O caso da mãe de cinco filhos que furtou dois pacotes de miojo e uma garrafa de Coca Cola em um supermercado do Rio de Janeiro não é uma história única. Desde o início da pandemia, em março de 2020, 92 pessoas foram presas por furto de comida na Bahia e, destas, 10 tiveram prisões mantidas pela Justiça. As demais foram liberadas. Em 2020, cerca de 19 milhões de brasileiros passaram fome, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Segurança Alimentar.
Como os dados disponíveis sobre furto de comida em 2021 vão só até outubro, ainda não é possível mensurar se houve aumento ou queda nas prisões por este tipo de delito durante a pandemia no estado. Até então, é possível notar um movimento de constância. Em 2019, antes da chegada do coronavírus por aqui, foram 58 pessoas detidas; enquanto em 2020 foram 54 e, conforme dados até o mês passado, faltando dois meses para encerrar o ano, já são 48 prisões em 2021. Esse tipo de delito costuma aumentar mais no fim e início do ano, o que ainda pode inflar os números de 2021. O levantamento foi feito com base em autos de flagrantes compilados pela Defensoria Pública da Bahia (DPE-BA).
“A fome é real e não existe a opção ‘não vou comer’. Imagine uma pessoa que chega num mercado e leva biscoito e manteiga. Aquilo não é para ela vender. É para matar a fome. As pessoas empobreceram na pandemia. Uma parte da sociedade que já era muito pobre ficou mais pobre ainda porque tudo encareceu. Há pessoas nas sinaleiras que estão pedindo! O que elas vão fazer se não conseguirem nada?”, reflete a defensora Fabíola Pacheco.
No geral, o perfil dos detidos costuma ser formado por pessoas negras, quase sempre na linha da pobreza. Quase 20% da população do estado está desocupada, segundo o IBGE. Esse drama da fome tem refletido não só nas páginas dos jornais, com carcaças virando comida, como também em processos no sistema de Justiça, chegando, inclusive, nas mais altas instâncias, o STJ e STF.
Advogado criminalista, Mailson Conceição explica que o “furto famélico” — como também é chamado — ocorre quando alguém furta algo para si ou para outros com a intenção de saciar uma necessidade urgente, o que não está restrito só à comida, podendo incluir remédios e itens de higiene. Não há um pensamento unânime sobre o furto famélico, mas desde 2014, um entendimento do STF conclui que, nestes casos, é possível aplicar o princípio da insignificância. Isso significa dizer que estes furtos são tão pequenos que, na prática, não causam prejuízo e não precisam chegar nas altas cortes.
Os tribunais superiores têm entendido, ultimamente, que movimentar toda a estrutura de policiais, delegacia, Ministério Público, Tribunal de Justiça e ministros representa um alto custo para o estado e não compensa usar tanto recurso público para resolver questões como um furto de miojo e Coca Cola, que somam cerca de R$ 21, como foi o caso da carioca. Ela foi presa e, depois, liberada após a ação chegar ao STJ. Além disso, profissionais apontam que manter presas pessoas que cometeram crimes “insignificantes” é contramão, já que presídios são considerados “escolas do crime”.
Em outubro do ano passado, um homem de 29 anos tentou furtar dois barbeadores, no valor de R$ 32 cada, numa farmácia Pague Menos, em Salvador. A funcionária percebeu e acionou a Polícia Militar, que deteve o rapaz. Ele confessou e os objetos foram devolvidos. O acusado possuía três ocorrências policiais, uma delas em 2014, por outro furto a um supermercado. Na ação da Pague Menos, o Tribunal de Justiça da Bahia rejeitou a denúncia contra o homem e arquivou o caso. O juiz entendeu que o valor dos objetos era irrisório ante o patrimônio da farmácia.
Pesquisa da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), mostra que em 2020 o setor teve cerca de 23% das suas perdas atreladas a furtos. Quase metade do prejuízo foi com produtos avariados ou fora da validade. Ao todo, as perdas principais foram com refrigerantes, chocolate em barra, carne, desodorante, queijos e sabão em pó.
Os supermercados costumam adotar câmeras de monitoramento e alarme de acesso, além de contratação de vigilantes e fiscais de piso. Sócio da empresa supermercadista RedeMix, João Cláudio Nunes, vice-presidente da Associação Baiana de Supermercados (Abase), diz que cada estabelecimento costuma ter seus próprios métodos para inibir furtos e que o segmento estadual não chegou a relatar maior frequência desse tipo de delito.
Em 2018, duas jovens de 24 e 26 anos foram flagradas furtando miojo, desodorante e pastilhas de um supermercado baiano. Os itens foram devolvidos à loja, mas mesmo assim, elas foram presas e respondiam por furto qualificado, já que agiram juntas. Ambas foram absolvidas após atuação da DPE-BA.
“É uma insensibilidade grande condenar uma pessoa por querer matar a fome. A gente não tem força suficiente para condenar todos os crimes, tem que se concentrar nos grandes. Por que para o rico se considera sonegação de até R$ 20 mil uma bagatela e não considera o mesmo para um furto de pequeno valor? A gente não quer incentivar ninguém a cometer crime, mas não é a punição que impede as pessoas de cometerem. O que a gente pode fazer? Punir quem realmente merece”, argumenta a defensora Soraia Ramos. | Correio 24 H
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