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/ quinta-feira, novembro 21, 2024
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1,8 milhão de crianças trabalham no Brasil; o que elas acham disso?

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Irregular, atividade defendida por Bolsonaro aumenta evasão escolar e leva a salário menor no futuro

No Brasil, o trabalho para menores de 16 anos é proibido pela Constituição, pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos.

Mais de 1,8 milhão de meninos e meninas de 5 a 17 anos trabalham no país, segundo dados do IBGE, de 2016. A maioria deles, 54,4%, em situação irregular. Do total, 190 mil têm de 5 a 13 anos.

Apesar de ilegal, o trabalho infantil foi defendido pelo presidente Jair Bolsonaro em transmissão ao vivo pelas redes sociais no início do mês.

“Olha só, trabalhando com 9, 10 anos de idade na fazenda eu não fui prejudicado em nada. Quando um moleque de 9, 10 anos vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí ‘trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil’. Agora, quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada”, disse.

Na ocasião, ele disse que não ia propor alterações na lei.

“Fiquem tranquilos que eu não vou apresentar nenhum projeto aqui para descriminalizar o trabalho infantil porque eu seria massacrado.”

As declarações viraram polêmica instantânea nas redes sociais, com mensagens inflamadas contra e a favor.

Especialistas reagiram e disseram que o trabalho infantil tem consequências negativas para a educação, a saúde e o desenvolvimento da criança.

“É uma irresponsabilidade um chefe de Estado fazer esse tipo de defesa. Essa é uma política construída ao longo de séculos, não só no Brasil mas internacionalmente”, diz a procuradora do Trabalho Elisiane Santos, do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil.

Após a repercussão negativa, Bolsonaro disse, em evento, que não estava defendendo o trabalho infantil.

Nas redes sociais, o presidente publicou que estava sendo atacado pela esquerda, por querer que as crianças sejam educadas para “desenvolver a cultura do trabalho”.

Mas Bolsonaro também recebeu apoio. Muita gente disse que ele tinha razão, pois intercalar estudos com uma atividade remunerada mais leve é educativo —forma caráter e tino financeiro.

Um grupo a favor até atendeu um pedido do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que convocou seguidores a publicar histórias de trabalho “enquanto menor de idade”.

O juiz federal Marcelo Bretas contou ter trabalhado aos 12, no início dos anos 1980, em uma loja da família.

“Tinha jornada e tarefas a cumprir, e aprendi desde cedo o valor de receber um salário [mínimo] após um mês de trabalho”, disse.

A deputada federal pelo PSL-DF Bia Kicis publicou que fazia brigadeiros e vendia na escola, aos 12. “E o mais interessante era que eu não precisava, mas eu sentia uma enorme satisfação de pagar as minhas aulas de tênis com o esse dinheiro.” A publicação viralizou.

Procurados para comentar o assunto, Bretas, Eduardo Bolsonaro e o Palácio do Planalto não se manifestaram.

A Folha conversou com algumas crianças em situação de trabalho infantil.

Diego, 11, gasta o dinheiro que ganha no semáforo com linha e pipa, que ele gosta de empinar, e comida —”compro mistura”, diz o menino.

Atualmente está juntando dinheiro para fazer uma festinha para a irmã, de três anos, que o observa do meio-fio enquanto ele faz malabarismos com bolinhas diante de uma fila de carros na Barra Funda, na zona oeste de São Paulo.

A mãe, a poucos metros de distância, vende balas. Já Diego prefere “jogar bolinha”, porque “é mais divertido”. “Vender bala você só fica lá parado”, diz ele e faz cara de tédio. O menino concorda em conversar com a reportagem com uma condição: “Troca meu nome, coloca Diego. Não quero que o pessoal da escola faça bullying”, diz, decidido. Isso já aconteceu uma vez, conta, e ele ficou triste. “Disseram que a gente pedia esmola, que era para me deixar isolado.”

O menino trabalha todos os sábados e domingos —nos dias de semana estuda e frequenta um projeto social de uma igreja do bairro.

Agora, nas férias, tem ido diariamente com a mãe, uma diarista desempregada, ao semáforo. “Faço o dinheiro que eu tenho que fazer, uns R$ 50, e vou embora”, conta ele, que mora em uma favela próxima.

Diego acha que o tempo passado na rua não atrapalha seus estudos.

Crianças falam como é o dia a dia do trabalho infantil

Já Daniele, 17, que trabalha a poucos metros dele, também “jogando bolinha”, repetiu três anos na escola. Seu irmão Diogo, 14, que a ajuda nos malabarismos, está dois anos atrasado no colégio. “Eu ia vender bala e faltava aula”, conta ele.

Segundo especialistas, o trabalho infantil aumenta a evasão escolar e prejudica o rendimento do estudante.

“As crianças não se qualificam e depois ganham salários mais baixos no futuro. O país perde mais de R$ 124 bilhões com evasão escolar”, afirma o desembargador do Trabalho João César, presidente do Comitê de Erradicação do Trabalho Infantil do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas.

De acordo com os dados da Pnad, o trabalho afeta a educação principalmente nas faixas etárias mais altas: 74,9% dos adolescentes de 16 ou 17 anos ocupados frequentavam a escola, ante 86,1% entre os que não trabalhavam.

