Sindicato dos Trabalhadores em Postos de Combustíveis da Bahia
/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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A luta após o luto no Brasil que supera 400.000 mortes na pandemia

A assistente social Paola Falceta perdeu a mãe para a covid-19.TÂNIA MEINERZ
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Familiares de vítimas da doença criam associação para lutar na Justiça pela responsabilização do poder público pelo descontrole da pandemia no país. E cobram políticas públicas para famílias devastadas pelo vírus

A madrugada de 2 de março foi a pior que a assistente social Paola Falceta já precisou enfrentar. Foi ela quem percebeu a respiração da mãe se esvair completamente pela covid-19 em um hospital de Porto Alegre. Italira Falceta da Silva, de 81 anos, havia sido internada para uma cirurgia cardiovascular no final de janeiro, mas foi contaminada pelo coronavírus. Depois de semanas na área de isolamento ―e já livre do vírus, por isso pôde ser acompanhada pela filha―, foi direcionada a um quarto já desenganada. A equipe médica estimava que a chance de recuperação era mínima. “Ela não era mais elegível para a intubação. Era idosa e não tinha mais vaga em UTI. Falaram: não tem equipamento pra usar na tua mãe”, conta Paola. Italira é uma das mais de 400 mil vítimas da pandemia no Brasil, que nesta quinta registrou mais 3.001 mortes pela doença. Agora, a filha se une a dezenas de familiares que perderam parentes pela doença para tentar responsabilizar o poder público. Organizados em uma associação, eles cobram políticas públicas e apontam a negligência do Governo na tragédia brasileira. “Transformei meu luto em força para impedir que outras pessoas passem por isso. É uma tremenda injustiça. O Brasil já viveu muitas, mas esta está violando direitos de todas as faixas etárias e classes sociais. Alguém precisa responder por isso”, diz Paola.

A Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico) foi criada para oferecer um apoio coletivo em meio ao luto que assola os brasileiros, mas se organiza também como um movimento de denúncia contra a omissão das autoridades frente à maior crise sanitária desta geração. O pior é que não há sinais de que a situação vá melhorar de forma consistente. Com vacinação lenta e incerta, o país estacionou em um patamar elevado de mortes por covid-19 ―registra uma média móvel superior a 2.000 óbitos por dia― e já supera os Estados Unidos nas mortes por milhão de habitantes. É o 12º país no ranking mundial de mortes proporcionais ao tamanho da população. Enquanto cresce a preocupação global pelo descontrole da pandemia na Índia, no Brasil a média de mortes diárias ainda é seis vezes maior que a do país asiático proporcionalmente à sua população: a taxa brasileira é de 11,44 e a indiana de 1,93, segundo a plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford.

Por um grupo no WhatsApp, cerca de 100 membros da associação dividem a dor da perda, se apoiam e discutem estratégias para levar à Justiça possíveis falhas dos governos federal e locais na mitigação da crise. Preparam provas para questionar desde a distribuição do “kit covid“ ―um coquetel de medicamentos sem eficácia contra a doença que teria estimulado as pessoas a se exporem ao risco― à ausência de ações efetivas para os sobreviventes que sofrem com sequelas do coronavírus. “Alguém tem que ouvir a gente. É impossível a pandemia ser resolvida só com autoridades políticas. Nós, vítimas, somos invizibilizadas. Como estamos vivendo? De que estamos nos sustentando?”, questiona Paola. “Se ninguém enxergar o que estamos passando, não teremos uma maneira de barrar essa mortalidade que tem, sim, responsabilidade pública. O Brasil é reconhecido pela vacinação, tem um SUS consolidado. E não fizemos nada para barrar isso em mais de um ano”, critica.

A primeira tentativa de responsabilização institucional no país foi posta em marcha apenas recentemente. Senadores instalaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar se houve omissão do Governo Federal no enfrentamento à pandemia. O presidente Jair Bolsonaro adotou uma política errática durante toda a crise. Negou a gravidade do vírus, levantou uma dicotomia entre o cuidado à saúde e a preservação da economia, sabotou medidas de isolamento social, propagandeou medicamentos sem eficácia, questionou a segurança de vacinas por meses. Seu Governo demorou a negociar doses, e o ritmo da campanha de imunização no país segue lento pela escassez delas. Nos próximos dias, as quatro pessoas que ocuparam o cargo de ministro da Saúde durante a crise sanitária ―Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich, Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga― serão ouvidas pelos senadores. O Senado também investigará a indicação do uso do chamado kit covid para a doença nas comunidades indígenas. Familiares de vítimas da pandemia defendem que o momento para a CPI é agora e cobram respostas. Querem que as autoridades prestem contas da tragédia brasileira.

