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/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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Privatização da Eletrobrás afrontou a Constituição Federal, denuncia jurista

Foto: Eletrobrás/Divulgação
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O jurista Rogério Oliveira Anderson, especialista em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP), afirma, em artigo publicado na Revisa Consultor Jurídico, na quarta-feira (8), que o processo de privatização da Eletrobrás, que entregou o controle da empresa para grupos de acionistas minoritários desrespeitou a Constituição Federal.

No artigo, o jurista demonstra a inconstitucionalidade do processo e afirma que “verificando-se a inadequação constitucional do modelo adotado para regular setor tão sensível da economia, inclusive em razão de não se identificar, no modelo, o acionista de referência da empresa, não se sustenta a operação, merecendo corte de constitucionalidade pelo STF (Supremo Tribunal Federal)“.

“[…] é inconstitucional o artigo 3º, inciso III, alínea “a”, da Lei Federal 14.182/2021, que permitiu a flexibilização do princípio de “uma ação, um voto”, em prejuízo do Poder Público Federal, e dos demais acionistas, no exercício do direito de voto nas deliberações da Eletrobrás”, afirma o especialista.

“É disposição que atenta contra toda a tradição jurídica que regula a intervenção do estado no domínio econômico que, em geral, prevê prerrogativas em favor do Poder Público, e não o contrário, dados os interesses estratégicos do Estado Brasileiro no setor de energia elétrica”.

E continua: “Ofende o disposto nos artigos 21, inciso II, alínea “b”, e 175, da Carta, que estabelece que a prestação dos serviços públicos e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água compete ao Estado que somente podem ser delegados ao particular sob regime de autorização, concessão ou permissão, sempre através de licitação, ou seja, através de contrato administrativo e não apenas mera transferência de controle com limitação do direito de voto”.

Confira o artigo na íntegra!

LIMITAÇÃO DO VOTO ESTATAL NO PROCESSO DE PRIVATIZAÇÃO DA ELETROBRAS

ROGÉRIO OLIVEIRA ANDERSON*

O princípio “uma ação, um voto” (one share-one vote) é aquele segundo o qual cada acionista de uma empresa deve ter o direito a um voto por ação que possuir. Em outras palavras, estabelece que o poder de voto, um dos aspectos do exercício dos direitos políticos do sócio em uma empresa, deve ser proporcional à quantidade de ações detidas pelo acionista.

Está positivado no artigo 110, caput, da Lei 6.404/76 que dispõe que a cada ação ordinária corresponde 1 (um) voto nas deliberações da assembléia-geral, permitindo-se, entretanto, que o estatuto pode estabelecer limitação ao número de votos de cada acionista, o quê, em específico, será objeto de consideração nas linhas que se seguem.

Em algumas situações permitidas pelo direito brasileiro, e por outras ordens, é possível haver estruturas de capital com diferentes classes de ações, conferindo privilégios de voto diferenciados a determinados acionistas, como acionistas majoritários ou fundadores. Essas estruturas podem resultar em uma distribuição desigual do direito de voto e não seguem o princípio de forma estrita.

Seja como for, mesmo admitindo exceções, o direito brasileiro não permite distinções e limitações ao direito de voto dentro das mesmas classes de ações, ou seja, os acionistas devem receber tratamento isonômico dentro de suas classes, de modo que o princípio da proporcionalidade fique adstrito à categoria de ações, não sendo aplicado indistintamente a todas as ações de emissão de uma companhia.[1] É o que diz o artigo 109, da Lei 6.404/76, que estabelece que as ações de cada classe conferirão iguais direitos aos seus titulares.

De acordo com o direito alemão, como no Brasil, cada ação ordinária confere um voto nas deliberações das assembleias gerais de acionistas. No entanto, é importante ressaltar que o direito alemão também permite a emissão de ações preferenciais, que podem ter direitos de voto diferenciados. As ações preferenciais, como dito, e tanto quanto no Brasil, e respeitada a respectiva classe, podem ser emitidas com direitos de voto restritos, direitos de voto condicionados ou até mesmo sem direito a voto.

Além disso, a legislação alemã permite a adoção de estruturas de governança corporativa mais complexas, como Conselhos de Supervisão (Aufsichtsrat) e diretorias executivas (Vorstand), que podem ter influência adicional nas decisões corporativas, independentemente do princípio de uma ação, um voto.

