Bandeira predileta da extrema-direita, facilitação do acesso a armas segue ajudando o crime organizado. Investigações apontam que CACs forneciam armas e munições para facções
A flexibilização do acesso a armas de fogo para população civil e, em especial, para caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) — promovida por Jair Bolsonaro e defendida por seus apoiadores — vem ajudando a alimentar diversas formas de crime organizado. Evidências neste sentido não faltam. Nesta semana, mais uma veio à tona em nova fase da Operação Baal.
Deflagrada pela Polícia Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo nesta terça-feira (10), a ação cumpriu buscas e executou prisões nas cidades de São Paulo e Buri, relacionadas a integrantes de organização voltada à prática conhecida por “novo cangaço”. A modalidade de crime envolve roubos a bancos, carros fortes, caixas eletrônicos nos quais facções fortemente armadas exercem domínio territorial de bairros e até cidades, colocando a população local sob fogo cruzado.
De acordo com as investigações que levaram à operação, iniciada em maio, os policiais descobriram a participação de CACs no fornecimento de armas, munições e explosivos utilizados pela organização criminosa. A operação também encontrou vídeos em que um dos CACs ministra aulas de tiro de fuzil para outro integrante do grupo.
As investigações revelaram, ainda, que as ações promovidas pela organização tiveram financiamento de integrantes que também atuam no tráfico de drogas e lavagem de capitais.
Desvios em série
Desde que tiveram início as medidas para facilitar o uso de armas de fogo pela sociedade — a partir de Michel Temer (MDB), mas com maior ênfase no mandato de Bolsonaro —, especialistas e organizações da sociedade civil alertaram para, entre outros riscos graves, o do aumento do desvio desses artefatos para o crime organizado, do tráfico às milícias.
A realidade confirmou que os alertas estavam certos. Levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz detectou que desde 2016, os CACs vêm sendo utilizados para facilitar o acesso a armas e munições por organizações criminosas, com um crescimento expressivo nos casos registrados e noticiados pela imprensa especialmente em 2022 e 2023.
De acordo com os dados colhidos, entre 2016 e 2018, foram registrados e veiculados apenas seis casos de envolvimento de CACs com o crime organizado. Mas, em 2022, esse número saltou para 11, e alcançou o recorde de 12 casos em 2023.
Ainda segundo o Sou da Paz, o levantamento identificou que “CACs estão sendo utilizados para apoiar uma ampla variedade de atividades criminosas, incluindo tráfico de drogas; quadrilhas de roubo de valores e ‘novo cangaço’; milícias urbanas e rurais; grupos de extermínio; e grilagem de terras”.
Conforme o instituto, “a retirada de barreiras entre os CACs iniciantes e avançados e o aumento das cotas de compra de armas e munições facilitaram o desvio de armamentos para o crime organizado. Armas de grande interesse para o crime, como fuzis e pistolas 9mm, tornaram-se mais acessíveis”.
Além disso, recorda que nota técnica de sua autoria, de outubro de 2022, já havia mostrado o crescimento expressivo de fuzis e pistolas 9 mm entre as apreensões de armas do crime. “Em São Paulo, as 9mm eram 2,7% das apreensões em 2017 e saltaram para 7,6% em 2022. No Rio de Janeiro, no mesmo período, o salto foi de 19% para 28%”, destaca.
Em maio deste ano veio à tona, ainda, a notícia de que quase seis mil armas de integrantes dos CACs foram alvo de roubo, furto ou extravio entre os anos de 2018 e 2023, um aumento de 68% em relação ao ano de 2018.
Outra evidência do uso das armas pelo crime consta em relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), segundo qual 5,2 mil condenados pela Justiça não tiveram problema em obter ou renovar o registro de CAC no Exército entre 2019 e 2022.
Bancada da Bala
Apesar dessa situação, a extrema-direita deu continuidade ao processo de “libera-geral” enquanto esteve no poder central e ainda hoje age, no Congresso, via “bancada da bala”, para manter e aumentar o armamento da população.
Diante das iniciativas viabilizadas pelo governo Lula, que desde o começo do mandato procurou restringir a flexibilização, parlamentares de direita e aliados de Bolsonaro — que têm maioria no Congresso — vêm impondo medidas em sentido contrário.
Um exemplo recente foi a aprovação, pela Câmara, de decreto legislativo suspendendo trechos do decreto presidencial 11.615, de julho de 2023, que restringia o uso de armas de fogo autorizadas pela legislação. A matéria foi aprovada após acordo com o governo que, diante do quadro adverso, procurou maneiras de reduzir os danos.
Ao chegar no Senado, a tramitação da matéria foi suspensa após o líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA), anunciar que o Planalto vai editar novo decreto menos restritivo.
Segundo ele, a simples revogação de trechos do decreto poderia causar lacunas sobre outros pontos na legislação. Por esse motivo, a edição de um novo decreto seria mais adequada. Dentre os pontos que causaram mais divergências estão a distância entre clubes de tiro e escolas e regras que restringiriam a atuação de atiradores e colecionadores.
Logo depois dessa sinalização, no início deste mês, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, declarou que “qualquer alteração que venha a ser feita no diálogo com Congresso Nacional vai buscar manter esses princípios de combater a liberação de armas que foi feita pelo governo anterior e de combater qualquer tipo de insegurança às nossas crianças que estão nas escolas e à cultura da paz que a gente precisa cultivar no nosso país”.
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