Outra consequência negativa é aumentar a exposição da criança a outras violações, como exploração sexual, tráfico de drogas e trabalho escravo.

Daniele diz que é comum homens a abordarem na rua. “Eles falam: ‘Você quer sair? Te dou um dinheiro’. Eu vou embora. Tem um que passa sempre com ‘o negócio de fora’”, conta ela, que estuda à noite e sonha em ser arquiteta.

Na rua, Diego sofreu outro tipo de violência. Um homem o ameaçou e foi atrás dele. Diego correu e pegou um pedaço de madeira que guarda escondido em uma árvore. “Ele viu e já foi embora”, diz. A mãe desconfia da história, um pouco assustada: “É para falar a verdade”. Diego confirma e se justifica. “Preciso me proteger.”

Rayan, 12, é mecânico em uma oficina do tio e enfrenta outros perigos. Ele não acha seu trabalho arriscado, apesar de usar máquinas e ferramentas. O menino passa seis horas por dia na oficina, na Brasilândia, na zona norte.

Segundo o Ministério da Saúde, entre 2009 e 2018, foram registrados 25.039 acidentes de trabalho graves com crianças e adolescentes de até 17 anos. De 2009 a 2017, foram 551 mortes.

Do ponto de vista da legislação brasileira, qualquer atividade antes dos 14 anos é proibida, até mesmo vender brigadeiro na escola. Uma exceção é o trabalho artístico, que só pode ser feito com autorização judicial, para cada caso.

Já de 14 a 16, o adolescente pode trabalhar como aprendiz. O modelo tem número de horas limitadas, carteira assinada, controle de frequência escolar, além de incluir formação técnico-profissional.

De 16 a 18, o trabalho é permitido, contanto que não seja noturno, perigoso ou insalubre.

Ainda que seja ilegal, o trabalho infantil não é crime. Uma empresa que use mão de obra de crianças pode sofrer sanções na esfera administrativa, trabalhista e civil.

“Esse é o primeiro equívoco [do presidente], trabalho infantil por si só não configura crime, a não ser que se trate de uma atividade ilícita associada, como exploração sexual, trabalho escravo ou tráfico de drogas”, diz a procuradora do Trabalho Elisiane Santos.

Para a secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Isa de Oliveira, casos como o da deputada Bia Kicis são exceções. “Não são expressivos para justificar um questionamento à regra. O trabalho infantil prejudica milhões de crianças no país.”

O gestor da Rede Peteca, Felipe Tau, da ONG Cidade Escola Aprendiz, diz que trabalho infantil, como conceito, é sempre uma violação. “Não existe bom ou ruim, é proibido e ponto. Esses casos mais brandos, como do brigadeiro, são minoria e não representam a realidade brasileira do trabalho infantil, que tem um recorte muito claro de classe e raça.”

Dados do IBGE mostram que 64,1% das crianças de 5 a 17 anos que trabalham são pretas ou pardas.

Segundo Maria Lucia Vieira, gerente da Pnad Contínua, a diferença de renda familiar fica mais evidente entre 5 e 13 anos. “Em 2015, se a família tinha uma criança nessa faixa etária que trabalha, o rendimento domiciliar per capita mensal era de R$ 482. Já numa família em que nenhuma criança ou adolescente trabalhava, a média subia para R$ 687.”

A chefe de proteção à criança do Unicef Brasil, Rosana Vega, afirma que o conceito de trabalho infantil está relacionado a impactos negativos para o desenvolvimento da criança, seja físico, social, intelectual ou psicológico.

“Ela está vendendo brigadeiro porque é uma brincadeira, quer ter dinheiro para as férias, e a mãe está ali do lado? Ou a trabalha várias horas porque a família é pobre?”

Ela diz que a criança precisa ter tempo para descansar, fazer deveres de casa e brincar, que é fundamental para o desenvolvimento.

Especialistas reforçam que experiências pessoais, ainda que positivas, não podem embasar políticas públicas.

O procurador do Ministério Público do Trabalho no Ceará, Antonio de Oliveira Lima, já plantava e colhia na roça aos sete anos. Hoje ele atua em projetos de prevenção do trabalho infantil.

“O fato de eu ter superado as dificuldades não significa que trabalhar na infância seja bom. A maioria fica pelo caminho, como meus irmãos, que abandonaram os estudos”, diz.

Para Lima, a família e a escola podem ensinar o valor do trabalho de outras formas. “Você pode educar pelo exemplo. O trabalho por si só não forma um bom caráter.”

Especialistas destacam que nem sempre a criança percebe que é vítima de violação. “Era elogiado por trabalhar, sentia que estava fazendo a coisa certa. Só fui entender que era um problema bem depois.”

Quando lhe foi perguntado se acha ruim trabalhar no semáforo, Diego diz que não se incomoda, mas sabe que quer sair dessa situação.

Seu plano é “terminar a faculdade de tecnologia”, caso ele não consiga se tornar jogador de futebol —do Palmeiras.

O menino quer estudar tecnologia porque conhece o dono de uma empresa na área.

“Pedi um emprego para o meu amigo, ele disse que vai me dar quando eu fizer 16.” O amigo é um homem que costuma passar pelo semáforo. “Ele abaixa o vidro, conversa. Não sei o nome dele, chamo de amigo.”

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