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/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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Negros ainda precisarão de cotas raciais por muito tempo, diz pesquisadora

Monique França, médica que foi cotista na Uerj no curso de medicina. Ricardo Borges folhapress
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Anna Venturini afirma que chegar ao ensino superior depende de circunstâncias que vão além do acesso à educação

A pesquisadora Anna Venturini. Eduardo Anizelli/Folhapress

SÃO PAULO – O dia em que as cotas raciais não serão mais necessárias para garantir o acesso da população negra ao ensino superior ainda está distante. Isso porque, apesar do reconhecido êxito da política, que mudou o perfil dos estudantes das universidades públicas brasileiras, a renúncia do sistema exigiria uma mudança estrutural no país.

A opinião é de Anna Venturini, doutora em ciências políticas e coordenadora do Obaap (Observatório de Ações Afirmativas na Pós-graduação. “Não depende só do ensino superior, não é só darmos acesso ao ensino superior. Isso já ajuda muito, mas temos que pensar em uma série de outros fatores”, afirma em entrevista à Folha.

A pesquisadora afirma que o acesso à educação, saúde, habitação, comida e transporte desde a infância são fatores que influenciam no desempenho escolar e, consequentemente, no acesso à universidade.

Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados em 2020 mostraram que pretos e pardos eram 71,7% dos jovens brasileiros entre 14 e 29 anos que não completaram a educação básica. A maioria parou de ir à escola porque precisava trabalhar. A mesma pesquisa mostrou que a taxa de analfabetismo é quase três vezes maior entre negros quando comparados com brancos.

“As nossas desigualdades afetam todos os setores, e o acesso ao ensino superior depende de todo um histórico por trás. É um ciclo que depende de uma série de fatores. Eu acredito que ainda vai demorar um tempo”, diz.

Sabemos que as cotas foram criadas para tentar equiparar desigualdades de oportunidades que foram historicamente produzidas. Por que, então, as cotas sociais não são suficientes? Historicamente foi uma luta do movimento negro para que as cotas fossem raciais, para que beneficiassem estudantes pretos, pardos e também indígenas.

No Brasil existe um argumento que as desigualdades no país são de classe, são sociais e não raciais. Mas na década de 70, 80, foram feitos vários estudos mostrando que a desigualdade no país tinha um fator racial importante, que mesmo você olhando pessoas da mesma classe, a raça ainda fazia com que elas tivessem menos chances de mobilidade social ascendente.

Então pretos e pardos tinham níveis de mobilidade parecidos e tinham menos chances de que pessoas brancas. Porém, o que foi aprovado foram as cotas sociais e raciais. Mas o argumento de que deveríamos ter uma cota só social foi rebatido porque foram feitos estudos e experimentos mostrando que somente com a cota social os estudantes pretos e pardos não iriam entrar [nas universidades].

Parte do movimento negro defende que o passo seguinte deve ser aplicar as cotas raciais a despeito da realidade financeira da pessoa. Você concorda com isso? Acho que o modelo que temos, por ser uma subcota, faz com que a representatividade dos negros nas universidades seja abaixo da representatividade no estado, como por exemplo no caso da Bahia. Eles são a maior parte do estado, mas não correspondem à mesma porcentagem na universidade.

Mas acho que o principal argumento, a principal ideia é a questão da desigualdade racial. Mesmo esses estudantes que estão em escolas privadas e tem uma renda acima da média enfrentam uma série de barreiras na sociedade por conta do racismo e da discriminação.

Não seria uma contradição que um aluno negro que estude numa das melhores escolas de São Paulo acessar uma universidade pública por meio das cotas? Depende. Tem alunos que estudaram em escolas de ponta e estão lá com bolsas, por meio de projetos sociais, que têm um perfil muito semelhante aos estudantes de escolas públicas. Isso não significa que eles não enfrentam algumas barreiras para ter acesso ao ensino superior também.

Um aluno que estuda numa escola privada vai ter uma educação de mais qualidade, mas morando na periferia e estudando no centro, ele vai demorar duas horas ou mais no metrô, ônibus ou trem para chegar na escola. E tem o estudante que estuda nessa escola privada mas mora do lado da escola. Ele tem acesso a saúde, alimentação adequada. Tudo isso afeta o desenvolvimento educacional.

