Um mix de situações que, em 2021, fez o preço da gasolina subir 46%, o do diesel custar mais 47% e encareceu o etanol em 59%, conforme dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP), ganha força, em 2022, com a campanha eleitoral no Brasil. E a perspectiva de instabilidade na economia, típica das épocas de disputas nas urnas, é ameaça para agravar o que o cidadão percebe todos os dias, nas bombas de combustível, como resultado da alta internacional do petróleo, da desvalorização do real e da inflação que, no ano passado, chegou aos dois dígitos, 10%, quase o dobro da meta do Banco Central.
A complexidade do cenário, com a vida e a locomoção mais caras a cada dia, justifica discussão a respeito da incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nos combustíveis. O governo federal prepara – o presidente Jair Bolsonaro anunciou no fim de janeiro – proposta de emenda constitucional (PEC) que se juntará a outras duas proposições em tramitação no Senado. A primeira, a PEC 35/2021, limita alíquota do ICMS sobre combustíveis a 10%. A outra, o Projeto de Lei (PL) 1.472/2021, cria o programa de estabilização do preço do petróleo e derivados no Brasil e o Fundo de Equalização dos Combustíveis.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, no início da segunda quinzena de janeiro, comunicou a intenção de discutir com o colégio de líderes a solução para a disparada no preço dos combustíveis. E, no Supremo Tribunal Federal (STF), tramita desde setembro de 2021, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) 68/2021. Nesse processo, a Advocacia-Geral da União (AGU), portanto o governo federal, cobra do Congresso Nacional lei complementar para regular a alíquota única do ICMS para a gasolina, o diesel, o etanol, o gás de cozinha e os derivados de petróleo.
Ação movida por ordem de Bolsonaro é parte de discurso que começou há quase um ano, durante a escalada dos preços nos postos. E se fundamenta na demora de mais de duas décadas para o Congresso cumprir tarefa prevista na Emenda Constitucional (EC) 33/2001, que delineou matriz tributária para os derivados do petróleo: encontrar fórmula para transformar o ICMS incidente sobre os combustíveis em uma exação monofásica, ou, em outras palavras, fazer valer uma única tributação, com alíquota mais elevada, para desonerar as demais fases da cadeia produtiva.
Congelamento
As falas do presidente Jair Bolsonaro, desde fevereiro de 2021, colocaram os representantes das 27 unidades da federação no meio da discussão sobre a responsabilidade pelo aumento nos combustíveis. Como ICMS é um tributo estadual, cabe aos governos dos estados e do Distrito Federal decidir a alíquota incidente sobre os negócios de cada setor. No último dia 27, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que reúne os 27 secretários de Fazenda, aprovou por unanimidade a extensão do congelamento do ICMS sobre os combustíveis para até 31 de março deste ano – decisão de outubro previa duração até 31 de janeiro.
A estratégia de culpar o ICMS pelo alto preço dos combustíveis tem fundamento na lógica de que quanto mais caros, maior a arrecadação. Mas a reação a esse entendimento uniu governadores, inclusive usuais parceiros do presidente. Ibaneis Rocha, do Distrito Federal; Romeu Zema, de Minas Gerais; e Ronaldo Caiado, de Goiás, refutaram o desafio de zerar a cobrança do tributo – a arrecadação com esse imposto representa perto de 80% da receita das unidades da federação. A provocação de Bolsonaro também tem a ver com prefeitos porque a Constituição Federal determina que os municípios recebam 25% do recolhimento com o ICMS.
Eleitoreira
A resistência à provocação de Bolsonaro se difundiu. Em outubro passado, o Comitê Nacional de Secretários de Fazenda Estaduais divulgou nota contrária à tentativa de mudar a forma de arrecadação do ICMS. O documento faz estimativa de perdas de R$ 24 bilhões para os governos estaduais e de R$ 6 bilhões para prefeituras. E no fim de janeiro, a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) divulgou nota para chamar de eleitoreira a forma como o governo federal negocia com o Congresso Nacional as propostas para baixar o preço dos combustíveis.
Na mesma semana de janeiro, o coordenador do Fórum de Governadores, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), classificou as propostas de redução de um tributo estadual de tentativa de transferência responsabilidade. Dias lembrou que, como 2022 é ano eleitoral, há impedimentos constitucionais para a adoção imediata das alterações que o governo federal defende. Por fim, o governador defendeu a criação do Fundo de Equalização dos Combustíveis, na forma do (PL) 1.472/2021, alternativa que, na avaliação dele, reduziria definitivamente o preço do combustível em R$ 2.
Economistas, três professores de instituições de ensino superior, concordam ao identificar o porquê de o combustível estar tão caro no Brasil. O primeiro motivo é a elevação do preço do petróleo no mercado internacional, resultado de eventuais restrições à produção que afetaram a disponibilidade da commodity. Entre janeiro de 2019 e dezembro de 2021, conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o preço médio, no mês, da matéria-prima para a produção da gasolina e do diesel variou de US$ 67,12 para US$ 77,31, ou seja, uma majoração, em dólar, de 15,18%.
Oferta e demanda
“É o contexto internacional, a pandemia, a elevação do preço do petróleo, as restrições à produção e, consequentemente, à oferta”, comenta o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mauro Sayar Ferreira. “A partir do governo Temer, o governo abriu mão de determinar o preço dos combustíveis e, hoje, a Petrobras atua, de fato, como uma empresa privada”, explica o também economista da UFMG, onde dá aulas de conjuntura econômica, Rafael Ribeiro. “A maneira como se comportam os preços dos combustíveis é a mesma do preço dos carros, da motocicleta, do sorvete, da comida, a partir da oferta e da demanda”, diz Mauro Rochlin, que leciona na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Mas o barril de petróleo mais caro faz com que a produção de combustíveis fique mais custosa para o consumidor em todo o mundo, não só nos 26 estados e no Distrito Federal. E os brasileiros que vivem nas regiões de fronteira bem sabem que está valendo a pena sair do país com os seus carros de tanque vazio para visitar os postos de gasolina nas cidades que ficam do outro lado das linhas divisórias. Em Foz do Iguaçu (PR), por exemplo, em dezembro passado, o litro de gasolina saía a R$ 6,60 nos postos. E bastava viajar 15 quilômetros, até Puerto Iguazú, na Argentina, para pagar o equivalente, em pesos, a R$ 3,50.
A comparação torna evidente uma consequência da política econômica do governo Bolsonaro. Entre dezembro de 2019 e dezembro de 2021, conforme dados da Receita Federal, o real se desvalorizou 29,42% frente ao dólar, a moeda brasileira perdeu quase um terço do seu valor em comparação à unidade monetária de referência no mercado internacional. “O câmbio deriva da política fiscal, das incertezas fiscais”, explica o Ferreira. “As expectativas criadas no âmbito fiscal, seja pelo presidente ou por pessoas que estão pleiteando o governo, tudo que impactar a expectativa de política fiscal, vai impactar o câmbio.”
Temor
Rochlin e Ribeiro reforçam o mesmo entendimento. “O efeito da alta do dólar foi particularmente ruim para os brasileiros porque aqui houve uma desvalorização do real muito forte, resultado da condução da nossa política”, comenta o economista da FGV. “Em função dessa grande instabilidade política que o Brasil viveu nestes últimos tempos, com a ameaça de ruptura institucional, briga entre os poderes, isso acaba gerando um temor muito grande em relação à economia brasileira”, diz o professor de conjuntura econômica na UFMG. “Com isso, o capital internacional foge do país, aumenta o preço do dólar”, completa.
Quanto às iniciativas de mudança na cobrança do ICMS para diminuição no preço dos combustíveis, opiniões de novo coincidentes, inclusive com comparações a frustradas tentativas de controle de preços. “Essas intervenções podem até ser bem intencionadas, na verdade, não são, regra geral, nunca são, mas, mesmo que fossem, o caminho está errado porque os efeitos de curto prazo são ilusórios”, critica Rochlin. “Alguém sempre paga a conta e, às vezes, na hora que percebe-se que essas medidas represaram preços, acaba sendo gerada uma inflação muito aguda no momento posterior, quando os ajustes são feitos”, diz Ferreira.
