O atendimento ambulatorial do SUS (Sistema Único de Saúde) encolheu ao longo dos últimos anos no país. O número médio de procedimentos ambulatoriais por habitante caiu 12% entre 2015 e 2019, sugerindo uma relação direta com a redução do orçamento. Se comparados dados de 2020 e 2021, a queda em relação a 2015 é ainda maior, e chega a 26%.
A coluna fez uma análise com base na produção ambulatorial informada pelo Sistema de Informação Ambulatorial, o SIA-SUS, do Ministério da Saúde. Os dados podem ser consultados no portal do DataSUS. Procurado, o Ministério da Saúde informou, sem fornecer dados, que entende que o SUS “manteve uma média de atendimentos nos últimos anos”, atribuída à “ampliação dos serviços na Atenção Primária”.
A primeira metade de década foi de crescimento. Entre 2010 e 2014, o total de procedimentos ambulatoriais por habitante aumentou 18%. Entretanto, a partir de 2015 o número começou a cair, com leve recuperação nos anos de 2019 e 2021 —mas ainda abaixo do patamar alcançado em 2014.
Os dados mostram que, em 2019, foram realizados 3,7 bilhões de procedimentos ambulatoriais, com média de 17,9 por habitante. O total é 12% menor que os 4,1 bilhões de 2014 —ou 20,2 por habitante.
A queda começa a ser percebida de forma mais intensa a partir de 2016, justamente quando o país enfrentava uma crise política e econômica. Segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), naquele ano 1,4 milhão de brasileiros deixaram de ter plano de saúde.
O encolhimento se torna ainda mais intenso em 2020 e 2021. Porém, por causa da pandemia, especialistas afirmam que os dados não devem ser levados em conta para comparação, pois muitos procedimentos foram adiados ou suspensos para que serviços de saúde dessem conta de atender pacientes com covid-19.
Ou muda, ou encolhe mais
Pesquisadores ouvidos pela coluna apontam que o teto de gastos aprovado com a EC 95 (Emenda Constitucional 95), em 2016, provocou ainda mais perdas ao SUS em meio à retração econômica do país.
“Mesmo antes, já era um número muito aquém da necessidade da população”, afirma Bernadete Perez, sanitarista, professora e pesquisadora da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
Para a professora, a redução faz parte do subfinanciamento do SUS que, diz, piorou com as perdas de recursos geradas pela EC 95. “Ainda tivemos nesse período uma fragmentação das redes, com baixa capacidade de gestão, além da própria pandemia ter reduzido os atendimentos”, diz Perez, que também é vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
Em termos de valores, a produção ambulatorial também diminuiu ao longo dos anos, se descontada a inflação.
“O SUS está escolhendo e, com a EC 95, vai encolher de uma forma geral nos próximos anos”, afirma a pesquisadora Erika Aragão, presidente da Abres (Associação Brasileira de Economia da Saúde). Economista e professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (Universidade Federal da Bahia), Aragão pesquisa o tema há anos e afirma que o subfinanciamento tem feito o SUS perder capacidade de atendimento.
A Abres realizou, com um grupo de economistas, um estudo em que estima quanto a saúde perdeu desde 2018 com a EC 95, em relação ao modelo de financiamento anterior.
- 2018: – R$ 3,9 bilhões
- 2019: – R$ 13,5 bilhões
- 2020: + R$ 21 bilhões
- 2021: – R$ 27,6 bilhões
- 2022: – R$ 12,7 bilhões
- Total: – R$ 36,9 bilhões
“A gente vê uma perda de quase R$ 37 bilhões, sem considerar recursos da covid-19, em valor aprovado e executado. Ou seja, existe uma perda real”, diz Aragão.
Segundo a economista, o país tem uma rede estruturada e capaz de ampliar o atendimento. “O número vem caindo porque o SUS está sendo desfinanciado e outras políticas de austeridade, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, impedem a ampliação dos serviços”, afirma a pesquisadora.
A EC 95, afirma, não leva em conta que as pessoas vão continuar a adoecer e envelhecer cada vez mais, corrigindo o orçamento da saúde apenas pela inflação. “Ou seja, se o país crescer, o governo vai ter mais recursos, mas ele não vai para o setor público. Essa queda já é reflexo do conjunto de medidas de austeridade que vem sendo adotada, e a EC 95 foi a mais drástica”, pontua.
O recurso tem de crescer na medida em que cresce a demanda da saúde. As pessoas não estão tendo menos problemas de saúde. Com menos recursos, o SUS acaba cortando [procedimentos] e as pessoas que precisam acabam ficando sem atendimento ou esperando mais.Erika Aragão, Abres
A situação também afeta as entidades filantrópicas, como as Santas Casas, que afirmam que a tabela de pagamento do SUS está abaixo do custo dos procedimentos.
“Há mais de 20 anos que a tabela SIGTAP [Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e Operações do SUS] não sofre reajuste nos valores repassados aos hospitais”, diz Artur Gomes Neto, provedor da Santa Casa de Maceió.
Ele afirma que usa recursos arrecadados no setor de saúde suplementar para subsidiar os atendimentos ao público. “O valor pago é muito aquém do que seria necessário para cobrir ao menos as despesas”, completa.
Gomes Neto explica que a produção ambulatorial para o SUS teve remuneração mensal média de R$ 2,5 milhões em 2021, menos da metade do necessário para cobrir somente os custos. “Tivemos de subsidiar o atendimento do SUS com mais R$ 57 milhões”, completa.
Desigualdades regionais
A diminuição da produção ambulatorial do SUS tem afetado especialmente o atendimento de média complexidade, afirma o professor em saúde pública Alcides Miranda, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). São considerados serviços de média complexidade aqueles que precisam de um atendimento especializado de profissional de saúde e exames simples, como radiografias e ultrassonografias.
Segundo Miranda, nos últimos anos houve um aumento no que chama de “agenciamento empresarial” nesse tipo de serviço.
Além disso, diz, houve uma ampliação da oferta de serviços do SUS pelas OSs (Organizações Sociais) e similares. Ele aponta “uma diminuição proporcional da rede SUS, própria e complementar, às custas do incremento da rede não SUS, principalmente na média complexidade ambulatorial”.
Para Miranda, isso causa uma espécie de “encolhimento gradual” do SUS, com impactos que devem ser melhor percebidos apenas a longo prazo. Um dos problemas que ele aponta é o aumento da desigualdade regional.
“Um exemplo: a disponibilidade de mamógrafos SUS tem gradualmente se concentrado em regiões com melhores IDHs [índice de desenvolvimento humano] e diminuído em regiões com os piores. A análise tendencial de curto prazo dificulta evidenciar isso, mas no médio e longo prazo é possível evidenciar tais modificações”, alega.
Os dez maiores prestadores de serviços ambulatoriais ao SUS em procedimentos, em 2021:
- Municípios ou órgãos municipais – 1,442 bilhão de procedimentos
- Governos ou órgãos estaduais e DF – 1,41 bilhão
- Entidades sem fins lucrativos – 282 milhões
- Entidades empresariais – 255 milhões
- Fundações estaduais – 24 milhões
- Fundações municipais – 21 milhões
- Autarquias federais – 19 milhões
- Consórcios públicos – 12 milhões
- Autarquias estaduais -11,3 milhões
- Autarquias municipais – 11,5 milhões
O maior aporte de recurso ainda ocorre para a rede própria do SUS. Todavia, tendencialmente ocorre uma gradual diminuição proporcional, com contrapartida de um gradual incremento na rede complementar (conveniada ou contratada) e para os estabelecimentos estatais de administração indireta e direito privado.Alcides Miranda, UFRGs
O que diz o ministério
A coluna procurou o Ministério da Saúde para que comentasse a queda no número de procedimentos ambulatoriais. A pasta informou apenas que entende que o SUS “manteve uma média de atendimentos nos últimos anos”.
“Um dos fatores para os números se manterem nesta média é a ampliação dos serviços na Atenção Primária. Com o aumento do número de Unidades Básicas de Saúde e das equipes de saúde da família atuando nos municípios, a demanda pela Atenção Especializada naturalmente reduz, contribuindo também para minimizar o agravamento das doenças e da superlotação nos hospitais”, informou a pasta, sem enviar o número de atendimentos de atenção primária.
Os dados usados para a reportagem, porém, não incluem atendimentos hospitalares, como os citados pelo ministério.