Existe alguma ligação entre crise econômica e aumento nas taxas de suicídio ao redor do mundo?
Dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) apontam que, a cada 40 segundos, alguém comete suicídio no mundo.
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Os caminhos que levam ao suicídio são variados, mas uma palavra define o quadro que antecede a decisão de tirar a própria vida: crise, seja ela de qualquer natureza.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que, a cada 40 segundos, alguém comete suicídio no mundo. Majoritariamente fruto de instabilidade emocional e psíquica, para que contribuem diversos fatores, o suicídio é considerado um dos mais graves problemas de saúde pública, tanto em países em desenvolvimento como nos desenvolvidos.
O quanto, porém, crises econômicas influenciam esse cenário?
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A pressão do cotidiano expõe pessoas de diferentes faixas etárias a situações-limite e testam a resiliência de todos em lidar com uma situação adversa. Crises conjugais, doenças e dores crônicas, problemas de relacionamento, o medo da violência, a perda de um emprego ou a de um ente querido: cada um responde de uma forma às adversidades. Quando algum evento externo mobiliza uma população inteira, o quadro se torna mais sombrio.
A BBC News Brasil ouviu a psiquiatra Alexandrina Meleiro, da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (Abeps), reuniu dados da psicologia social, índices da Organização Mundial da Saúde e analisou estudos americanos, europeus e japoneses para entender qual a relação entre suicídio e cenário econômico adverso.
O Brasil vive nos últimos anos um cenário de instabilidade econômica, social e política. Para Meleiro, o clima negativo prejudica a saúde mental dos brasileiros, mas precisa ser visto em perspectiva.
“Há, de fato, um aumento no número de casos de depressão e de ansiedade em momentos de crise econômica. O suicídio é a resposta fatal a um problema de saúde mental que, de alguma forma, não pôde ser solucionado. Embora a crise econômica seja fator de risco reconhecido pelos órgãos internacionais de saúde, ela não responde sozinha pelo aumento no índice. A maioria das pessoas está enfrentando a crise econômica, sob pressão social e mental, e está sobrevivendo”, afirma a psiquiatra.
Segundo dados de 2016 da Organização Mundial da Saúde, quase 80% dos suicídios são reportados em nações de rendas baixa e média, e parte significativa dos casos ocorre em zonas distantes dos grandes centros.
Apesar disso, o suicídio nas grandes cidades chama mais a atenção dos meios de comunicação. Ocorrências em vias públicas, praças e pontes são mais visíveis e reportadas, o que nos leva a um dos principais problemas da divulgação de casos de suicídio, apontado por Alexandrina Meleiro: ele acaba sendo um fator de contágio.
Durante a Grande Depressão, grave crise econômica americana ocorrida a partir da quebra da Bolsa de 1929 em Nova York, tornou-se comum relacionar a falência financeira a tentativas de suicídio. O período ficou marcado no imaginário popular pelas cenas e narrativas, registradas pela imprensa americana, de tentativas de suicídio em lugares públicos.
No entanto, para os psicólogos americanos David Lester e Bijou Yang, autores de The economy and suicide – economic perspectives on suicide (Economia e suicídio – uma perspectiva econômica do suicídio, em tradução livre, de 1997), essa imagem não corresponde exatamente à realidade do período. Os altos índices de suicídio registrados no país, entre 1925 e 1932, se justificam pelo fato de que foi justamente nessa época que os Estados americanos passaram a informar ao governo as causas de morte de sua população. No ano de 1929, os suicídios não foram mais ou menos altos do que sempre foram. No momento subsequente, sim.
Na obra, Lester e Yang revisaram as taxas de suicídio nos EUA entre 1940 e 1994. Em uma abordagem que integrou aspectos econômicos e sociológicos, afirmaram que recessões podem impactar e ampliar o comportamento suicida, sobretudo em faixas etárias e grupos específicos.
Concluíram que as taxas de suicídio não explodiram durante os booms e colapsos econômicos do país, como havia sido previsto pelo sociólogo francês Émile Durkheim, autor de “O Suicídio”, publicado no final do século 19; que a taxa de desemprego tinha impacto prejudicial significativo entre homens brancos, embora desemprego não seja um fator tão prevalente para suicídio fora dos Estados Unidos (à exceção do Japão); e que, surpreendentemente, a taxa de divórcio foi a única variável que teve impacto consistente entre todos os grupos sociais.
O que o caso grego ensina
“Os felizes são iguais; os infelizes o são cada um a sua maneira” – no romance Anna Karenina, Liev Tolstói falava de famílias, mas a definição é precisa em relação aos dados de suicídio pelo mundo.
A combinação entre estresse emocional devido à recessão e a problemas financeiros pode levar a quadros suicidas. Alguns grupos sociais e etários são mais atingidos que outros, e a predisposição a determinados transtornos também é um dado relevante.
De modo geral e a despeito de exceções, a economia dos países viveu um momento eufórico entre os anos 1990 e meados de 2000. Mesmo com percalços, a consolidação da União Europeia proporcionou aos seus membros um salto na qualidade de vida – houve queda ou estabilidade no número de suicídios até entre grupos mais suscetíveis, como o da terceira idade.
