EDUARDO FAGNANI
A Previdência é item da “ambiciosa agenda de reformas para a modernização do Brasil” exigida pelo poder econômico. Para capturar também esses recursos da sociedade, os detentores da riqueza têm de rasgar o pacto social selado em 1988 e destruir o embrionário Estado Social.
Essa ofensiva começou há mais de 30 anos. O golpe parlamentar ao qual assistimos hoje é o fecho da mesma ofensiva. Hoje, o governo aposta no vale-tudo: interdita o debate, desqualifica os interlocutores, despreza o conhecimento técnico, faz propaganda enganosa, compra votos. E faz terror econômico.
A defesa da reforma mistura propaganda enganosa, terrorismo econômico e compra de votos. O vale-tudo inclui semear o pânico
Ao contrário do que rezam pós-verdades amplamente difundidas, a previdência do setor privado, que atende mais de 35 milhões de famílias que, em média, recebem aposentadoria inferior a dois salários mínimos, (i) exige, sim, idade mínima; e (ii) a questão das “aposentadorias precoces” está equacionada desde 2015 (Lei nº 13.183).
O problema também não está nos servidores públicos que começaram a trabalhar a partir de 2012. A Lei nº 12.618/2012 que criou a previdência complementar fixou o salário-teto de 5.189,82 reais. O problema está nos servidores que começaram a trabalhar antes de 2012 (há situações específicas e de difícil solução, pois há direitos adquiridos). Mas em nenhum caso haverá aposentadoria de “marajá” no setor público a partir de 2040. Os dados oficiais mostram que os gastos tendem a cair.
Fato: a reforma atinge, sim, os pobres. Por acaso, os 79% dos trabalhadores que recebem até dois salários mínimos não são pobres?
O aumento progressivo da idade mínima (65 e 62 anos para homens e mulheres) será turbinado pelo “gatilho”, sempre que se registrar aumento na expectativa de sobrevida aos 65 anos;
A aposentadoria integral (40 anos de contribuição) é objetivo inalcançável;
A aposentadoria parcial (15 anos) reduz em 60% o valor do benefício;
As novas regras atingem o trabalhador rural;
Proibir que a família acumule pensões e reduzir o valor das pensões (50% do salário mínimo) equivalem a atacar o orçamento familiar;
Só haverá aposentadoria por invalidez quando o segurado sofrer acidente incapacitante durante a atividade laboral. E o governo ensaia elevar a idade mínima (de 65 para 68 anos) exigida para o Benefício de Prestação Continuada com que contam as famílias com renda per capita de até um quarto do salário mínimo.
Sem argumentos convincentes, o vale-tudo inclui semear o pânico. Há um terrorismo demográfico, que insiste em que haverá menor proporção de trabalhadores contribuintes para um maior número de aposentados. Ao mesmo tempo oculta que o financiamento da Previdência não depende unicamente da contribuição do trabalhador ativo.
Há um terrorismo financeiro que insiste no mito do “déficit”. Há a típica “pedalada” contra a Constituição, como vários estudos acadêmicos, ratificados pela CPI da Previdência Social, demonstraram. O mesmo terrorismo aparece nas projeções catastrofistas do “déficit” para 2060. A única verdade, bem sabida por todos os especialistas não terroristas, é que o governo não tem nenhum modelo atuarial que fundamente suas “profecias” e os economistas não costumam acertar previsões trimestrais.
O terrorismo econômico, ainda mais vulgar, alardeia que o destino da nação dependeria crucialmente da reforma da Previdência. Na profusão de banalidades, destaca-se a tese (fake) segundo a qual, sem reforma, a dívida pública “explodiria” e o País “quebraria”.
A visão do governo de que “sem a reforma não há futuro” é contraditória com as ações do próprio governo que derrubam as suas e as receitas da Previdência. Nisso, é emblemática a Medida Pro-visória nº 795/2017, que concede benefícios fiscais a empresas petrolíferas. Por essa lei, o governo abre mão de receitas estimadas em 1 trilhão de reais nos próximos 25 anos. São 40 bilhões por ano, praticamente a “economia” que o governo diz que obterá com a reforma da Previdência.
A incongruência nem sequer é um fato isolado. Há ao menos três Medidas Provisórias que caminham na mesma direção: a 783/2017 (Programa Especial de Regularização Tributária), que refinancia parcela considerável do 1,8 trilhão de reais da Dívida Ativa da União por um período de 20 anos, com redução de 99% de juros e multas; a 793/2017 (Programa de Regularização Tributária Rural), que permite as produtores pagar só 4% do total de dívidas com a Previdência e reduz a contribuição ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural, de 2,1% para 1,3%; e a 778/2017, que permite a estados e municípios parcelarem as suas dívidas previdenciárias.
Para equilibrar as finanças da Previdência, é preciso haver crescimento econômico, pois suas receitas incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro das empresas. E é preciso ampliar a contribuição das classes de maior renda, restringindo-se privilégios dos quais só o poder econômico usufrui.
Os juros continuam elevados, quando o mundo pratica taxas reais negativas. Anualmente é transferido aos rentistas o equivalente a quase dez anos de toda a economia que o governo projeta obter com a sua “reforma” da Previdência.
Faz falta uma reforma tributária que enfrente o crônico caráter regressivo do sistema de impostos. Estima-se que só a taxação sobre dividendos represente ganhos superiores a 60 bilhões de reais por ano.
Todo ano o governo federal abre mão de cerca de 20% das suas receitas, em isenções fiscais que dá a segmentos econômicos específicos (em 2015, foram 282 bilhões de reais, 4,9% do PIB, doados como “isenções”).
Segundo estudos do Banco Mundial, a sonegação de impostos no Brasil chega a 13,4% do PIB, cerca de 500 bilhões de reais anuais (equivalente a dez anos da “economia” que a reforma fake atualmente em estudos pode talvez gerar).
A situação das finanças da Previdência agravou-se entre 2015 e 2017 por efeito da opção econômica que colocou o País em grave recessão. Agora se trata de retomar o crescimento e combater os favores que privilegiam os donos da riqueza financeira. Essa é a “meia-entrada” que o Brasil tem de combater.
Eduardo Fagnani é economista e professor no Instituto de Economia da Unicamp
*publicado originalmente na revista Carta Capital