De pedreiro a universitário: “Bati a laje da universidade onde hoje estudo”
Quando ingressou pela primeira vez em um dos campus da UFF (Universidade Federal Fluminense) em 2009, Elcimar Moreira da Silva tinha 22 anos, mas não levava livros ou cadernos. Seu objetivo ali era outro: fora chamado pelo pai para bater a laje e fazer o chão da expansão da unidade em Santo Antônio de Pádua, no noroeste fluminense.
Sob um calor excruciante, ele trabalhou tanto que chegou a passar mal. Bateu pedra e encheu os carrinhos de brita e areia por dois dias. Por cada um desses dias de trabalho pesado ganhou “uns R$ 30, R$ 40”, que foram revertidos para abastecer a despensa vazia da casa onde morava com a família.
Quando ingressou pela primeira vez em um dos campus da UFF (Universidade Federal Fluminense) em 2009, Elcimar Moreira da Silva tinha 22 anos, mas não levava livros ou cadernos. Seu objetivo ali era outro: fora chamado pelo pai para bater a laje e fazer o chão da expansão da unidade em Santo Antônio de Pádua, no noroeste fluminense.
Sob um calor excruciante, ele trabalhou tanto que chegou a passar mal. Bateu pedra e encheu os carrinhos de brita e areia por dois dias. Por cada um desses dias de trabalho pesado ganhou “uns R$ 30, R$ 40”, que foram revertidos para abastecer a despensa vazia da casa onde morava com a família.
Naquela época, Elcimar sequer imaginava que, dez anos depois, se tornaria um dos universitários que pisariam no chão que ajudou a construir: ele é hoje um dos alunos da UFF e cursa o segundo semestre de Física, área de atuação com a qual sempre sonhou.
Minha vontade era de falar para todo o mundo: ‘Sabe esse chão que a gente está pisando aqui? Eu que ajudei a construir.
Apesar de atualmente estar desempregado, Elcimar sai todos os dias do município de Miracema, onde mora, para o campus que ele e seus familiares ajudaram a construir, em Santo Antônio de Pádua, a fim de mergulhar em cálculos matemáticos complexos e no estudo aprofundado da relação entre matéria e energia em todas as suas possibilidades —de partículas subatômicas à imensidão do Universo.
Elcimar contou ao UOL como chegou aos bancos de uma universidade pública. Leia o depoimento dele a seguir:
“Enchemos os carrinhos de brita e areia debaixo do sol”
“O ano era 2009 e eu estava me formando no ensino médio. Eu tinha 22 anos. Meu pai era pedreiro e trabalhava em obras, e nessa estavam trabalhando ele, um dos meus irmãos e meu tio. Na hora de bater a laje, eles precisaram de outras pessoas, então chamaram eu e meu irmão. Eu sabia que era o prédio da UFF, mas não tinha muita ideia do que estava por vir.
Quando cheguei, vi aquela obra enorme! Aquele monte de areia. Era muita areia, uma montanha. Fiquei impressionado. Já havia ido a outras obras com meu pai, mas nunca tinha visto uma daquela proporção.
Começamos a encher os carrinhos de brita e areia debaixo do sol, do calor insuportável. Foi um sofrimento. Eu e meu irmão, a gente era os menorzinhos ali. Todo mundo —os funcionários que estavam ali— olhava com preconceito porque sabia que a gente não pertencia àquele lugar. Porque eu era um nada, eu não tinha nada. Eles achavam que a gente não pertencia àquele ambiente, sei lá. Achavam que a gente não ia aguentar aquilo porque o serviço era muito pesado, muito puxado. Mas nós continuamos. Era uma laje enorme, de altura e comprimento.
Aí nós fomos almoçar um pratão de comida no bandejão. Todo mundo comendo saladinhas, mas eu e meu irmão não: nós enchemos nossos pratos de arroz e feijão, com muita comida mesmo.
Até passamos mal depois do almoço. Fui ao banheiro, passei mal, me deu uma tontura, mas melhorei e voltei a trabalhar.
O dia foi indo e a gente lá, batendo a laje, muito cansado. Quando terminou o turno, nós fomos embora e foi um alívio. Eu e meu irmão fomos pra casa e apagamos, dormimos na hora. Foi um trabalho pesado, debaixo do sol. Estávamos exaustos. No dia seguinte, fomos para a UFF para mais um dia de serviço. Batemos a laje.
Eu acho que nos pagaram uns R$ 30, R$ 40 por dia. Nós pegamos nosso dinheiro suado e entregamos para o nosso pai encher a despensa vazia. Eu queria mesmo era ajudar”.
“Entrei por cotas raciais, mas entraria por nota também”
“Passaram-se alguns anos desde a construção. Eu acabei atrasando os estudos e completando o ensino médio um pouco mais tarde do que a maioria. Então eu fui fazer o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. Meu sonho sempre foi fazer Física. Eu queria muito ingressar na universidade, mas achava que não ia conseguir o que eu queria, que era Física. Até pensei em Matemática.
Eu tenho uma filha de seis anos e tinha que trabalhar. Achei que não ia dar certo, pois alegria de pobre dura pouco. Mas eu passei no vestibular de Física em 2018, passei pelo processo seletivo e meu nome foi um dos escolhidos.
Eu entrei pelas cotas raciais, mas entraria por nota também, pois tirei nota suficiente para entrar. A nota de corte não era muito alta, não. Acho que só a gente que é meio maluco gosta de Física.
