A classe trabalhadora brasileira é um gigante social. Quando se colocou em movimento, nos anos oitenta, fez tremer os pilares de sustentação da ditadura. Um véu de invisibilidade hoje encobre sua potência, e diminui a influência que pode exercer sobre os destinos do país, mas não esconde a robustez de sua força social de choque.
Ela não saiu às ruas em 2021, infelizmente, na campanha Fora Bolsonaro, por variadas razões objetivas e subjetivas, mas voltará a lutar. Não sabemos quando, mas ela será protagonista das lutas que o futuro nos reserva.
Uma premissa marxista é que devemos conhecê-la: (a) permanece superexplorada através de salários baixos, embora seja a maioria da nação; (b) está muito concentrada, em mais de vinte cidades e regiões metropolitanas com um milhão ou mais de habitantes; (c) o peso da juventude diminuiu, quando comparada há quatro décadas, mas um em cada três têm menos de trinta anos; (d) passou por uma intensa feminização, nos últimos trinta anos, sendo esta a sua camada mais oprimida; (e) há um peso imenso, em muitas regiões, majoritário, de negros, portanto, vítimas do racismo; (f) tem, em 2022, menos homogeneidade interna que em 1979, mas a escolaridade média dobrou; (g) exerce e sofre a pressão do peso do semiproletariado, mas tende a arrastar para o seu campo a maioria pobre e popular das cidades e do campo; (h) não tem organização, salvo raras exceções, nos locais de trabalho; (i) sofre, em especial nas empresas privadas, com um índice baixo de sindicalização.
São mais de 12 milhões de operários industriais, mais sete milhões na construção civil, quase cinco milhões nos transportes, e dezesseis milhões de funcionários públicos.
A fragilidade da organização independente, sindical e política dos trabalhadores, e a imaturidade dos níveis de consciência que ainda prevalecem não deve nos desencorajar. As ilusões reformistas não morrem sozinhas. Só a experiência prática de dezenas de milhões de trabalhadores pode abrir o caminho na luta de classes. Reconhecer a grandeza objetiva, mas, também, os limites subjetivos do movimento da classe na atual etapa da luta de classes não deve diminuir nossa confiança estratégica na revolução brasileira.
A degradação das condições materiais explicam, mas só parcialmente, que o nível médio de consciência tenha retrocedido, quando em comparação com o impulso classista dos anos oitenta, quando a classe trabalhadora brasileira foi uma das que mais lutaram no mundo. É impossível compreender as expectativas limitadas, em grande medida rebaixadas, sem considerar, também, o papel das organizações e lideranças como o PT que, sendo majoritárias, desencorajaram e deseducaram a classe apostando em acordos com a burguesia para garantir a governabilidade durante treze anos.
Ainda assim podemos observar que: (a) ao tamanho do proletariado corresponde força e esperança quando se coloca em movimento, mas, em função dos baixos níveis de organização, também, medo de represálias dos patrões e do Estado; (2) à juventude da classe trabalhadora corresponde audácia, ou seja, coragem, mas, também, tendência a reações impetuosas e até, também, explosivas; (3) à feminização da força de trabalho corresponde obtusidade machista, mas, ao mesmo tempo, reação feminista; (4) à concentração em gigantescas regiões metropolitanas corresponde impacto da força social de choque quando em luta, mas pesam as diferenças regionais entre nordeste e sudeste, entre sul e norte, e entre setores profissionais da classe, com impulsos corporativos; (5) ao peso da afrodescendência corresponde a pressão pela unidade contra os preconceitos, mas também, as pressões da herança racista; (6) à superexploração corresponde ressentimento social e disposição de luta, mas, também, uma estrutural insegurança diante do medo da miséria; (7) à heterogeneidade social corresponde preconceitos internos e dificuldade de união, em especial, entre o funcionalismo público e trabalhadores do setor privado; (8) à pressão do semiproletariado corresponde alento e vigor e, em outro nível de análise, do lumpen, incerteza e desalento; (9) à desorganização na base corresponde insegurança, e também dificuldade de vigilância sobre os dirigentes, ou alguma tolerância com o personalismo; (10) à fragilidade de organização sindical corresponde a tendência à burocratização de suas organizações e movimentos; (11) à despolitização correspondem as ilusões reformistas, ou seja, enganos sobre as possibilidades de mobilidade social individual; (12) à pouca instrução corresponde autodidatismo, forte influência religiosa, mas, também, anti-intelectualismo.
As pesquisas do DataFolha sinalizam que o lulismo ainda tem imenso apelo de massas. A experiência foi importante, em especial, nos setores organizados, mas a ruptura foi incompleta. O desgaste do PT nunca atingiu Lula com a mesma intensidade. Os elementos “messiânicos” das ilusões reformistas estão vivos. Mesmo os que romperam com Lula mantêm ilusões em negociações com a classe dominante.
A conclusão que se impõe, quando pensamos em perspectiva este ciclo histórico de quatro décadas, é que a experiência da classe trabalhadora é lenta. Em situações defensivas, os trabalhadores, mesmo nos setores mais organizados e com tradição de luta, fazem cálculos de risco antes de se expor na luta frontal. Desde 2016, a evolução desfavorável da relação de social de forças forçou a classe a fazer um recuo, preservando suas energias, esperando condições mais animadoras. Mas ela permanece a esperança de que é possível mudar o Brasil. Nada nem ninguém podem substituí-la. Sem ela não é possível impor derrotas aos capitalistas. Sem a sua mobilização não é possível e não vale a pena a luta pelo poder.
Mas ser marxista é ter a certeza que a luta de classes abrirá o caminho.
Mais do que nunca devemos depositar confiança na classe trabalhadora.
www.brasildefato.com.br/Valerio Arcary, professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSOL e autor de O Martelo da história, entre outros livros.