A Volkswagen-Gesetz (Lei da Volkswagen), por exemplo, que foi promulgada em 1960, no processo de privatização da empresa, prevê algumas exceções ao princípio da proporcionalidade ao estabelecer que nenhum acionista individual poderia exercer mais de 20% dos votos nas assembleias gerais, independentemente de sua participação acionária ser maior.

Desde que foi publicada a lei tem sido objeto de controvérsias e questionamentos legais, sobretudo, no que interessa ao presente artigo, quanto à limitação ao poder de voto dos acionistas, ou, voting caps.

Voting caps, ou limites do direito de voto, é uma prática de governança corporativa, prevista em lei ou estatuto, onde existe um limite para o exercício do direito de voto, independentemente da quantidade de ações que o acionista possua, ou seja, é exceção ao princípio uma ação, um voto.

Em 2007, a Comissão Europeia contestou de forma exitosa, com suporte na Diretiva 2004/25/EC, a Volkswagen-Gesetz perante o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ-UE), argumentando que este ponto da lei violava a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento dentro da União Europeia justamente em razão da limitação do poder de voto dos acionistas.

No caso concreto, a decisão beneficiou uma das acionistas da Volkswagen AG, a Porsche, que apesar de deter 53,3% do capital social, nos termos da Volkswagen-Gesetz, somente poderia votar com 20% nas decisões do Conselho Supervisor, previsão muito semelhante à adotada na privatização da Eletrobrás, conforme adiante.

O princípio geralmente se aplica às sociedades anônimas, independentemente de serem de capital público ou privado. No entanto, nas sociedades de economia mista, ou até mesmo nas sociedades participadas pelo estado, onde o capital é compartilhado entre o setor público e o setor privado, pode haver algumas exceções sempre em benefício do acionista estatal.

No Brasil, e em inúmeras ordens jurídicas, são aceitas estruturas de governança que permitem ao estado, em suas estatais, ter um poder de voto maior do que o que seria conferido pelo princípio uma ação, um voto. Por exemplo, na França cita-se o voto plural na Société Française de Navegation Rhénane e na Companhie des chemins de fer du Maroc, e o sistema de voto duplo estável.

No direito brasileiro, as estatais são aquelas previstas nos artigos 173, 175 e 177, da Constituição Federal e que instrumentalizam um dos modos pelos quais o estado intervém do domínio econômico e, justamente por isso, e especialmente nas sociedades de economia mista que exercem atividade econômica em sentido estrito, é que se fazem presentes os riscos de conflito societário, sobretudo no exercício do poder de controle da sociedade.

Outra forma de instrumentalização da intervenção empresarial do estado na ordem econômica é através das denominadas empresas participadas previstas no artigo 37, inciso XX, da Constituição, onde o estado é minoritário. É a denominada intervenção acionária[2] que é diferente do que acontece nas sociedades de economia mista nas quais o acionista estatal obrigatoriamente é o controlador (artigo 4º, da Lei 13.303/2016) e pode (deve) direcionar as atividades da estatal para atender o interesse público que justificou sua criação (artigo 238 da Lei 6.404/76).

Historicamente, no direito brasileiro, e no mundo, as sociedades de economia mista sempre foram criadas e permanecem sob estrito controle dos acionistas estatais, havendo, até mesmo, exceções à legislação societária para o fim de ampliar as prerrogativas do acionista público em prol do interesse social que se revela a partir do exercício das atividades que constituem seu objeto social.

Por outro lado, segundo Rafael Wallbach Schwind, as empresas privadas com participação estatal previstas no artigo 37, inciso XX, da Carta, derivam da constatação de que a intervenção do Estado no âmbito econômico para o atingimento dos objetivos previstos no caput do artigo 173 da Constituição não se restringe à atuação por meio de empresas estatais.

Mesmo na condição de minoritário, o estado sempre estará buscando cumprir o interesse público que justificou a autorização legislativa para a participação minoritária, não se despindo, outrossim, dos deveres inerentes à condição de acionista, como, a lealdade ou, ainda, não abusar do direito de voto (artigo 115, §3º, da Lei 6.404/76).

Do mesmo modo, o artigo 1º, parágrafo sétimo, da Lei 13.303/2016, é expresso ao determinar que na participação em sociedade empresarial em que a empresa pública, a sociedade de economia mista e suas subsidiárias não detenham o controle acionário, essas deverão adotar, no dever de fiscalizar, práticas de governança e controle proporcionais à relevância, à materialidade e aos riscos do negócio do qual são partícipes.

