Há um ano, a pandemia da COVID-19 era oficialmente declarada. Para explicar os motivos de o número de mortes no Brasil continuar crescendo rápido até hoje, a Sputnik Brasil ouviu microbiologistas e epidemiologistas, que apontaram que o país segue sem horizonte de controle da doença.
A pandemia da COVID-19 foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. No dia seguinte, a primeira vítima do SARS-CoV-2 morreria no Brasil. Àquela altura, a previsão mais pessimista do Ministério da Saúde brasileiro apontava 180 mil mortes até o final do ano – o que foi visto no governo como exagero. Ao final de 2020, cerca de 195 mil pessoas estavam mortas pela doença no país.
Apesar do início da vacinação em 2021, o ritmo vagaroso não mitigou a pandemia no Brasil. Diante do colapso dos hospitais, bastaram 68 dias para que mais de 75 mil brasileiros morressem de COVID-19 neste ano. Em 2020, essa marca levou 126 dias para ser alcançada.
Após um ano de pandemia, o Brasil soma 270.917 mortos e é o segundo país com mais mortes por COVID-19. Na quarta-feira (10), com 2.364 mortes em 24 horas, o pior resultado até então, o Brasil se tornou o país com a maior média móvel diária de óbitos no planeta – 1.645.
Diante dos fatores para explicar a tragédia brasileira, a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), atribui ao negacionismo do governo federal de Jair Bolsonaro (sem partido) a principal razão para o quadro devastador.
“Tudo isso é resultado de uma política negacionista que vem, infelizmente, do governo federal”, salienta Pasternak, em entrevista à Sputnik Brasil, acrescentando que houve complacência do Ministério da Saúde para com essa postura. O atual ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, é investigado por negligência no colapso de hospitais em Manaus.
Pasternak lista uma série de ações do governo Bolsonaro que exemplificam uma postura negacionista, como negar a gravidade da pandemia, a necessidade do isolamento, a necessidade do uso de máscaras, incitar aglomerações, promover curas milagrosas sem comprovação e difamar as vacinas.
“O que mais contribuiu para o fracasso na contenção da pandemia no Brasil foi o negacionismo. O negacionismo que veio diretamente do governo federal, endossado pelo Ministério da Saúde”, afirma Pasternak.
Da mesma forma pensa a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que aponta que as políticas necessárias para a contenção da doença no país foram totalmente negligenciadas.
“Acredito que o negacionismo é a causa, o eixo central de todos os erros que aconteceram – o negacionismo junto com a incompetência. O próprio fato de negar a ciência já demonstra a qualidade técnica das pessoas que estão como as autoridades no país neste momento”, afirma a epidemiologista em entrevista à Sputnik Brasil.
‘Nós somos hoje um país que é visto com medo pelo resto do mundo’
Recentemente, após a descoberta de variantes brasileiras do SARS-CoV-2, o país viu dezenas de nações proibindo viajantes que passassem pelo território brasileiro, isolando o Brasil do mundo com medo da doença sem controle.
Apesar de não ter o maior número de mortes na pandemia, o Brasil foi considerado em janeiro deste ano como o país com a pior gestão da crise sanitária mundial. Segundo dados do Instituto Lowy, um think tank da Austrália, o Brasil teve o desempenho mais fraco dentre 100 países analisados, levando em conta critérios como mortes, casos confirmados e capacidade de detecção da doença.
“O Brasil é classificado hoje como o pior país do mundo em desempenho na contenção da pandemia. Nós somos hoje um país que é visto com medo pelo resto do mundo”, afirma a microbiologista Natália Pasternak.
A professora da UFES, Ethel Maciel, também cita a pesquisa para mostrar o desempenho ruim do Brasil no combate à pandemia e lembra que, à época do estudo, Bolsonaro tinha companhia no continente em relação ao negacionismo. Hoje, o brasileiro posa sozinho.
“A região das Américas é uma das mais afetadas, mas não é à toa que naquele momento os dois líderes negacionistas estavam no poder [Bolsonaro e o ex-presidente dos EUA, Donald Trump]”, aponta Maciel. Os EUA ficaram em 94º no ranking.
A cientista da UFES ressalta, porém, que atualmente os EUA têm em curso uma campanha de vacinação e uma coordenação nacional científica para conter a pandemia e por isso têm visto o avanço da doença perder fôlego, diferente do Brasil. É o que lembra também a microbiologista Paula Martins, que reforça a diferença que o planejamento da vacinação fez nos EUA, o país mais impactado pela pandemia até agora.
“A gente passou a média móvel de mortes dos EUA. E por que isso? Eles [os EUA] têm a população maior [cerca de 328 milhões contra 211 milhões no Brasil], estavam com um índice de morte diária de pessoas elevadíssimo. E o que é isso? É a vacina. E a gente não se planejou para ter a vacinação em massa, para comprar a vacina, ter a vacina. O sistema de vacinação a gente tem e é muito eficiente. O SUS é bem estruturado para isso”, afirma Martins em entrevista à Sputnik Brasil.
