Por Felipe Bianchi e Leonardo Wexell Severo, de Santiago, no site do Centro de Estudos Barão de Itararé:
Economista, engenheiro, professor universitário, escritor, fundador e vice-presidente do Centro de Estudos Nacionais de Desenvolvimento Alternativo (Cenda) do Chile, Manuel Riesco abriu sua residência em Santiago para nos receber. Consultor do programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2002, e pesquisador das Nações Unidas (ONU) para o Desenvolvimento Social (UNRISD), entre 2003 e 2007, Riesco mantém a energia de destacado líder estudantil dos tempos de Salvador Allende e de dirigente do Partido Comunista durante a ditadura de Pinochet. O “jovem há mais tempo” é atualmente uma das principais referências no que diz respeito à Seguridade Social, sendo autor, entre outros livros, do prestigiado “Nova Previdência – Para restituir o direito a pensões dignas no Chile”.
Nesta entrevista, Manuel Riesco destaca a “falência do modelo de capitalização, em que as aposentadorias pagas são cada vez mais miseráveis, enquanto multiplicam os lucros do sistema financeiro”. “Contra este roubo e esta canalhice das Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) e Companhias Seguradoras”, “com forte presença do capital norte-americano”, Riesco propõe que seu país ponha fim ao flagrante parasitismo. Destaca que o Chile deve servir de alerta como descaminho, “porque todos os países que adotaram um sistema parecido, o fizeram por pressão do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI)”. “Imaginem a irracionalidade fiscal, imaginem o tamanho a confusão em que o Brasil está se metendo”, adverte.
O senhor esteve reunido recentemente com uma Comissão da Câmara dos Deputados do Chile para expor a necessidade do fim do regime de capitalização, o mesmo que o ministro Paulo Guedes aponta como referência. Qual é a situação atual?
Defendemos que é preciso acabar com a chamada “capitalização individual”, que consiste no abuso de desviar, para todo o sempre, parte dos salários aos mercados financeiros. É uma lógica inaceitável. Não há razão para perpetuar esse regime em que um punhado de grandes grupos econômicos se deleita, enquanto mantém os aposentados com pensões miseráveis, violando o dever de cada geração de sustentar os mais velhos com dignidade. Estão agindo para que voltemos aos tempos em que os esquimós, ao envelhecerem, abandonavam a família, por se acharem um peso, e iam morrer a sós. Acabar com isso é uma condição essencial para que o nosso povo recupere a confiança nas instituições democráticas, em tempos perigosos. [Nos últimos anos houve uma multiplicação significativa de casos de suicídio de idosos no Chile, com casais deixando cartas em que denunciam o agravamento da situação econômica, à qual responsabilizam pela drástica decisão].
Para que os brasileiros tenham uma ideia do montante que estamos falando, quanto embolsam os donos deste esquema montado pelos “Chicago boys” e imposto, em 1981, pela ditadura de Pinochet?
Em moeda corrente de dezembro do ano passado, o sistema das Administradoras dos Fundos de Pensão (AFP) arrecadou uma média mensal de 598 bilhões de pesos (881,4 milhões de dólares), dos quais destinou apenas 32% ou 190 bilhões de pesos (280 milhões de dólares) para o pagamento das pensões autofinanciadas através de poupança.
Este sistema embolsou 27%, equivalente a 159 bilhões de pesos (234,3 milhões de dólares) por meio de comissões cobradas pelas AFP e prêmios líquidos das Companhias de Seguros. Além disso, transferiu 42%, ou seja, 259 bilhões de pesos (381,7 milhões de dólares) para um Fundo de Pensões; que está sendo guardado pelos especuladores para, hipoteticamente, pagar as aposentadorias futuras.
Isso quer dizer que o que vai para o aposentado acaba sendo menos de um terço do total cobrado dos trabalhadores, mês a mês.
O fato é que esse dinheiro, há quase quatro décadas, vem sendo expropriado, tomado pelo mercado financeiro. Na realidade, não vai para o mercado financeiro em geral, mas para um punhado de seis grandes grupos econômicos que ficam com 80% do dinheiro arrecadado com as contribuições.
