu não entram aqui. Então, esse é o jeito para salvar vidas”, resumiu Gilson, que é também coordenador nacional do G10 das Favelas, que reúne algumas das maiores comunidades do país. “O corona escancarou os problemas das favelas brasileiras.”
Ele contou que criou a figura do “presidente de rua”, voluntário que cuida das 50 casas perto da dele. Com dados das agentes comunitárias, ele tem o mapa de onde estão os doentes crônicos e os idosos e chama a ambulância em caso de necessidade. Esse formato já está sendo replicado em 361 favelas pelo país. Além disso, criou-se uma sala de isolamento para tirar os doentes do convívio com os familiares, o que também existe no morro do Alemão, no Rio.
“Cada um de nós tem um presidente com força, com luta, que quer ajudar a sua comunidade a sair desse desafio. Primeira coisa que as pessoas podem fazer é não se calarem. É inadmissível que milhões de pessoas que moram em favela não estão tendo as condições mínimas para sobreviver”, sentenciou a liderança de Paraisópolis.
Isabela Souza, nascida e criada na favela da Maré e atualmente diretora do Observatório de Favelas, explica como é feita a comunicação na organização. “Todo dia conversamos com um especialista e temos o desafio de pensar na perspectiva da periferia. Daí fazemos e mandamos um meme e um áudio para explicar a pandemia”, descreveu.
Pra produzir conteúdo pra mototaxista, por exemplo, a gente ligou pro Careca que é o mototaxista que mais trabalha com a gente
Isabela Souza, diretora do Observatório de Favelas
Foi essa preocupação de desviar da desinformação fez as favelas de Pernambuco usarem moto-som e bike-som, com seus alfo-falantes geralmente usados pelo comércio, para o serviço público de alertar as pessoas sobre a doença. “Modificamos a linguagem para chegar aos jovens. Também espalhamos faixas em pontos de muita aglomeração”, disse Anna Karla.
Gilson exemplifica como poderia ser a comunicação. “Se você fala ‘a saúde vai colapsar’, ninguém vai entender aqui. Tem que falar que quando eles forem no hospital não vai ter vaga. Só assim para entender, porque aqui para muita gente é como se coronavírus fosse algo que só existe na TV, como se não fosse uma realidade”, desabafou.
Quando população entender que ‘colapso’ é morrer na porta do hospital, aí o Brasil pega fogo. Precisamos criar uma política de comunicação para a realidade nas favelas
Gilson Rodrigues, coordenador nacional do G10 das Favelas e líder comunitário em Paraisópolis
A informação também pode chegar a pé. “Nós batemos de porta em porta. Tem casa aqui que não tem nem fogão. Como vai ter celular com wifi? Quem vive aqui não quer ser visto como vítima, mas busca uma ajuda. Nós levamos informação e doação”, contou Christiane.
As quatro lideranças foram unânimes em apontar que as ações oficiais não chegaram de forma efetiva nas favelas. “Tem política para salvar os bancos, salvar o varejo, mas não para os moradores de favela“, criticou Gilson. Isabela foi ainda mais veemente. “É um pressuposto da democracia, mas o Estado não cumpre seu papel, ficando omisso e cínico. Por isso, para dar conta desse momento, está acontecendo essa onda linda de fortalecimento dos processos comunitários, pela urgência para lidar com a desigualdade.”
Anna Karla ressalta que no Nordeste a situação é ainda pior porque houve muito corte entre os beneficiários do programa de transferência de renda do Bolsa Família na região. E a isso se somou o desemprego e a pandemia. “A gente faz a nossa parte porque a gente precisa estar vivo. A sociedade civil é muito estigmatizada pelo governo federal, mas as organizações sociais estão de parabéns por darem corpo a esse combate.”
Para Christiane, os governantes poderiam se inspirar nas favelas para saber o que fazer na sociedade como um todo.
O governo tinha que vir aqui aprender. A gente agiu bem antes do que eles. Porque as pessoas não são só números de CPF, elas têm fome
Christiane Teixeira, idealizadora do projeto Coroadinho Sem Corona, em São Luís
www.uol.com.br / Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo