Pamplona conversou com A TARDE sobre os efeitos no mercado profissional da reforma trabalhista
Juiz do trabalho e professor da Faculdade de Direito da Ufba, Rodolfo Pamplona Filho é bem menos formal do que a maioria dos seus pares, na academia e no judiciário. Mantém três canais no YouTube: um sobre direito, outro sobre poesia e outro da sua banda musical. Sim, ele canta. Ainda luta boxe, cuida dos pets e frequenta a Arena Fonte Nova, já que é um apaixonado torcedor do Bahia, cujo presidente, Guilherme Bellintani, foi seu aluno. Pamplona diz que com paixão e método dá para fazer tudo. Cinco minutos antes do final de uma aula, ele permitiu a entrada da reportagem na sala e tão logo encerrou sua explanação aos estudantes, sentou-se à mesa e conversou com A TARDE sobre os efeitos no mercado profissional da reforma trabalhista, que no próximo mês de julho completa cinco anos de sancionada.
Nesta semana, a justiça dos Estados Unidos autorizou pela primeira vez a criação de um sindicato para os entregadores do Amazon. Aqui no Brasil, vai ser possível manter o mesmo grau de flexibilização das relações de trabalho que vigoram desde 2017?
É preciso entender que a disciplina jurídica das relações de trabalho sofre muitos influxos da economia e da política. O Brasil passou por uma guinada conservadora e com uma feição evidentemente empresarial e de resistência aos avanços, notadamente no Tribunal Superior do Trabalho em matéria de proteção aos direitos trabalhistas. Essa guinada trouxe restrição aos direitos, ainda que com o canto da sereia de criação de postos de trabalho. O fato é que não houve essa criação e nem a inclusão no sistema dos excluídos pela CLT. Ao contrário, nós vimos uma situação de aumento do desemprego. Ou seja, aquilo que fez com que se ganhasse a simpatia da população votante se mostrou uma inverdade. E esse fenômeno não aconteceu somente no Brasil. Nós temos notícia de que na Espanha houve uma revogação de parte da reforma trabalhista de lá. Nós temos visto que o sistema de proteção das relações de trabalho só faz sentido no capitalismo. Porque é uma contra-marcha que estabelece os limites aceitáveis da exploração. Então, é preciso saber que retroceder em matéria trabalhista é, afinal de contas, abrir as portas para uma exploração que não era mais aceitável.
E a questão sindical ? Como ficaram os sindicatos no Brasil após a reforma trabalhista?
Neste ponto de defesa dos direitos trabalhistas no mundo ocidental, os sindicatos têm um papel de protagonismo. Só que a reforma trabalhista os enfraqueceu, retirou contribuições pecuniárias históricas, retirou poderes de barganha, retirou atribuições que lhe davam maior visibilidade e participação na vida dos trabalhadores. Notadamente no momento da extinção dos postos de trabalho. O fim da homologação que permitia que o trabalhador procurasse o sindicato e pudesse ter consciência de seus direitos. Eu sou juiz do trabalho e quando pedi demissão de uma universidade eu fui ao sindicato. Eu não precisava de esclarecimentos, mas eles me perguntaram: “O senhor sabe disso?”, “Tem consciência disso?”, “Quer abrir mão disso?”, exercendo esse papel. Também tem a questão das chamadas dispensas coletivas. O TST tinha dado uma diretriz que exigia uma negociação coletiva, prestigiando a proteção que os sindicatos podiam dar. E a reforma trabalhista jogou isso na vala. As ações dos sindicatos foram reduzidas a uma situação que levou muitos deles a fechar. O que nós temos é o enfraquecimento do sistema de proteção sob o argumento dos novos postos de trabalho. As pessoas perceberam que foram, no mínimo, ludibriadas. Há uma resistência muito grande e o discurso de um candidato de que vai revogar. Uma revogação total da lei simplesmente seria algo meio desastroso porque no Brasil não existe o fenômeno da repristinação. Ou seja, se revoga a lei revogadora, a lei revogada não volta ao lugar. Precisaria ter uma disciplina legal nova para dizer o que seria feito. A verdade é que a reforma trabalhista foi muito ruim.
O senhor citaria alguma mudança positiva?
Ela teve alguns pontos bons, principalmente no processo, como contar prazos em dias úteis, e a questão do ônus da prova. Mas são muito poucos. Algumas experiências podem ser aperfeiçoadas, como o teletrabalho. Podia ser melhor? Sim. Mas é algo que a gente vai ter que encarar. Agora, dizer que a reforma trabalhista foi boa é opinar num Ba-Vi, num Fla-Flu, pensando simplesmente do ponto de vista político. Pensando no trabalhador, não dá para defender isso. Como aplicador do direito, eu sou juiz há 27 anos, tenho que aplicar a lei. Não posso assumir um papel de rebeldia juvenil e dizer que não aplico. Mas dizer que foi favorável ao trabalhador é absolutamente inverídico.
Como o senhor avalia o mundo do trabalho para quem acreditou que adotaria uma postura empreendedora no mercado, seja como Microempreendedor Individual (MEI), seja trabalhando através de aplicativos?
Esta é uma questão fundamental no direito do trabalhador brasileiro. Eu diria, ocidental. No nosso caso, temos toda uma disciplina legal de proteção ao trabalho celetista. E tivemos simplesmente prestação de serviços autônomos regulada pelo Código Civil sem nenhum tipo de proteção diferenciada, calcados na ideia de igualdade entre as partes. Sabemos que em uma relação entre uma empresa e um indivíduo é pouco provável que esse indivíduo tenha por si força suficiente para negociar condições de trabalho. Uma coisa é o alto empregado, o grande artista, o grande jornalista. O saudoso João Ubaldo Ribeiro, como escritor, podia negociar o valor para publicação de sua coluna. E, eventualmente, publicar de graça. A maioria dos cidadãos não tem esse poder de barganha. A pejotização no Brasil decorre unica e exclusivamente do custo da mão-de-obra. Se os pejotizados tivessem os mesmos custos econômicos para o tomador, não tenho a menor dúvida de que ninguém discutiria isso. Mas estamos pensando no indivíduo que recebe somente pelo que produz. Médicos empregados em hospitais privados? É mais fácil achar um mico-leão dourado. É todo mundo PJ ou de cooperativa, porque o sistema acabou se adequando e diz que só contrata dessa forma. Mas o direito do trabalho não é compatível com a lei da oferta e da procura. O direito do trabalho quer preservar a dignidade do trabalhador até dele mesmo, porque ele é o primeiro a vender a sua dignidade. O indivíduo tem bocas para alimentar, companheiro, companheira, filhos, família. Ele se prostitui e aceita qualquer negócio. Sempre que houver direito do trabalho no Brasil, essas questões vão levar à judicialização.
Por falar em médicos, pouco depois da implementação da reforma trabalhista vem a Covid-19 e muita gente que recebe por produção ficou à deriva por algum tempo…
Eu falei em algumas lives que a pandemia mostrou que esse discurso de que o direito do trabalho está superado é uma balela. A pandemia veio como uma enzima para repensar as novas fórmulas da relação de trabalho, acelerar, por exemplo, o desenvolvimento do teletrabalho, mas também serviu para que o direito do trabalho recuperasse o seu protagonismo. Percebeu-se a importância do direito do trabalho durante a pandemia. Tanto que tivemos uma pandemia de medidas provisórias mudando o posto de trabalho porque o trabalho e a renda são fundamentais no sistema capitalista.
E os trabalhadores de aplicativos especificamente?
Em relação à uberização, a questão é mais complexa. Está relacionada também à utilização das plataformas digitais, de instrumentos telemáticos e a uma relação com o consumidor final. Você usa táxi? Usa Über, mesmo sabendo que o cara do Über ganha menos do que o taxista. Quem está ganhando? Quem faz a administração do sistema. É mais complexo. Não é só o Über. A uberização é um fenômeno que tem a ver com os nossos salários. Produtividade, avaliação do serviço. Você faz a matéria comigo, coloca no Instagram do jornal. Eu dou visibilidade à matéria e aumentam as visualizações, os likes. Você ganha prestígio. Com o quê? Com o nada. Gera-se uma indústria paralela de likes. É um novo mundo. Pensando em Aldous Huxley, é o admirável mundo novo. Ou o nada admirável mundo novo. A uberização tem o mesmo problema da redução de custos. Só que aí tem o consumidor que acaba estimulando esse tipo de prática. O cara trabalha de bicicleta, está sujeito a ser atropelado e nós pensamos nos tais penduricalhos (termo que juridicamente pode representar remunerações extras). Vai dar adicional de insalubridade, um dinheiro a mais? Não. É preciso dar condições dignas de trabalho, um carro, uma moto, delimitar os locais de entrega. Alguma coisa para que não seja uma superexploração. Ter uma disciplina jurídica digna para o trabalho por aplicativo. E uma questão é evitar o dumping. Se eu exijo de um, devo exigir de outro. Se a regulamentação é municipal ou estadual, a empresa simplesmente muda de lugar. Aí tem que ter uma intervenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Uma frase bem marqueteira: senão, aí vira o escravo moderno. O escravo da contemporaneidade.
Apareceram umas histórias bizarras nos Estados Unidos, com clientes ameaçando dar avaliação ruim no aplicativo caso os entregadores não aceitassem dançar no meio da rua para que o cliente filmasse e postasse nas redes sociais…
É a consequência desse modelo de que tudo pode ser vendido. A dignidade não se vende. Como diz Immanuel Kant: “As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade”. A reforma trabalhista precisa ser revista. Ela não alcançou a finalidade pela qual foi constituída, com a qual ganhou algum tipo de apoio político.
De trabalhos múltiplos, o senhor entende. Além de ser juiz e professor, canta numa banda, faz poesia, luta box e mantém três canais no YouTube. Como acha tempo?
Sempre com método, sempre com paixão, me entregando. Eu não gosto de gente morna. Ou eu sou quente ou eu sou frio.
www.atarde.com.br/Gilson Jorge