Ao assinar a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel não fez um ato de benevolência. Pelo contrário, essa atitude serviu para frear a demanda dos abolicionistas, que defendiam que os seres humanos escravizados recebessem o reconhecimento do Estado como cidadãos e, portanto, fossem indenizados pela exploração a que forma submetidos durante toda a vida.
Por Marcos Aurélio Ruy*
Mas os ex-escravos não apenas ficaram sem indenização como foram jogados na rua da amargura do desemprego e da marginalização. Por isso, “é essencial refletir sobre o 13 de maio, os pontos nevrálgicos do pós-Abolição e as consequências do racismo estrutural em nossa sociedade em pleno século 21”, diz Mônica Custódio, secretária de Igualdade Racial da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
O Brasil carrega a vergonha de ter sido o último país do Ocidente a acabar com a escravidão. Já se passaram 131 anos e “a nossa busca continua a mesma: lutamos pela nossa humanização, contra a marginalização, a exclusão estrutural. Ainda lutamos pelo reconhecimento do nosso papel na formação econômica, histórica e cultural de nosso país”, reforça Mônica.
O racismo estrutural imposto no Brasil depois da Abolição é sentida inclusive na frase do presidente Jair Bolsonaro, que, em uma entrevista à TV, afirmou que “o racismo é uma coisa rara” no País. Só não disse de qual nação estava falando – porque em terras tupiniquins, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sete em cada dez pessoas assassinadas são negras. “Um branco de olhos claros e ideologia nazista falar sobre racismo é o fim”, afirma Mônica.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população negra recebe pouco mais da metade dos salários dos brancos. Já o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que há bem menos negros em cargos de chefia. Pelo levantamento de 2017, 4,7% de homens negros ocupam cargos de direção e 6,3% de gerência.
As mulheres negras ganham ainda menos e praticamente não exercem cargos de chefias no mercado de trabalho. Apenas 0,4% das negras ocupam cargos de direção e 1,6% são gerentes. Além disso, as negras estão na base da pirâmide social, com “os menores salários, as funções de menor possibilidade de maiores rendimentos, além de sofrerem assédio moral e sexual constantemente”, acentua Lidiane Gomes, secretária de Igualdade Racial da CTB-SP.
Para o sociólogo Robson Camara, secretário de Formação da CTB-DF, é fundamental estudar a fundo o processo de abolição da escravidão: “Como nos ensina Clóvis Moura, o escravismo estava dentro da lógica do processo de acumulação de riqueza, primeiramente para a metrópole e depois para elite econômica do país, do século 16 até 1888”.
Para Mônica, “a base do pensamento social brasileiro aparece desfigurada. O monstro fascista emergiu da lagoa – e esse cenário traz à tona as várias formas de racismo, preconceito. A centralidade da radicalização, no contexto atual identificado pela política de ódio, é ingrediente essencial para a ação do Estado, dirigido por incentivadores de grupos neofacistas”.
Para o jornalista e ativista Maurício Pestana, a Lei Áurea foi assinada quando a escravidão já estava moribunda. “A pressão externa e as intensas lutas internas esgotaram o sistema escravista. A abolição regulamentou essa nova ordem, inclusive contra os direitos dos ex-escravos”. A República – que nasceu um ano após a abolição, em 1889 – não tinha nenhum projeto para essa população. “O único projeto que tinham era mandá-los de volta para a África”, diz Pestana. “O processo de substituição da mão de obra negra pela branca foi de uma certa forma criminosa.”
Câmara ressalta também a falta da reforma agrária para contemplar os ex-escravos. “Os escravizados, com a abolição, não tiveram direito à indenização, nem à terra e nem à educação ou qualquer outro benefício social da suposta liberdade. Digo ‘suposta’ porque entendo a liberdade como exercício da cidadania – e não a liberdade de morrer de fome, de não ter saúde e educação, de não ter onde morar. Foi isso o que aconteceu com os escravizados.”
Nestes tempos sombrios, com predomínio de um projeto ultraconservador, “a soma das ações do Estado, baseada nas ideias do fascismo, se concretizam no corpo negro. O genocídio do povo negro ocorria meio que disfarçadamente. Agora, acontece em plena luz do dia. Não existe Justiça – existe pena de morte”, diz Mônica.
Caso explícito é a atitude do governador belicista do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Ele deu ordens de helicóptero para que policiais atirassem na população de uma favela da capital fluminense. As favelas rem sua raiz no período posterior à abolição. A população negra foi praticamente expulsa das áreas centrais, passando a habitar de forma precária os subúrbios, em habitações extremamente precárias.
“Todas essas formas e métodos apresentadas pelo governo federal – de destituição dos direitos individuais e coletivos, dos direitos trabalhistas, dos direitos de organização dos trabalhadores, dos ataques à previdência, às universidades, à educação básica, aos profissionais de ensino, assim como a terceirização ilimitada, acabando com as mais importantes conquistas da classe trabalhadora do Brasil republicano e as perspectivas de privatização – atingem a população mais pobre do País, constituída majoritariamente de negras e negros”, acentua Mônica.
Para ela, toda essa política, a pregação do ódio e o incentivo à utilização de armas compõem o quadro geral “da hierarquização, negação e banalização do direito de ser humano”. Diz Mônica: “Estamos retrocedendo décadas em todos os setores da vida – e o Brasil volta a ser colônia, subserviente aos interesses da maior potência capitalista do planeta, os Estados Unidos”.
Os efeitos perversos do racismo são sentidos pela população negra. Estão “nas abordagens policiais violentas nas periferias, no genocídio da juventude preta, pobre da periferia, nos ataques aos povos indígenas, na invasão de suas terras e dos remanescentes quilombolas, na discriminação do mercado de trabalho e até nas falas de governantes ao tentar reafirmar a tal da ‘democracia racial’”, realça Mônica. “Tudo isso reforça a necessidade de organização, mobilização e resistência da maioria da população brasileira”.
Como afirma sociólogo Jessé Souza, a escravidão é o elemento definitivo que marca a sociedade brasileira até hoje. Por isso, “a luta para a construção de uma sociedade igualitária passa pela luta contra a discriminação racial”, conclui Lidiane.
* Marcos Aurélio Ruy é jornalista
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