Isto posto, verifica-se que o processo “desestatização” da Eletrobras, levado a efeito pelo disposto no artigo 3º, inciso III, alínea “a” da Lei 14.182/2021, merece algumas observações quanto ao estabelecimento de limitação do exercício do direito de voto do acionista principal, a União.

A modalidade escolhida, nos termos do artigo 1º, §1º, da referida lei foi o aumento do capital social, por meio da subscrição pública de ações ordinárias com renúncia do direito de subscrição pela União. Ou seja, houve uma diluição do capital da União para 40,30% das ações ordinárias.

O resultado do processo, abstraídos os aspectos operacionais e econômicos, foi a perda do controle e a retirada da Eletrobras da administração pública federal, passando a então sociedade de economia mista, prestadora de serviços públicos essenciais (artigo 175, da Carta), a compor o conceito de empresa participada pelo poder público (artigo 37, inciso XX, da Constituição), isto é, o estado passou a ser minoritário e, ainda, com limitação do direito de voto.

Não se cogitou, em lugar algum, da indenização devida à União (artigo 5º, inciso XXIV c/c artigo 170, inciso II, da Constituição), enquanto acionista, pela perda, mesmo que por ato legislativo, da perda do controle da empresa, constatação grave, mas que foge do escopo deste artigo.

Mais relevante do que as alterações anteriores, foi a cláusula voting caps inserida de modo a limitar o direito de voto da União a 10%, mesmo possuindo participação maior no capital social da empresa (40,3%). Tal cláusula afasta o Poder Público, na prática, da prestação de serviços públicos essenciais, na forma dos artigos 21, inciso XII, alínea “b” e 175 da Carta, colocando sob a égide do setor privado o controle sobre atividade estratégica para o país.

Outrossim, cria limitação societária ao Poder Público inexistente na Constituição em relação à sua participação no capital de empresas privadas (artigo 37, inciso XX), já que o próprio artigo 173, parágrafo primeiro, inciso II, da Carta, muito embora se refira às sociedades de economia mista, e empresas públicas, exercentes de atividades econômicas, é norte preciso para regular as relações do poder público enquanto acionista, ou seja, incidem os permissivos dos imperativos da segurança nacional e de relevante interesse coletivo.

Além disso, estabelece odiosa restringenda aos direitos de propriedade, de igualdade e à livre iniciativa já que quanto maior for a participação do acionista atingido pela limitação, maiores os prejuízos, conferindo tratamento igual (limitação a 10%) a acionistas com participações distintas no capital social.

Acresce-se a isso, o fato de que a lei alcançou acionistas, dentre os quais a União, que já possuíam participação no capital social da Eletrobras, ou seja, atingiu o ato jurídico perfeito, já que regulou o passado, e sem qualquer menção ao direito de recesso dos acionistas (artigo 137 da Lei 6.404/76; artigo 1.077, do Código Civil), em ofensa ao princípio da segurança jurídica e à propriedade.

Portanto, é inconstitucional o artigo 3º, inciso III, alínea “a”, da Lei Federal 14.182/2021, que permitiu a flexibilização do princípio uma ação, um voto, em prejuízo do Poder Público Federal, e dos demais acionistas, no exercício do direito de voto nas deliberações da Eletrobras.

É disposição que atenta contra toda a tradição jurídica que regula a intervenção do estado no domínio econômico que, em geral, prevê prerrogativas em favor do Poder Público, e não o contrário, dados os interesses estratégicos do Estado Brasileiro no setor de energia elétrica.

Ofende o disposto nos artigos 21, inciso II, alínea “b”, e 175, da Carta, que estabelece que a prestação dos serviços públicos e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água compete ao Estado que somente podem ser delegados ao particular sob regime de autorização, concessão ou permissão, sempre através de licitação, ou seja, através de contrato administrativo e não apenas mera transferência de controle com limitação do direito de voto.

Deste modo, e verificando-se a inadequação constitucional do modelo adotado para regular setor tão sensível da economia, inclusive em razão de não se identificar, no modelo, o acionista de referência da empresa, não se sustenta a operação, merecendo corte de constitucionalidade pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

[1] PELA, Juliana Krueger. As Golden Shares no Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 127.

[2] SCHWIND, Rafael Wallbach. O estado acionista: empresas estatais e empresas privadas com participação estatal. São Paulo: Almedina, 2017, p. 150.

ROGÉRIO OLIVEIRA ANDERSON é doutorando em Direito Comercial pela USP (Universidade de São Paulo)

www.horadopovo.com.br

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