Um grupo realmente seleto…
Entre eles está o proprietário de um dos dois jornais de circulação nacional no Chile, o La Tercera. O dono deste diário é proprietário de um dos seis grupos que mais levaram dinheiro ao longo de quase 40 anos de capitalização. Outro é de um grupo de delinquentes, que teve um dos seus chefes preso durante todo o ano passado e agora está cumprindo uma “sanção exemplar”, cursando aulas de ética numa universidade privada, financiada por eles mesmos. Este grupo foi para a cadeia porque financiava ilegalmente a todos os partidos de direita. Há o grupo Matte, tradicional no Chile e que tem investimentos no Brasil, dono de bosques e, principalmente, de fábricas de papel. Há dois grupos norte-americanos que compraram AFP nestes últimos tempos, Metlife e Principal, grandes companhias de seguro. São eles que ficam com o dinheiro dos trabalhadores.
Um abuso…
Imaginem vocês o que isso significa para a democracia: um dos grupos econômicos que mais levou dinheiro é precisamente o dono de uma das principais redes de jornais do Chile; outros financiam ilegalmente a todos os partidos de direita e outros, com expressiva participação estrangeira, gastam uma fortuna em propaganda para manter tudo como está. Não é à toa que os principais mecenas da publicidade são as AFP.
Uma rede de desinformação que age para manter a capitalização…
Evidentemente. Os principais anunciantes das emissoras de televisão no Chile são as AFP. Então a influência que exercem corrompendo o sistema político, corrompendo os meios de comunicação, é gigantesca. Para quê? Para ocultar o fato de que estão ficando com o dinheiro do imposto que deveria servir para pagar boas aposentadorias. Destinam uma miséria, apenas um terço do que arrecadam todos os meses para devolver a poupança que fizeram estes trabalhadores ao longo de 30 anos. Devolvem tão somente um terço do que arrecadam, o resto embolsam para não devolver jamais.
No Brasil estamos passando por uma situação em que, alinhada ao sistema financeiro, há uma campanha midiática em favor da chamada “reforma” da Previdência. Vocês já viram este filme…
Obviamente. Mentem descaradamente. Lembro de uma campanha pró-capitalização em que apareciam os trabalhadores chilenos no Brasil, em praias maravilhosas, rodeados de garotas belíssimas, comendo do bom e do melhor, bebendo, degustando dos anos dourados que deveriam vir. Agora, passados os anos, temos a realidade. Quanto somam as contribuições chilenas? 146 mil pesos por pessoa, algo como 215 dólares mensais. Esta é a média das contribuições pagas pelo sistema de aposentadorias.
O que isso significa em termos de poder de compra?
O salário mínimo no Chile, que se considera o que possa satisfazer as necessidades básicas como comprar pão, remédios, energia, é de 300 mil pesos (442 dólares) mensais e a aposentadoria média – porque existem as de sete mil (dez dólares ou 40 reais!) e as de um milhão de pesos (1.474 dólares) – é de 146 mil (215 dólares), menos da metade. Quanto é 146 mil pesos diante de 800 mil pesos (1.180 dólares), que é o salário médio nacional? 18,5%.
O que pode nos dizer como grito de alerta sobre as AFP?
Não há nenhum país democrático que tenha aceitado um abuso desta natureza e estou seguro que os brasileiros vão rechaçar enfaticamente. Os banqueiros, que são os que ganham com isso, tentaram aplicar esse modelo em todas as partes, inclusive nos Estados Unidos, porém os trabalhadores rechaçaram terminantemente esta ideia de “poupança forçada”, porque é um roubo. Consiste em que sugam do Estado o imposto com o qual os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias de seus passivos. Esse imposto é expropriado pelos banqueiros que ficam com o grosso desse imposto. Enquanto isso, os idosos são mantidos com aposentadorias de fome. Então é um roubo e uma canalhice muito grande porque o dinheiro do imposto está sendo repassado aos banqueiros.
Se o mercado financeiro é quem está fazendo a festa, os argumentos de que há necessidade de uma “reforma” da Previdência para que o Estado possa economizar são falsos.
