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/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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O gênero feminino na linha de frente: são elas que combatem diariamente a Covid-19

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“Ninguém sabia de nada, era tudo novo. Confesso que me desesperei. Tentei lidar, de todas as formas, com o medo, para continuar trabalhando”.   

O relato da técnica de enfermagem Márcia de Assis, de 55 anos, retrata um sentimento compartilhado por milhares de profissionais de saúde que, de um dia para o outro, tornaram-se peças principais no combate a um vírus letal e, até então, desconhecido.

Cuidar de pacientes infectados por uma doença respiratória para a qual não havia protocolos criados, ministrar medicamentos em meio a um mar de incertezas, enfrentar colapsos do sistema de saúde, uma sobrecarga de trabalho com risco iminente de contaminação e notificar familiares sobre óbitos com uma frequência inédita.

Essa é a rotina vivida há mais de um ano pela tão citada linha de frente do combate ao coronavírus. Mas, ainda que a frase tenha sido muito falada e ouvida, não deixa claro um marcador social importante: a maioria dos profissionais que estão em contato direto com os pacientes da covid-19 são do gênero feminino.

A maior categoria da área da saúde, a enfermagem, é composta por 85% de mulheres. Os dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) mostram que são elas, as enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem, principalmente, que protagonizam o enfrentamento ao vírus cara a cara.

“A maioria dos nossos pacientes estão intubados. Damos banho, controle de 2h em 2h, medicação o tempo todo, mudança de decúbito porque ficam acamados. Esse contato que temos com o paciente é direto, nas 12 horas de trabalho”, conta Márcia de Assis, técnica de enfermagem da UTI-Covid do Hospital das Clínicas da Unicamp.

“É uma sobrecarga absurda. Para entrar em um quarto, tem que se paramentar inteirinha como astronauta”, completa.

Para poder entrar em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), ela leva de cinco a dez minutos com os preparativos de segurança.

“Se você sair do quarto e uma bomba ou outro aparelho apitar, tem que paramentar inteirinha de novo. Não estávamos acostumados com toda aquela paramentação, com a máscara N95 que é difícil de respirar. É realmente muito desgastante, fisicamente e emocionalmente”.

O sufoco vivido no início da pandemia se apaziguou conforme mais informações sobre o vírus chegaram e consolidaram protocolos de prevenção e atendimento.

Mãe de uma criança excepcional, Assis afirma que seu principal medo, sentido também pelas outras profissionais, é o de levar a covid-19 para dentro de casa e contaminar familiares. Um contexto que nunca havia imaginado enfrentar ao longo de seus 27 anos na profissão.

Se desdobrando para atender todas as demandas, em nível profissional e pessoal, ela explica que a solidariedade é essencial neste momento de crise sanitária.

“São muitas mulheres que enfrentam o medo, deixam os filhos, a família em casa, e cuidam de pacientes, de pessoas que elas nem conhecem”, conta.

“O que o vírus me ensinou foi proteger também o meu colega de trabalho porque se eu não protegesse, poderia contaminar a mim e a minha família. O cuidar do outro é muito importante”.

A pandemia do novo coronavírus também marcou a trajetória de Mônica Calazans, a primeira pessoa vacinada contra a covid-19 no Brasil.

Enfermeira do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, ela recebeu a Coronavac, produzida pelo Instituto Butatan, em 17 de janeiro, assim que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou o uso emergencial do imunizante.

Mulher, negra, diabética e hipertensa, a enfermeira com décadas de atuação se tornou manchete dos principais jornais do país ao pedir que a população não tivesse medo de receber a vacina e confiasse na ciência.

“Me sinto extremamente orgulhosa porque minha categoria foi reconhecida. É uma representatividade, mas o mais importante é que sou brasileira, luto pela ciência e queria muito que isso [a pandemia] acabasse. Essa é a representatividade que fala mais alto nesse momento”, declara Mônica, de 54 anos.

A profissional exalta a batalha das mulheres da enfermagem. Muitas, assim como ela, que também trabalha na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de São Mateus, conciliam dois empregos e ainda lidam com as tarefas domésticas.

“É uma correria. Doze horas de plantão nos dois lugares. Na linha de frente, a mulherada toca o terror, trabalhamos incessantemente”, diz a enfermeira.