O esfacelamento da União Soviética, em 1991, provocou mudanças profundas entre as ex-repúblicas. Saltavam à vista as elevadas taxas de suicídio entre os países independentes, como a própria Rússia e a Lituânia. Países do Leste Europeu e bálticos, uma zona de conflito nos anos 1990, também registraram alta dos suicídios. Fora dali, só o Japão se destaca negativamente. Ele é um caso à parte: um país altamente desenvolvido e de expectativa de vida alta, que apresenta números preocupantes nesses índices.
Um estudo publicado em 2013 pelo British Medical Journal estima que quase 4.900 suicídios a mais do que o esperado ocorreram em 2009, meses depois da crise econômica global de 2008, reunindo as estatísticas de 54 países, a maioria europeus. Homens jovens desempregados e homens com idade entre 45 e 64 anos foram os grupos mais suscetíveis.
A OMS não tinha particular preocupação com suicídio entre os gregos antes dos anos 2000 – a nação tinha uma das taxas mais baixas do mundo até a crise de 2008, que jogou parte do mundo em um beco sem saída. No bloco europeu, a Grécia teve de aplicar um duro plano de austeridade em troca de empréstimos, junto ao FMI, para tentar sanar a dívida pública.
Em 2011, a taxa de desemprego no país passava de 16% (entre os jovens, o índice superava 45%). Um estudo publicado em 2018, a partir de registros forenses da cidade de Creta, no período entre 1999 e 2013, revelou um quadro bastante semelhante ao observado na análise dos americanos Lester e Yang. Apesar de a crise atingir em cheio os jovens desempregados, o índice de suicídio sofreu ligeiro aumento entre essa parcela da população, nos piores anos da crise econômica (entre 2009 e 2013).
O que chamou a atenção foi a alta no número de suicídios entre homens entre 40 e 64 anos (ou mais), especialmente numa região da cidade com poucos ambulatórios e com déficit de leitos hospitalares para pacientes com problemas de saúde mental (estresse pós-traumático, síndrome do pânico, depressão e ansiedade).
Alexandrina Meleiro vê o exemplo grego como uma síntese razoável de o que acontece em momentos de crise econômica. Problemas financeiros impactam desse modo um grupo populacional específico: desempregados e homens acima dos 40 anos que, ao perder poder de compra e redução na renda perdem status e se veem obrigados a viver com menos.
“Foi esse o grupo mais atingido durante o confisco dos depósitos bancários e o congelamento da poupança do Plano Collor, em 1990. Veja, não foi uma crise econômica, foi uma medida que tinha a intenção de resolver a superinflação e que, no final das contas, desestabilizou ainda mais a economia. Muita gente perdeu o chão, foi à falência, perdeu bens, teve de repensar os gastos com escola, viagem, alimentação. Isso tudo faz adoecer, nos deprime. E muitos empresários e pais de família não suportaram.”
Há um componente de gênero importante. O grupo de homens adultos é mais vulnerável porque procura menos ajuda médica quando passa por momentos de crise, seja ela emocional, amorosa (conjugal) ou financeira.
“São pessoas que muitas vezes se envergonham de pedir ajuda, que não têm capacidade de enfrentamento. A mulher deprime, chora, se entristece, mas acessa uma rede de apoio – amigos, familiares, comunidades religiosas, médicos. Ela se permite mostrar-se frágil. Muitas vezes o homem tem recursos para procurar tratamento, mas o estigma faz com que ele não o procure.”
Japão tem índices de suicídio mais altos do que em outros países desenvolvidos
Os índices de suicídio no Japão estão muito acima dos registrados em outras nações desenvolvidas. Já eram altos, mas foram diretamente impactados pela desigualdade social decorrente das crises econômicas e por questões morais relacionadas à culpa pelo fracasso.
Sociólogos que estudam os altos índices de suicídio no Japão avaliam que o elo entre a tradição cultural do país, em que há forte senso de grupo e familismo autoritário, foi agravado pela crise econômica dos anos 1990. A relação entre desemprego e falência financeira cria um embaraço público de enfrentar os problemas por conta própria. Muitos não aguentam a pressão.
Em meio aos mitos sobre a resiliência japonesa e um pouco de folclore, os resultados empíricos mostram que variáveis socioeconômicas explicam a incidência de suicídio no Japão. A recente epidemia de suicídio está diretamente relacionada à recessão econômica da chamada “década perdida” dos anos 1990, após a explosão da bolha.
A crise financeira de 1997, que atingiu em cheio os países asiáticos, fez aumentar os registros de suicídio em quase todos os países da região, como Tailândia, Indonésia, Coreia do Sul e Malásia. Mas o Japão foi o país em que o aumento foi mais acentuado. Pior: o índice manteve-se alto mesmo após a retomada econômica.