Minha mãe foi comigo para eu me matricular. Entrávamos de sala em sala levando a documentação e me registrando. E eu pensando que não ia dar certo, não estava acreditando. Como eu disse, alegria de pobre dura pouco.
Na última sala de entregar papéis faltaram duas folhas, e eu fui correndo, desesperado, para tirar as cópias. Quando voltei e entreguei, o moço me disse: ‘Parabéns. Você está na UFF!’. Aí a ficha caiu. Eu tinha conseguido! Eu consegui! Foi incrível.
Eu não consigo nem explicar direito o sentimento, a felicidade que foi ter aquela certeza de que eu estava na universidade.
“Me senti um craque de futebol”
Quando pisei na UFF pela primeira vez como aluno, eu pensei: ‘Cara, nem parece que foi esse lugar em que eu bati a laje’. Era um sentimento de orgulho muito grande.
Eu sempre quis ser jogador de futebol e, para mim, a sensação foi de ter conseguido isso. De um sonho muito grande realizado. Eu me senti um craque naquela hora.
Minha vontade era de falar para todo o mundo: ‘Sabe esse chão que a gente está pisando aqui? Eu que ajudei a construir’. Sensações assim a gente tem que aproveitar ao máximo.
Todos os dias eu pego transporte da cidade onde eu moro, Miracema, para o campus da UFF, em Santo Antônio de Pádua. Não é um trajeto muito comprido não, são uns 14 km de distância entre as cidades. Estou no segundo semestre agora.
No começo eu tive um pouco de dificuldade porque o tempo da universidade e a maneira como o conhecimento é passado não são como no ensino médio. É muito mais corrido, exige mais do aluno e muito mais tempo de estudos. Eu também não tive uma base muito forte em Matemática.
Mas agora eu já me ambientei, já sei como é a correria da minha universidade, estou mais preparado. Eu conquistei isso.
Eu também preciso dizer que eu encontrei companheirismo dentro da minha sala.
Minha turma é muito unida e isso ajudou muito na minha adaptação. Os professores são fora de série. Eu gostaria de agradecer esse pessoal, de algum jeito, porque eu não imaginava um dia estar conversando com doutores. E hoje eu estou.
Cada cantinho do estado do Rio eu tenho dentro da sala. Então eu fiz amigos que eu nunca imaginei fazer. Para mim está sendo uma experiência sensacional, apesar de todos os obstáculos. Sem falar do apoio da minha família. Eles sabem que Física é super difícil e eu tenho sempre o apoio deles.
A única coisa que me magoa na UFF é ver as pessoas sendo demitidas. Tinham 35 funcionários, da jardinagem à segurança e limpeza. Agora só tem sete. Tem gente que fica três meses sem receber. Apesar de estar feliz lá dentro, eu vejo o drama de muitas pessoas por lá. São muitas coisas se passando e eu fico muito triste. Triste mesmo.”
“O trabalho como pedreiro atrapalha nos estudos”
Ainda trabalho como pedreiro e o meu trabalho atrapalhou muito também nos meus estudos. Muitas vezes pego um serviço, entro cedo e saio no final do dia, vou para a aula por volta das 18h, saio 22h, chego em casa às 23h.
Tenho muito pouco tempo para estudar. Mas aproveito esse tempo estudando, fazendo contas, muitas vezes falando sozinho [Elcimar ri]. É uma rotina muito pesada porque, além do cansaço físico, o cansaço mental é muito maior.
Trabalhar em obras cansa muito fisicamente e, quando eu vou às aulas fisicamente cansado, meu desempenho fica lá embaixo. Eu tentei conseguir um trabalho mais leve, que não tomasse tanto esforço físico. Quase consegui, mas não deu certo.
Agora estou desempregado, estamos sem oportunidade na minha cidade, e está bem complicado. Tenho filha, tenho família. Mas, de vez em quando, pego um serviço menor ou outro.
Desde que entrei na UFF, eu tenho muito orgulho de mim. A percepção muda na universidade e você muda muito. Meu senso crítico já se ampliou bastante. Estou me sentindo muito bem e orgulhoso.
O que eu posso dizer é, se alguma pessoa puder tirar alguma lição que seja válida, ela seria: não desista dos sonhos. Eu não acreditava porque já disse a você, alegria de pobre dura pouco. Mas eu tinha uma ponta de esperança. Ah, se tinha. Foi essa ponta de esperança que me botou lá. Depende de você mesmo, do nosso esforço. De acreditar que é possível.
Eu não sou muito ligado em política, mas acredito que o incentivo [do governo] ajudou muito e abriu portas. Tem que continuar sendo dessa forma porque gera muita oportunidade para as pessoas mais pobres. Apesar de eu não ser muito engajado nessa parte política, eu acho que ela, a política [que permite o acesso dos mais pobres às universidades], trouxe muitos benefícios para as pessoas.
Tenho sonhos e planos para o futuro. Eu pretendo seguir na pós-graduação para dar aulas. É uma das coisas que mais me deixa feliz. Tem pessoas que gostam de lidar com pessoas e eu sou uma delas. Tenho alegria de estudar Física e quero transmitir o meu conhecimento desse jeito mais leve e mais alegre.
Quanto a meu pai, ele morreu um ano depois de ter me levado para bater a laje. Ele não chegou a ver eu entrando como aluno na universidade onde eu fiz o chão junto com ele dez anos antes. Minha mãe tem muito orgulho de mim por eu ter entrado. Tenho certeza de que meu pai teria também. Foi ele quem me ajudou a construir tudo isso.”
www.educacao.uol.com.br / Marina Lang