“Estamos nos desdobrando. A maioria tem dois empregos. Não é nem jornada dupla, é jornada tripla. Além dos dois empregos, tem a casa, marido, filho, cuida dos pais”.

Calazans afirma que a pandemia também lhe reforçou ensinamentos e explicitou como a humanização do atendimento é essencial em meio à pandemia.

“A humanização, a solidariedade e o acolhimento. O paciente quando te procura com sintoma de covid ou com covid positivo, vem buscar apoio. O acolhimento. E é isso que temos que dar. Essa humanização ficou mais aguçada em mim.”

Alvo da contaminação

Os profissionais de saúde estão no grupo prioritário para a imunização contra a covid-19, justamente por serem trabalhadores essencias e atuarem em ambientes de alto risco.

De acordo com o boletim epidemiológico nº44, publicado pelo Ministério da Saúde no fim de 2020, da primeira à última semana epidemiológica da pandemia no ano passado, 442.285 casos de síndrome gripal por covid-19 foram confirmados entre os profissionais de saúde.

Cerca de 148 mil dessas infecções se deram entre e técnicos e auxiliares de enfermagem, 33,5% do total.

Mais de 67 mil enfermeiros foram contaminados (15,2%) e 48 mil diagnósticos positivos entre médicos foram registrados (11%).

Cerca de 22 mil agentes comunitários de saúde também testaram positivo (5,1%) e mais de 17 mil recepcionistas de unidades de saúde foram infectados.

As técnicas e auxiliares de enfermagem também são maioria entre os pacientes que desenvolveram a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).

A categoria se destaca, novamente, como a mais vitimada pelo vírus entre os 452 óbitos registrados entre os profissionais de saúde até a última semana do ano passado, correspondendo a 33,3% das mortes.

Mais da metade (53,8%) dos profissionais de saúde que faleceram em decorrência da doença respiratória, considerando todas as categorias, eram do gênero feminino.

Diante da subnotificação dos casos de infecção do vírus em toda a população, o Cofen passou a receber e sistematizar as notificações de óbitos e contaminações, disponibilizando os dados no Observatório da Enfermagem.

As informações do Conselho apontam para 49.075 casos reportados apenas entre profissionais da categoria e um total de 648 óbitos.

Vale destacar que a notificação ao Cofen não é obrigatória, ou seja, é possível que o número seja ainda maior.

Dessas 648 vítimas fatais, 434 eram mulheres, 66,9% do total. Entre as infecções, elas correspondem a 85% dos casos.

São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro são as unidades da federação onde os profissionais da enfermagem mais adoeceram, conforme monitoramento do Cofen.

Precarização 

Alguns elementos justificam o fato das auxiliares e técnicas de enfermagem serem as mais infectadas pela covid.

Elas são maioria em número e também ocupam os postos mais precarizados, com remuneração mais baixa.

Somado a esses fatores, há ainda a defasagem na disponibilização dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), algo que se deu de forma ampla no início da pandemia, expondo tais trabalhadoras ainda mais.

Segundo Alva Helena de Almeida, enfermeira aposentada, mestre em Saúde Pública e doutora em Ciências, o coronavírus evidenciou uma precarização crônica que vitima os profissionais da enfermagem.

Isso porque os serviços de saúde operam com o quadro da enfermagem subdimensionado, com uma “sobrecarga naturalizada”. Ela explica ainda que o setor de saúde vem mostrando uma feminilização da força de trabalho nas últimas décadas.

“São mulheres na recepção, nos laboratórios, nos agentes de raio-x, agentes comunitárias de saúde, enfermagem, maioria absoluta de mulheres. A estrutura de ocupação dos serviços de saúde se apoia em uma certa lógica de exploração da força de trabalho feminina”, detalha Almeida.

“Se não fosse o salário insuficiente, a maioria absoluta das mulheres não seria levada a  buscar o segundo vínculo. Se as condições não fossem tão ruins, não chegaríamos a esse número de afastamento, adoecimento e mortes dessas profissionais”, ressalta.

“Veja que nesse processo da pandemia, pouca coisa mudou. Poucos são os locais, municípios, que estão contratando enfermeiras. O quadro já era deficitário, é um momento sofrido, marca muito”.

Racismo estrutural

Pesquisa realizada pelo Cofen em 2017 trouxe à tona a urgência do recorte racial quando se trata da análise de condições do trabalho na enfermagem.