Promulgada em 2006, a Lei de Prevenção ao Suicídio criada pelo governo lançou diretrizes e ações de saúde pública para tentar conter a depressão e o suicídio entre fatias populacionais mais vulneráveis. Os números têm apresentado queda ano a ano.
Teorias sobre o suicídio
O suicídio é um ação que revela conflito e ambivalência. É um fato social perturbador, cercado de tabus, motivado por causas sociais, interpessoais e pessoais, sobre as quais há poucas certezas.
A medicina e as ciências sociais têm estudado as causas do suicídio ao longo do tempo. Entre os grandes especialistas no tema destacam-se os trabalhos do francês Émile Durkheim e do suicidólogo americano Edwin Shneidman (1918-2009).
Na análise do psiquiatra português Carlos Braz Saraiva, professor da faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em Portugal, Durkheim possui uma visão “macro, por fora” sobre o assunto, em que o determinismo social desempenha um papel importante na condução de um indivíduo à medida extrema. Para Durkheim, “todo o comportamento humano, desde o sentir, o pensar, o agir”, seria determinado pela sociedade. Fatores macrossociais são essenciais à nossa espécie gregária e cooperativa. Desse modo, religião, família, profissão e acesso aos bens da sociedade capitalista, como parte da macroestrutura, ditariam comportamentos e sensações, em detrimento do psiquismo do indivíduo enquanto membro isolado da sociedade.
Shneidman, tido como o pai da suicidologia, pensa o suicídio a partir de uma visão “micro, por dentro”. Para ele, o suicídio é o resultado de um conflito interior, a confluência de um máximo de dor, um máximo de perturbação e um máximo de pressão – chamada de “modelo cúbico”, a formulação de Shneidman leva em conta as vivências e os atritos entre o mundo interior e o exterior.
“No Ocidente, o suicídio é um ato de autoaniquilação, melhor compreendido como uma doença multidimensional num indivíduo carente que acredita ser o suicídio a melhor solução para resolver um problema”, afirmou, na obra A psychological approach to suicide (Uma abordagem psicológica do suicídio, em tradução livre), de 1987.
A partir dos anos 1960, modelos sistêmicos e biológicos combinavam análises de diversos autores às descobertas sobre a química do cérebro e ao estudo das famílias em torno de um ente suicida. Dessa forma, entra em cena o papel dos meios sociais “disfuncionais”, além de o suicídio também passar a ser observado como o ápice de uma doença com causas neuroquímicas.
Desafios do século 21
No mundo todo, o suicídio tem aumentado entre os mais jovens, especialmente na população entre 15 e 29 anos, de todos os gêneros. Muito cobrados e despreparados para lidar com as pressões, os que nasceram após os anos 2000 aprenderam que, se a satisfação não for imediata, ela não existe. “Entre esse grupo ocorre uma crescente desvalorização da vida e a banalização da própria morte. Adolescentes são mais impulsivos, é algo já descrito na literatura. Mas tudo ficou mais intenso e imediato por causa das novas tecnologias.”
No Brasil, outro grupo extremamente vulnerável é o de jovens negros. Segundo dados do Ministério da Saúde brasileiro, houve um aumento de 12% na taxa de suicídio de negros de até 29 anos, entre 2012 a 2016. O índice é 45% superior ao registado entre indivíduos brancos de mesma faixa etária. O recorte racial tem sido bastante discutido entre os acadêmicos. Até pouco tempo atrás, não havia informação sobre raça nas fichas das inscrições de mortalidade. O racismo impõe aos negros mais vulnerabilidade nas ruas e ambientes sociais, além de interferir na autoestima.
A terceira idade sempre foi um fator de risco e apresenta, em registros históricos, uma tendência maior à depressão e ao suicídio. Para cada 4 adolescentes que decidem tirar a própria vida, 200 idosos fazem o mesmo.
Meleiro entende que não vivemos uma era mais ou menos desequilibrada. “Vivemos uma era de fácil acesso aos meios letais, isso sim. Ter acesso a um meio letal, armas de fogo ou drogas, é fator altíssimo de risco, tanto que médicos, policiais militares e exército são os profissionais mais expostos a esse risco. É preciso reduzir o acesso às armas e às drogas e oferecer tratamento psicológico e psiquiátrico aos que sofrem com ansiedade e depressão”, opina.
Outro dado menosprezado é o que está relacionado ao suicídio de contágio e aos sobreviventes do suicídio, aqueles que presenciaram a cena ou que perderam alguém. “Essas pessoas precisam de um atendimento especial. São membros do corpo de bombeiros, policiais, socorristas, familiares, psiquiatras. O enlutado precisa ter um espaço para desabafar, porque vive sobretudo um conflito, um misto de culpa e raiva bastante difícil de lidar.” O Grupo de Apoio aos Sobreviventes de Suicídio do Centro de Valorização da Vida oferece amplo atendimento e aconselhamento aos que sofrem com essa perda abrupta.
Se você está deprimido e tem pensamentos suicidas, ligue para o Centro de Valorização da Vida (CVV) por meio do número 188. As ligações são gratuitas para todo o Brasil.