E o especialista em econometria cita a história recente para fundamentar o seu ponto de vista. “Vamos lembrar que o Brasil é um país com histórico de diversas tentativas de controle de preços, desde a Década de 1980, desde antes, até, e no governo Dilma isso foi feito, a América Latina é cheia de exemplos de que nunca deu certo”, comenta o professor da UFMG. “O que está gerando esse aumento, é o preço base da gasolina, não a alíquota de imposto, essa proposta de reduzir o imposto tem um efeito muito difuso, porque ela vai reduzir muito pouco a inflação”, avalia o colega de universidade, Ribeiro.
Holofote
Instabilidade política, mercado suscetível a imprevistos e ambiente de inquietação com a iminente disputa política pela Presidência da República, pelos governos estaduais e pelas vagas de deputados e senadores. O contexto dá motivo a previsões nada otimistas. “Eu temo pela política fiscal, pela irresponsabilidade que pode assolar a condução da política e pelos efeitos que isso pode ter”, avalia Rochlin. “O debate em torno dos impostos é muito mais uma forma de jogar o holofote sobre governadores do que propriamente seja um debate para resolver o problema”, completa o professor da FGV.
Também o cenário internacional não conspira a favor da perspectiva de o preço do petróleo baixar, de uma variação negativa no valor da commodity. “A expectativa, com o fim da pandemia, é que as economias retomem o ritmo de crescimento e isso vai puxar a demanda de petróleo para cima, no mercado internacional”, comenta o professor Ribeiro. “Mantida a politica de preços da Petrobras no cenário atual, a expectativa é de que o preço da gasolina vá continuar subindo, pode cair num primeiro momento, mas vai continuar subindo, e vai ter um efeito muito negativo do ponto de vista das contas públicas.”
Para Ferreira, é preciso mudar o foco na busca por soluções para resolver o problema da alta dos combustíveis e seu reflexo em toda a economia nacional. “O que percebo é que deveríamos parar de ficar insistindo em controle de preços na canetada porque isso nunca deu certo, na verdade sempre gerou prejuízo para o País” explica o professor de econometria da UFMG. “Um pedaço expressivo que motiva a gasolina de estar cara diz respeito à política fiscal, seria muito mais eficiente o governo atuar, sinalizar boas medidas no âmbito fiscal, vai ter um impacto muito menos nocivo para a economia”, conclui.
Segurança
A discussão – ou disputa – sobre a cobrança do ICMS envolve os três poderes da República, reverbera nos postos, nas bombas e nos ouvidos dos frentistas, que ouvem as reclamações com os sucessivos aumentos dos preços da gasolina, do diesel e do etanol – mesmo sem ser um combustível fóssil, o etanol tem seu preço atrelado aos dos produtos similares. Mas esse não é o fim da linha daquilo que, na verdade, é um ciclo vicioso. Quem, por obrigação e necessidade, está atrás do volante engrossa as critica às negociações em curso para baratear um insumo presente na formação dos preços de todas as mercadorias.
O presidente da Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores (Abrava), Wallace Landim, o Chorão, conta da dificuldade para repasse do aumento nos custos dos fretes. “Hoje, o transportador autônomo não tem condições nem de manter o seu caminhão, nossa preocupação é com o aumento de acidentes”, reclama. Landim defende a desvinculação do preço dos combustíveis no Brasil do valor do petróleo no mercado internacional. “Estamos falando de uma estatal que, hoje, se comporta como uma empresa de mercado, que só trabalha para os acionistas”, diz ao criticar a Petrobras. “É o mercado acima de tudo.”
A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) informou, por meio de mensagem, que o combustível para aviões acumulou alta de 76,2% em 2021. O querosene de aviação (QAV), conforme a Aber, historicamente, corresponde a uma participação de 30% nos custos totais das companhias aéreas, metade dos quais são indexados ao dólar. “Só o Brasil onera as empresas aéreas com um imposto regional sobre o combustível dos aviões”, critica a associação. “É o ICMS, que faz com que muitas vezes um voo ao exterior seja mais barato do que um voo doméstico, levando-se em conta distâncias similares”, conclui a mensagem.