Pensando em uma escola privada eu não veria problema porque eu acredito que essa situação representa um percentual muito baixo, eu não sei se afetaria essa distribuição. Se existisse [cotas para esses alunos], teria que ser uma distribuição separada para que esses estudantes de escolas privadas não prejudiquem o acesso dos estudantes de escola pública.

A Lei de Cotas faz dez anos nesta segunda. Segundo o texto, deveria ser revisada neste prazo. Mas ouvimos dizer que o ideal é não revisá-la para não haver risco de restringi-la. A sra. concorda com isso? Eu concordo. Eu sou uma das pessoas que acha que a revisão poderia ser prejudicial. A lei não tem prazo de validade, passando segunda continuará válida e vigente e existindo, não muda nada.

Isso por vários fatores. A gente tem um Congresso que não me parece ser favorável às cotas com recorte étnico-racial, pelo contrário, tem vários parlamentares que já se posicionaram contra e apresentaram projetos de lei para mudar a lei de cotas e tornar a cota só social.

O governo federal também não é favorável a esse tipo de política. Ele já se manifestou contra políticas com recorte étnico-racial argumentando que não existe preconceito étnico-racial no país, que as desigualdades são raciais. Há risco, por exemplo, de alterar a lei para que seja apenas uma cota social, e não racial e com pessoas com deficiência como a gente tem hoje.

Não sei dizer se no ano que vem esse Congresso vai ter uma composição que vai ser mais favorável a isso, mas não podemos fazer esse tipo de discussão sem antes ter um alinhamento entre os parlamentares, sem que as pessoas possam conversar com eles para que eles possam ouvir as diferentes posições.

Nós não temos ainda dados suficientes de todas as universidades para conseguir fazer uma revisão e eventualmente mudar algum critério, como incluir, por exemplo, as bancas de heteroidentificação na lei.

Isso é muito importante para que a lei não seja mudada do dia para noite sem ter um processo de discussão, aprofundamento e de debate com os parlamentares, o movimento negro e a comunidade acadêmica.

Há espaço no debate eleitoral deste ano para discutir a expansão da política de cotas, tanto na questão orçamentária, como na pós-graduação e na docência, por exemplo? É provável que isso entre no debate por essa coincidência da revisão das cotas na graduação acontecer em ano eleitoral. Não acho que vá entrar no mesmo volume que a graduação tem, com a mesma intensidade de debate, até porque até muito pouco tempo atrás as pessoas nem sabiam que existiam cotas na pós-graduação, muito menos na docência.

Eu sei que tem candidatos a deputado estadual e federal que têm levantado essa bandeira das cotas na pós-graduação.

Os debates que vi na docência se concentram mais no ambiente acadêmico, e não tanto em parlamentares, mas seria importante que esse debate aparecesse.

Já a questão orçamentária não tenho dúvida que vai aparecer, assim como as cotas na graduação.

Votar em candidatos negros e indígenas ajuda a levar esse debate à frente? Com certeza.

Se as pessoas acham que esse é um ponto importante para elas e querem ver parlamentares discutindo esse tema de forma séria, é importante olhar para esses candidatos que estão levando essa pauta adiante e querem pensar em políticas para favorecer a população negra em diversas áreas, como educação, saúde, moradia, saneamento básico.

Haverá um momento em que a população negra, indígena e de baixa renda não precisará de políticas de ação afirmativa para acessar o ensino superior? Eu queria muito conseguir ver isso, mas vai demorar. Não depende só do ensino superior, não é só darmos acesso ao ensino superior. Isso já ajuda muito, mas temos que pensar em uma série de outros fatores.

Não podemos deixar a educação básica de lado, o acesso ao ensino superior depende da qualidade da educação básica, para que todos os grupos, todas as pessoas, independentemente da região onde elas moram, sejam ricas ou pobres, tenham acesso a educação de qualidade. Também precisamos pensar em segurança alimentar, temos crianças que vão para escola e fazem sua única refeição lá, então esse também é um fator que influencia o rendimento escolar.

Tem a questão da saúde. Tem a questão da violência, segurança pública. Uma criança que vive em um local de alto índice de violência, que tem uma preocupação com os conflitos armados na região, não vai render igual uma criança que vive em um local tranquilo que não há uma operação policial.

As nossas desigualdades afetam todos os setores, e o acesso ao ensino superior depende de todo um histórico por trás. É um ciclo que depende de uma série de fatores. Eu acredito que ainda vai demorar um tempo.

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