No 7 de setembro, Grito dos Excluídos vai movimentar o país com debate sobre as faces da fome
Com a pergunta “você tem fome e sede de quê?”, o 29º Grito dos Excluídos e Excluídas chama atenção para os problemas que tornam invisíveis diferentes populações. Manifestação já está confirmada em 98 locais no país
São Paulo – Nas ruas desde 1995, em contraponto às manifestações nacionalistas evocadas por militares para o 7 de setembro, o Grito dos Excluídos e Excluídas volta a marchar por todo o Brasil nesta quinta-feira (7), Dia da Independência. Num clima diferente dos dois últimos feriados, – marcados pelo forte contraste entre os atos em defesa da democracia dos movimentos sociais e populares, ante as manifestações antidemocráticas do ex-presidente Jair Bolsonaro, que ecoava discursos golpistas –, a 29ª edição do Grito reverbera um debate propositivo.
O objetivo do Grito dos Excluídos é chamar atenção para os problemas estruturais do Brasil que atentam contra a vida do povo mais vulnerável. Assim, eles impulsionam o lema deste ano, que provoca a todos a pensar: “Você tem fome e sede de quê?”. A proposta dialoga com o tema da Campanha de Fraternidade, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e com a atual conjuntura política, social e econômica do país após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que centraliza as expectativas dos movimentos por uma transformação nesta sociedade considerada tão injusta.
“O objetivo do Grito dos Excluídos é anunciar a esperança de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa e fraterna. E isso será concretizado na medida em que as organizações, com aqueles que têm seus direitos negados, possam ser sujeitos de direitos. (…) Somos convidados a ecoar o grito daqueles que nem tem oportunidade na sociedade e junto com eles nos comprometemos com a vida”, destacou Dom José Valdeci Santos Mendes, bispo na cidade de Brejo, no Maranhão, e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para Ação Sociotransformadora da CNBB.
Atingidos em São Sebastião: fome de justiça
Dom José explicou o tema em coletiva de imprensa realizada na manhã desta segunda (4). O evento foi acompanhado por uma série de depoimentos de populações de diferentes contextos, que lembraram que a fome e a sede, no Brasil, são tanto literais como simbólicas.
“Nesse momento, eu tenho fome de justiça e de moradia digna”, observou a raizeira e educadora da União dos Atingidos de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, Rosilene de Jesus Santos. Moradora há 32 anos da Vila Sahy, ela perdeu sua casa após o temporal, em fevereiro, que tirou a vida de 65 pessoas, a maioria delas moradoras da Vila Sahy, bairro mais atingido.
“Ainda hoje é difícil falar sobre isso porque perdi muitos amigos, pessoas próximas”, compartilhou a líder comunitária. A União dos Atingidos foi formada logo após a tragédia para cobrar providências do poder público. No entanto, sete meses após a destruição, o cenário ainda é de “descaso total” da esfera municipal, de acordo com Rosilene. “Há muitas mães e avós solos que não estão conseguindo trabalho e nem trabalhar, porque elas estão doentes. Não é fácil para os moradores deixarem suas casas. (…) Muitos falam ‘ah mas essas pessoas querem muito. E não é, queremos dignidade”, afirmou.
Sede por reconhecimento
“Deixamos nossas casas e fizeram prédios. A maioria de nós somos (sic) de famílias nordestinas, que vieram de roças, cantos com lugares para criar bichos, fazer hortas, tínhamos quintal. (…) E a comunidade onde estão sendo feitos os prédios não tem saneamento. Quando chove é agua recorrente. Esse lugar já tem cerca de 2 mil pessoas e as casas delas estão rachando por causa do ‘bate estaca’. E a gente fica sem saber para onde vai, que direção tomar, sequer fomos ouvidos para saber como queremos a nossa casa. Porque vamos pagar por ela, não tem nada de graça, mesmo que doadas”, acrescentou Rosilene.
Do Mato Grosso, a coordenadora da Federação dos Povos e Organizações Indígenas (Fepoimt), Eliana Xunakalo, do povo Bakairi, também lembrou do grito por justiça territorial e reconhecimento das populações tradicionais. “Eu preciso que me respeitem e que a justiça aja. Se a justiça da terra não agir, meus ancestrais falarão por mim. Meu grito é por justiça e respeito”.
Integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) em Rondônia e da Via Campesina, Leila Denise destacou que os gritos de resistência já ocorrem há mais de 500 anos. “Nós só nos organizamos para dar visibilidade a eles”, ponderou. Leila garantiu, contudo, que além de denunciar, os movimentos populares também têm propostas. No caso do MPA, fruto da organização da luta camponesa, o projeto de um Brasil popular tem como principal bandeira a construção da soberania alimentar.
Vida em primeiro lugar
“Que nada mais é do termos acesso ao alimento nutritivo e saudável. O alimento tem que ser culturalmente adaptado, isso tem que ser respeitado e tem que estar disponível. As pessoas precisam ter acesso a esse alimento de qualidade. E ele tem que ser produzido de forma sustentável, não pode degradar a terra, o ar, a água. Precisamos também de sistemas produtivos, tecnologias e ciências que deem autonomia para quem produz”, detalha a coordenadora.
“Temos os dados de que as propriedades com mais de 500, mil, quatro mil hectares, estão nas mãos de homens brancos. É a concentração de riqueza nas mãos de homens brancos. Historicamente eles vão expropriando as pessoas que estavam em seus territórios, como no caso dos indígenas, desde a formação social do Brasil, principalmente as camponesas, mas também os trabalhadores como um todo, com o modelo de escravidão. (…) E as consequências desse modelo, dessas formas de exploração do ser humano e da terra… Não tem como não ter outras consequências, senão a fome e a miséria”, prosseguiu Leila.
Ecos do grito
Coordenador nacional e estadual do Movimento Nacional População de Rua (MNPR) no Rio Grande do Norte, José Vanilson Torres da Silva também lembrou da “sede por políticas públicas” de quem não tem um teto. “A nossa fome e por direitos que estão na Constituição, mas que ainda não saíram do papel”, rebateu.
No últimos três anos, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), houve um aumento de 38% no número de pessoas em situação de rua. São pelo menos 281.472 nessa situação. Apesar de alarmante, o número pode ser ainda maior, garante Silva, que vê subnotificação no dado, uma vez que o estudo considera apenas as informações do Cadastro Único (CadÚnico).
“Há um aumento exponencial, gigantesco, de pessoas, famílias vindo para a situação de rua. Primeiro pela busca de alimentação e, depois, pela falta do emprego. É um número muito maior e não temos esse número real porque o IBGE, mesmo sendo réu em 2019, disse que não tinha metodologia para contar essa população e a população de rua não foi contada. Quando não se é conhecido, não se faz políticas públicas. Isso é estratégia para que não tenhamos políticas públicas garantidoras de direito para a população de rua. Então a nossa sede e fome é por políticas públicas, por água, saúde, moradia, trabalho e renda”, garantiu o ativista.
O 29º Grito dos Excluídos e Excluídas está confirmado em 98 locais, em todo o país, de acordo com mapeamento parcial.
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