Como a ausência de vínculos afetivos prejudica o desenvolvimento dessas crianças, organizações do Terceiro Setor têm incentivado cada vez mais uma opção aos abrigos e casas lares: o acolhimento familiar
do Observatório do 3º Setor/ por Mariana Lima
De acordo com a Lei 12.010/09, que alterou o art. 19 do ECA, “a permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de dois anos”.
Na prática, no entanto, a realidade mais vista em abrigos e casas lares é a de crianças que crescem e deixam a instituição apenas ao completarem 18 anos. Hoje, 47 mil crianças e adolescentes no Brasil estão em situação de acolhimento institucional.
A família acolhedora é uma forma de inserir a criança em um lar provisório para que ela possa se desenvolver de forma adequada, com uma estrutura familiar.
O objetivo é que a criança deixe a família acolhedora para retornar à família de origem e/ou extensa (avós e tios, por exemplo), ou ser encaminhada para adoção. Em casos excepcionais, o acolhimento pode se prolongar até os 18 ou 21 anos, dependendo do programa de acolhimento.
Essa modalidade de acolhimento é garantida pela Constituição Federal, e foi elevada à categoria preferencial pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em oposição ao acolhimento institucional, que, segundo pesquisas, causa danos ao desenvolvimento neurológico e emocional da criança.
“A primeira infância é um período fundamental para o desenvolvimento das crianças. A maioria dos abrigos não oferece uma vivência comunitária adequada. Não ter o vínculo, o estímulo, o afeto ou a socialização afeta essas crianças, que crescem com sequelas pela falta destes pilares”, diz Sandra.
“A adoção só começa quando a criança chega em casa. Vejo nele como o afeto pode fazer a diferença”.
Os danos a que essas crianças estão expostas na primeira infância ficam evidentes no caso dos ‘órfãos da Romênia’. Uma pesquisa realizada pelo Hospital de Crianças de Boston, da Universidade de Harvard, acompanhou 136 crianças entre 6 meses e dois anos e meio que estavam em situação de acolhimento institucional. Metade delas foi transferida para instituições mais adequadas enquanto o restante cresceu em abrigos precários. Um grupo de 72 crianças que foram adotadas ou retornaram à família de origem também foi acompanhado pelo estudo.
O estudo foca na Romênia em consequência do regime comunista de Nicolae Ceausescu, que queria aumentar a população produtiva do país, proibindo todas as formas de aborto, e aplicando um sistema de multas para as mulheres que tivessem menos de 5 filhos.
Um dos problemas é que o país vivia em situação de extrema pobreza, dando margem para o surgimento dos abrigos. Quando, em 1989, Ceausescu foi julgado e morto, havia 170 mil crianças institucionalizadas na Romênia.
“Essa família tem que ser bem acompanhada e ter clareza de seu papel. Você não é o pai ou mãe, você vai cuidar desta criança”.
Sandra adotou um menino de 4 anos de idade e viu nele as consequências da institucionalização. “Ele não estava integrado à sociedade, não socializava como uma criança da idade dele. Foi um caos, porque eu não estava preparada e não tinha orientação”.
Essa situação a motivou a iniciar as atividades do Instituto Geração Amanhã. Hoje, seu filho, agora com 8 anos, brinca, fala e convive adequadamente. “A adoção só começa quando a criança chega em casa. Vejo nele como o afeto pode fazer a diferença”.
Apesar da lei, o trabalho da família acolhedora ainda não é estimulado ou conhecido no Brasil. A questão do afeto e do vínculo ainda é o ponto central: vou ter que me despedir desta criança? A resposta é sim.
O Instituto Fazendo História surgiu em 2005, após a fundadora, que atuava em centros de acolhimento, perceber que as crianças eram prejudicadas em serviços de acolhimento institucionalizado, devido à rotatividade das pessoas que trabalhavam com elas e à falta de um acompanhamento periódico.
O Fazendo História iniciou suas atividades com um projeto em que desenvolvia álbuns com a história de vida destas crianças. Com o tempo, começou a desenvolver outros programas e a fazer parcerias para promover a formação saudável destas crianças.
“A história destas crianças não começa quando elas são adotadas. Elas tiveram uma história antes do acolhimento. O objetivo é que elas não tenham essa lacuna na vida, que elas saibam a história delas”, conta Virginia Toledo, responsável pelo desenvolvimento institucional.
O Fazendo História trabalha com um programa de famílias acolhedoras em que seleciona, forma e supervisiona famílias voluntárias, com um perfil para acolher crianças de até 6 anos de idade temporariamente.
“Essas crianças não são nossas, nunca foram e nunca serão.
Você vai amar essa criança incondicionalmente,
mesmo sem saber se a verá de novo um dia.
Você não espera nada em troca.
É um amor sem expectativas”.
“Essa família tem que ser bem acompanhada e ter clareza de seu papel. Você não é o pai ou mãe, você vai cuidar desta criança. Essa família deve e pode se vincular à criança. Temos casos de famílias acolhedoras que atuam como apoio para a família de origem”, esclarece Heloisa de Souza, coordenadora do programa de apadrinhamento afetivo.