Todos os argumentos que utilizam são absolutamente falsos. A poupança forçada nunca, em nenhuma parte, e tampouco no Chile, pode garantir pensões dignas. No Chile, 80% das aposentadorias são financiadas pelos impostos, o que faz o Estado endividar-se, enquanto o governo diz que está supostamente economizando.
Algo que joga contra o Estado e penaliza o conjunto da sociedade.
É uma irracionalidade fiscal muito grande, pois prejudica as pessoas, prejudica a economia, prejudica o Chile, e por isso os países que haviam estabelecido este sistema de capitalização estão todos acabando com esta lógica. Há inclusive um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que comprova o que estou dizendo. E é importante frisar que os mais determinados na Europa a dar um basta foram os ministros da Fazenda, porque não é possível que um Estado seja tão irracional a ponto de endividar-se para pagar pensões e economizar na mão de banqueiros, que somente vão multiplicar seus ganhos e seu poder político a partir dele.
O fato é que as aposentadorias são bancadas pelos impostos…
No Chile, como em todo planeta, as pensões são pagas principalmente com impostos correntes e não com poupança. A diferença é que o imposto cobrado do trabalhador e supostamente destinado a aposentadorias é desviado em grande parte e perpetuamente aos mercados financeiros. E o pior é que há um projeto do atual governo que vai agravar a irracionalidade de contrair empréstimos do Tesouro para pagar as aposentadorias, enquanto “economiza” a maior parte das contribuições previdenciárias em mercados financeiros incertos, supostamente para resolver futuras aposentadorias.
Esta é a verdadeira causa das baixas aposentadorias pagas atualmente – com a única exceção daquelas que são fraudulentamente recebidas por um punhado de ex-oficiais das Forças Armadas e da “ordem”, financiadas quase inteiramente pelo orçamento. A causa não é a demografia, como se argumenta, nem o aumento da expectativa de vida, como se apresenta nas propagandas das AFP. O aumento da expectativa de vida é a maior conquista da humanidade. Graças ao aumento contínuo da produtividade, os trabalhadores ativos nos países desenvolvidos podem manter dignamente proporções de idosos muito maiores do que as nossas, com jornadas de trabalho cada vez mais curtas.
Há uma estimativa de quanto gastaria o Estado num processo mais justo de distribuição dos benefícios previdenciários?
Economizaria dinheiro. Este argumento é extremamente importante para o Brasil. Porque no Chile o gasto com as aposentadorias é feito pelo Estado, mas o imposto que se cobra – e que seria suficiente para duplicar o montante dos valores pagos atualmente – fica há 38 anos com o sistema financeiro. É uma expropriação de um imposto, mas não de qualquer imposto. E o imposto da Seguridade Social, assim como sobre o Valor Agregado, é o que mais rende, um ingresso de caixa gigantesco. Mas o Estado, como continua pagando as aposentadorias, por mais baixas que sejam, gasta uma enorme quantidade de dinheiro nisso. Porém como lhe falta dinheiro, tem que se endividar e pega empréstimos internacionais a uma taxa elevadíssima, que é a cobrada pelos bancos, e paralelamente “economiza”, entre aspas, para pagar aposentadorias no futuro. Por que coloco este argumento para que vocês o destaquem? Porque todos os países que adotaram um sistema parecido com o chileno o fizeram por pressão do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Imaginem a irracionalidade fiscal, imaginem o tamanho, a confusão em que o Brasil está se metendo. Porque resulta que toda a arrecadação dos novos trabalhadores, novos contribuintes, já não irá para o Estado, mas para o mercado financeiro.
E no Chile, qual a saída?
Para melhorar as aposentadorias, o Estado deve acabar com o sistema das AFP e recuperar o imposto sobre o trabalho que são as contribuições, isso hoje permite dobrar todas as aposentadorias; reduzir a idade efetiva de aposentadoria, dos 70 anos na atualidade, para a idade legal de 60/65 anos para mulheres e homens, que pode ser mantido até o final do século, e reajustá-las ao ritmo dos salários, sem aumentar as contribuições até a próxima década. A regra de sustentabilidade do sistema de repartição é simples e elegante, o suficiente para que, a longo prazo, o produto interno bruto (PIB) cresça um pouco mais rapidamente que o número de adultos mais velhos, e o Chile a satisfaz com folga.
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