Conforme dados do site Our World in Data, os EUA, que têm 529 mil mortes por COVID-19, são hoje o país que mais vacinou em números absolutos, chegando a quase 94 milhões de pessoas inoculadas com pelo menos uma dose de vacina contra o novo coronavírus.
“O Brasil conduziu muito mal e continua conduzindo muito mal, com a performance já analisada, inclusive, por institutos de pesquisa, como pior país. Porque agora nós estamos sozinhos nesse negacionismo, o que vai isolar o país e vai colocar o Brasil em uma posição pior ainda frente à comunidade internacional”, avalia a epidemiologista Ethel Maciel.
Sem governo federal, estados e municípios ainda não fazem o necessário
Com a lacuna deixada na coordenação da pandemia, governos de estados e municípios ganharam protagonismo no enfrentamento à COVID-19 ao longo da crise sanitária. Foram os governadores os primeiros a fechar o comércio e as escolas, e foi também um governador quem garantiu as primeiras doses de vacinas contra o novo coronavírus no Brasil – no caso, João Doria (PSDB), de São Paulo, que negociou a vacina chinesa CoronaVac por meio do Instituto Butantan.
Diante da contínua oposição do governo federal e das pressões políticas, as medidas restritivas foram afrouxadas ao longo da pandemia e só com a recente disparada do vírus voltaram a ser implementadas. Na quarta-feira (10), 21 governadores assinaram um pacto nacional pelo controle da pandemia, que pela primeira vez ameaça gerar um colapso de todo o sistema de saúde do país.
Para Ethel Maciel, no Brasil, as atuais medidas adotadas em estados e municípios não são suficientes para conter a pandemia. Ainda evitando o lockdown, nas últimas semanas diversos estados adotaram medidas tidas como de meio-termo, tais como toque de recolher e fechamento de atividades não essenciais, mas a doença segue avançando.
“[Essas medidas] são insuficientes porque estamos com uma vacinação muito lenta. As medidas de mitigação, as medidas não farmacológicas, estão sendo adotadas de forma ainda muito tímida”, avalia a professora Ethel Maciel.
A opinião é compartilhada também pela microbiologista Paula Martins, que ressalta que o Brasil não fez em nenhum momento um lockdown sério
“Talvez a gente devesse ter tomado medidas um pouco mais drásticas, no início da pandemia, para que não se chegasse a esse ponto, inclusive, de ter as novas variantes, porque o aparecimento das variantes é uma coisa natural, esperada, mas quanto mais a pandemia evolui, maior a chance de a gente ter essas variantes perigosas”, afirma Martins.
Já Ethel Maciel, além de criticar as medidas adotadas, também classifica a velocidade da vacinação no Brasil como “pífia”. Por ora, o Brasil não conseguiu vacinar sequer o grupo prioritário – cerca de 70 milhões de pessoas, segundo Maciel. Desde o início da vacinação, em 17 de janeiro, apenas 8,3 milhões de brasileiros receberam pelo menos a primeira dose de uma vacina, conforme apontam dados do consórcio dos veículos de imprensa.
Por outro lado, as medidas de restrições, mesmo quando adotadas, também enfrentam dificuldade na adesão da população, o que Maciel atribui à politização ao longo da pandemia. A situação foi ainda reforçada por escândalos de corrupção ligados à compra de respiradores, como no Rio de Janeiro, onde o governador Wilson Witzel (PSC) foi afastado do cargo. Além disso, a desigualdade econômica no país dificulta ainda mais a realização plena das quarentenas, exigindo medidas como auxílios financeiros às famílias.
“No momento, nem nós, internamente, temos confiança no governo, nem a comunidade internacional. Estamos aí estampando as principais capas de jornais internacionais, nas quais o Brasil agora representa, de fato, a possibilidade de emergência de novas variantes. Uma ameaça global”, lamenta a epidemiologista Ethel Maciel.
Brasil não tem horizonte de fim da pandemia
A microbiologista Natalia Pasternak ressalta que, com a ausência do governo federal, resta depositar esperanças de que estados e municípios ajam em conjunto para impedir o avanço das mortes. Para ela, ainda é possível reverter o quadro.
“O Brasil é visto hoje como, na sua incompetência em conter a pandemia, um risco sanitário mundial. Vergonha maior do que essa, acho que a gente nunca passou, nem no 7×1. Reverter esse quadro é possível, mas depende de vontade política que não parece existir nesse governo”, aponta a cientista
Segundo Pasternak, apenas depois que uma coordenação nacional tomar forma concreta e com medidas firmes de restrição – mesmo sem o apoio de Brasília – é que será possível fazer previsões sobre o fim da pandemia no Brasil.
“Então, vai caber ao Congresso, ao STF, a governadores e prefeitos, que façam impor as medidas de restrição, que façam acordos para a compra de vacinas, para que o Brasil não se transforme em um pária do mundo”, afirma Pasternak.
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