“Perdi meu pai e minha mãe no mesmo dia pela falta de oxigênio”

Um dos mais dramáticos símbolos da pandemia no país, a falta de oxigênio em hospitais que levou várias pessoas à morte em Manaus, também está na mira da investigação parlamentar, que tentará responder se governos nas várias esferas deixaram de agir e se sabiam do grave colapso do sistema de saúde que se desenhava no Amazonas. “Perdi meu pai e minha mãe no mesmo dia pela falta de oxigênio no hospital. Morreram os dois em um intervalo de meia hora. A gente não consegue mais lidar com tanta falta de responsabilidade com a vida humana de quem poderia ter evitado uma tragédia”, diz o administrador de empresas Iyad Amado, de 39 anos. O pai dele, Amado Ali Hajoj, de 74 anos foi infectado em dezembro. Orientado por médicos, tomou medicamentos como a ivermectina e a azitromicida, começou o suporte de oxigênio em casa, mas no início de janeiro foi internado no Hospital Getúlio Vargas. Dias depois, a mãe Zahieh Hajoj, 65 anos, também foi internada com a doença no mesmo hospital. Descendente de palestinos, o casal construiu a vida ao longo de 40 anos de casamento em Manaus. No dia 14 de janeiro, quando o caos se instalou nos hospitais da cidade pela falta de um insumo básico, Iyad recebeu uma ligação para levar um cilindro de oxigênio até a unidade de saúde. No caminho, o hospital avisou-lhe que já não era mais preciso.

Só quando chegou lá ele soube que ambos haviam falecido. Uma enfermeira e um médico contaram que tentaram ventilar Zahieh no braço para ajudá-la a respirar (ou ambuzá-la, no jargão médico). Iyad conta que os profissionais estavam também muito abalados enquanto explicavam que haviam feito tudo o que podiam. “A causa da morte deles foi sim a falta de oxigênio, a irresponsabilidade das autoridades com a vida das pessoas na pandemia, o negacionismo”, acredita. “Precisei reconhecer os corpos dos meus pais simultaneamente. Eles foram levados e sepultados juntos. Perdi as pessoas mais importantes da minha vida, a minha base, quem eu tinha como espelho. É uma dor indescritível, não dá pra falar do que é essa perda.” Para ele, a morte dos pais é fruto da omissão de várias esferas de Governo. “Eu falo agora em nome das 400 mil pessoas que perderam suas vidas. Boa parte de quem partiu foi por uma pandemia, mas houve muitos casos que poderiam ter sido evitados. Não podemos ficar calados. As futuras gerações não podem entender isso como uma crise sanitária inevitável”, defende, por telefone, de Manaus.

“Minha mãe foi submetida quase a uma eutanásia”

No sul do país, a assistente social Paola nutre o mesmo sentimento. “Minha mãe foi submetida quase a uma eutanásia. Só estavam dando morfina para ela no final”, diz. Ela conta ter ouvido a mãe Italira falar, chorando, sobre o medo de morrer durante as videochamadas no hospital de Porto Alegre. Magra e abatida ―ela perdeu 18 quilos na internação― pedia para ser levada para casa. “Minha mãe só morreu porque foi contaminada pelo coronavírus no hospital”, acredita Paola. Naquele momento, o Rio Grande do Sul começava a enfrentar o colapso do sistema de saúde. “Claro que isso não é uma coisa do hospital. É um problema de gestão pública em vários níveis. Foi uma inoperância, uma má administração horrível no país todo”, argumenta Paola. Nesta quinta-feira (29), eurodeputados recomendaram que autoridades que fizeram campanhas de desinformação sejam processadas na Justiça, sem citar diretamente o Brasil. Há meses, um grupo de juristas no país defende que há elementos suficientes para investigar o presidente Jair Bolsonaro, assim como outras autoridades do Governo, por crimes contra a humanidade na pandemia, tanto no Tribunal Penal Internacional como na Justiça brasileira. O Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo e a Conectas Direitos Humanos também publicaram uma pesquisa apontando que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”.