Entre mais de 1,8 milhão de profissionais consultados, cerca de 53% do total de profissionais eram negros.

Quando o quantitativo é confrontado também com a raça e escolaridade, encontra-se o seguinte cenário: 57,4% são trabalhadoras negras de nível médio, ou seja, que atuam como auxiliar ou técnica de enfermagem, sob o comando de 57,9% de enfermeiras brancas, com ensino superior.

Logo, se a maior parte das infecções pela covid-19 se dá entre os cargos de nível médio, são as mulheres negras, novamente, as mais atingidas.

“Temos uma divisão hierárquica, de classe, de raça e de funções dentro da área da enfermagem. Essa racialização se mantém há quase 100 anos”, critica Almeida, também integrante da Articulação Nacional de Enfermagem Negra (Anem).

A especialista explica que, antes do processo de profissionalização da enfermagem, o cuidado à saúde era desenvolvido exclusivamente por mulheres negras, escravizadas e indígenas.

Depois, quando foi criada a graduação no início do século, essas mulheres não tiveram acesso à educação, ficando à margem da profissão da qual foram pioneiras. Uma estratificação que se reverbera até os dias atuais.

“Estamos falando de uma parcela de mulheres que mora na periferia, que usa o transporte público, que está em territórios com mais precariedade em termos de serviço de saúde. O baixo salário no setor da saúde é um desrespeito”, destaca.

“Precisamos mexer, transformar, mudar. Esse é o momento. Seja pela dor ou pelos aplausos, o valor da nossa atuação profissional deve ser reconhecido”.

“Do acolhimento ao cuidado do corpo pós morte, tudo que você imaginar, passa pelas mãos da enfermagem. Não existe atenção à saúde sem enfermagem”, completa, enfaticamente.

Nos hospitais e nas ruas

O gênero feminino não se faz presente no combate ao coronavírus somente nos corredores das unidades de saúde. Mesmo com a proliferação do vírus, milhares de agentes comunitárias continuaram indo para as ruas auxiliar a população.

É o caso de Ana Regina Barbosa, que atua como agente de promoção e prevenção da saúde nos bairros da periferia de Fortaleza.

Ana acompanhava grupos com comorbidades crônicas antes mesmo da pandemia. Agora, as visitas são feitas com 1,5 metro de distância do portão da casa dos pacientes.

Mas, ainda que haja restrições, ela sabe da importância de manter esse contato próximo, conversar e dar orientações de prevenção para populações carentes.

“O nosso trabalho é essencial nesse momento. O acompanhamento dessas mulheres nos territórios vai para além da ação enquanto educadora e profissional de saúde”, exemplifica Barbosa.

“No território, encontramos mulheres em situação de violência, por exemplo. Então, tenho papel também de orientar, dizer a ela onde buscar ajuda agora na pandemia”.

“É um trabalho que dá dignidade para pessoas que vivem em situação muito difícil socioeconomicamente. Meu papel, enquanto profissional, ele é fundamental. É isso que me motiva”.

Reconhecimento 

Nas últimas semanas, o Brasil superou recordes consecutivos de números de óbitos diários e de novos casos, chegando ao pior momento da pandemia. Um contexto em que o trabalho das profissionais de saúde se faz ainda mais imprescindível, assim como o reconhecimento ao seu trabalho e dedicação.

“Quando os pacientes saem de alta, as famílias fazem cartas, levam bombom. Mas o importante pra mim é o paciente sair e ficar bem em casa. De uma forma, ou de outra, estou sendo agraciada”, ressalta Mônica Calazans.

Ela considera que é o amor à profissão que fortalece as profissionais nesse momento, assim como os bons resultados do trabalho bem feito.  “Só de eu saber, quando chego no plantão, que o paciente foi embora, dou graças a Deus. Isso é a melhor resposta que eu tenho, de todo o trabalho e de todo o empenho durante a pandemia”.

A enfermeira deixa ainda um recado de esperança para as demais profissionais, ainda que os tempos sejam difíceis:

“Temos que continuar tendo fé, esperança, que essa avalanche vai passar. Sei que nossas companheiras estão cansadas, mas não vamos abandonar o barco. Tudo isso vai passar uma hora”, finaliza Calazans.

www.cut.org.br / Lu Sudré /Brasil de Fato

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