Virginia complementa: “O questionamento de todo mundo é se o desligamento é bom ou não para a criança. Um desligamento não é bom para ninguém, mas se essa criança estivesse em um abrigo, ela também passaria por esse desligamento”.
Antes do desligamento entre a criança e a família acolhedora, existe um processo preparatório acompanhado por uma equipe técnica, para evitar danos para qualquer um dos lados.
O programa iniciado em 2015 já atendeu 20 crianças, e conta com 16 famílias acolhedoras e 6 voluntários. O Instituto conta com 11 serviços parceiros, como a Vara Central de São Paulo e o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS).
Sobre quem acolheu
O casal de publicitários Anete Fonseca, 50, e Sérgio Ricardo Gentile, 51, descobriu o acolhimento familiar através da divulgação de uma palestra sobre o tema, realizada pelo Instituto Fazendo História.
“Quando chegamos ali, tivemos a sensação de que estávamos no lugar certo, que era aquilo que queríamos fazer”, conta Anete.
O processo para se tornar uma família acolhedora é longo em qualquer instituto ou abrigo que promova a ação. A equipe técnica formada por psicólogos e assistentes sociais acompanha essa família durante todo o processo, até a entrega da criança para a família de origem/extensa ou adotiva.
O processo criterioso e estruturado é admirado pelo casal, que participa de grupos de conversa com outras famílias justamente para falar sobre as alegrias e dificuldades de ser uma família acolhedora. Eles continuam a formação participando de workshops.
Durante a formação para se tornarem uma família acolhedora, Anete e Sérgio passaram por questionamentos.
“Pensávamos se daríamos conta de ter aquela criança conosco. Qual seria a demanda dela e o que ela iria precisar de nós ? A única certeza que tínhamos é que aquela criança em algum momento iria embora. Todo esse processo foi um descobrimento para nós”, revela Sérgio.
O primeiro acolhimento do casal foi de uma menina que chegou para eles com 1 ano e 6 meses e os deixou aos 2 anos e 8 meses. A adaptação entre eles foi tranquila.
“A nossa rotina mudou drasticamente, porque agora tínhamos atribuições que antes não existiam. Mas ter ela conosco foi uma delícia”, diz Anete.
Através do acompanhamento, o casal era motivado a explicar regularmente para a criança que aquele era um lar temporário, que ela ainda iria para a casa que seria dela para sempre.
“As pessoas ignoram isso, mas a criança sabe e entende o que está acontecendo com ela. Quando ela está convivendo com a família que quer adotá-la ou com a família de origem, ela dá sinais de que aquela é a família dela”, comenta Sérgio.
Durante o processo de desligamento, a família acolhedora passa a conviver mais com a família que vai adotar a criança. Essa família começa a fazer parte da rotina da criança quase que diariamente, e aos poucos a criança vai passando mais tempo com esta família. A mudança é gradual e feita com muito cuidado.
O casal está vivenciando seu segundo acolhimento, agora de um menino de 1 ano e 4 meses. Após a entrega da menina do primeiro acolhimento, o casal ficou um ano sem receber nenhuma criança.
“Voltamos para a fila e nos tornamos de novo uma família acolhedora. E, quando ele chegou, percebemos que estávamos sentindo falta de ter uma criança aqui em casa. De estar acolhendo alguém”, desabafam.
Apesar da certeza com a decisão, o casal teve que encarar o estranhamento de amigos e familiares em relação ao acolhimento. ‘Mas não é adoção? ’ ‘Eu não conseguiria fazer isso. ’ ‘Como pode abrir mão? Não tem apego?’, foram questionamentos com os quais tiveram que lidar.
“As pessoas não entendem bem como funciona, temos que detalhar bem todo o processo. É difícil entender um amor descompromissado como esse. Temos apego sim. A criança é nutrida de todas as formas. Mas não podemos ter o sentimento de posse”, contam.
Ambos apontam que ao se tornar uma família acolhedora não pode existir o desejo da adoção. O processo de acolhimento para a adoção e o da família acolhedora não é o mesmo. Toda a perspectiva muda.
“Essas crianças não são nossas, nunca foram e nunca serão”. Essa frase foi dita por amiga do casal que faz parte do mesmo programa, e que para Anete resume bem o entendimento que se tem que ter ao decidir se tornar uma família acolhedora.
“Você vai amar essa criança incondicionalmente, mesmo sem saber se a verá de novo um dia. Você não espera nada em troca. É um amor sem expectativas”, revela Anete.
Anete e Sérgio têm dois filhos, um de 30 e outro de 17 anos, além de um neto de 9 meses. Ambos veem o acolhimento familiar como um propósito de vida e desejam continuar acolhendo.
“Queremos continuar acolhendo porque é o nosso propósito. Saber que ajudamos essas crianças a crescerem em um ambiente saudável nos motiva a continuar”.
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