Imersa neste contexto, Paola usou a tristeza evocada pela perda da mãe para tentar fazer alguma coisa. Procurou amigos que atuavam na área de Direitos Humanos e encontrou no advogado Gustavo Bernardes, que já havia atuado na luta durante a campanha contra o HIV, um parceiro para colocar de pé a associação das vítimas. Desde então, ambos têm recebido uma série de mensagens de outras vítimas da pandemia em vários Estados. Já reúnem cerca de 100 membros e voluntários na Avico. Alguns desejam apenas compartilhar a dor enquanto outros pedem apoio para lutar judicialmente por direitos ―seja porque perderam seus empregos após curar-se da doença, por não conseguirem provar suas sequelas para alcançar uma licença pelo INSS ou porque perderam parentes que eram as principais fontes de renda e que agora correm até risco de despejo por não conseguirem pagar o financiamento de casa. “É impossível a gente ficar quieto vendo o que está acontecendo. Transmutei minha tristeza em força para lutar”, diz Paola. “As pessoas estão apavoradas com a inércia do Estado. Chegam a nós destroçadas, mas querendo ajudar.”

Após vencer a covid-19, Gustavo Bernardes se engajou em uma associação de apoio às vítimas da pandemia.
Após vencer a covid-19, Gustavo Bernardes se engajou em uma associação de apoio às vítimas da pandemia. TÂNIA MEINERZ

“Quem tomou atitudes equivocadas precisa ser responsabilizado”

Gustavo Bernardes conta que o primeiro grupo criado foi para apoiar as famílias enlutadas, com voluntários de saúde mental. Eles sabem que o trabalho de cobrança política que estão iniciando agora ―a Avico espera estar com o CNPJ registrado na semana que vem― será longo. No momento, articulam no Congresso uma audiência pública para que as vítimas sejam ouvidas. “Não podemos continuar sendo coadjuvantes nesta história”, diz Gustavo, que em novembro do ano passado passou um mês internado por covid-19, dez dias intubado na UTI. Ele conta que chegou a ser desenganado e até despediu-se da família antes que o tubo para ajudá-lo a respirar deslizasse pela garganta. “Pude ver por dentro o que estava acontecendo. Famílias inteiras sendo internadas sem sobrar ninguém que pudesse levar uma escova de dentes. Foi um choque”, conta. Depois da alta, Gustavo sentia sequelas da doença que não eram identificadas nos exames. Com um cansaço extremo, lapsos de memória e dores no corpo, mal conseguia trabalhar. “Isso me fez ver como as pessoas que adoeceram e precisam trabalhar estão sofrendo e como o Estado não está preparado para acolhê-las. Vamos cobrar as autoridades na Justiça”, diz.

A Avico também pretende ingressar com uma representação criminal contra gestores públicos, incluindo o presidente Bolsonaro. Argumenta que a demora do Governo em negociar vacinas levou à morte muitos brasileiros. “Também queremos responsabilizar quem está defendendo tratamentos ineficazes. Temos recebido denúncias de pessoas que receberam visitas em casa para estimular o kit covid. Estamos orientando que elas peçam por escrito as receitas para tomarmos medidas judiciais”, acrescenta Gustavo. Paola argumenta que muita coisa poderia ter sido feita durante o último ano para minimizar a tragédia, mas lamenta que mesmo os órgãos de controle demoraram para cobrar os gestores. “Vamos continuar deixando as pessoas morrerem sem fazer nada? Depois de um ano, o Ministério Público Federal entrou com ação pra obrigar o Ministério da Saúde a criar uma campanha informativa. Por que só agora?”, questiona. Para ela, parte da população foi “enganada” pelas promessas de prevenção a partir de medicamentos sem eficácia científica e discursos que minimizavam a gravidade da pandemia. “Quem perdeu parentes usando okit covid precisa ter uma reparação”, afirma. “Quem tomou atitudes equivocadas precisa ser responsabilizado para que essa história não siga se repetindo. Os gestores não podem achar que podem fazer tudo”, finaliza Gustavo.

www.brasil.elpais.com / BEATRIZ JUCÁ

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