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/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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O horror da fome ronda a família de Marlúcia diante do impasse sobre o auxílio emergencial

Maria Marlúcia de Souza e um dos seus sete filhos, na casa onde eles moram em Fortaleza.MATEUS DANTAS
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Relato de uma família de recicladoras de Fortaleza é exemplo da incerteza de milhões de brasileiros diante das indefinições sobre os rumos dos programas sociais do Governo.

Maria Marlúcia de Souza tem 37 anos, sete filhos e um futuro nebuloso pela frente. Nos últimos meses, em meio à crise intensa causada pelo coronavírus, ela viveu um alento: o auxílio emergencial colocou carne na mesa da família. No entanto, enquanto o Governo segue mergulhado nas incertezas que rondam o futuro do novo Bolsa Família, ela tem outra preocupação: o medo da fome. “Ô meu Deus, como é que vai ser a nossa vida no ano que vem? Logo agora que tava melhorando”, lamenta, enquanto lava roupa na casa onde mora com mais oito pessoas, na periferia de Fortaleza, no Ceará.

Marlúcia é um exemplo da angústia vivida por milhões de brasileiros diante do fim previsto dos pagamentos do benefício, em dezembro. De acordo com a pesquisa Pnad Covid do IBGE, o auxílio emergencial chega a 29,4 milhões de lares – o equivalente a 43% dos domicílios dos país. Nos Estados mais carentes, no Norte e Nordeste, o percentual é ainda maior, ultrapassando os 45%.

Marlúcia engravidou pela primeira vez aos 14 anos, depois de se apaixonar por um rapaz do bairro. Cursava o sexto ano do ensino fundamental quando deixou a escola para cuidar da criança. Nunca voltou. Começou a trabalhar com a mãe, Maria Rosimar de Souza, rodando as ruas e as sucatas da capital cearense para catar e vender objetos recicláveis. Nos anos seguintes, teve outros seis filhos e um câncer no útero que ainda lhe obriga a fazer revisões frequentes em hospitais públicos. Marlúcia nunca casou. Acolhida pela mãe, ela se dedicou a trabalhar na reciclagem e na venda de lanches que fazia em casa e saía vendendo pelas ruas. Os dois filhos mais velhos saíram de casa e agora ela mora com a mãe e seis filhos ― se contar também o sobrinho que adotou, quando seu irmão foi assassinado.

Antes da pandemia, nove pessoas viviam na casa de Rosimar ―um imóvel muito simples deixado de herança pelo marido, com dois pequenos quartos, um vão na entrada, um banheiro improvisado debaixo da escada e uma cozinha. A família inteira se mantinha com uma renda mensal que raramente excedia 700 reais, juntando o Bolsa Família das crianças e o dinheiro da reciclagem e da venda de lanches. As crianças estavam todas na escola (com exceção da caçula, que frequenta uma creche pública e ainda não está incluída no Bolsa Família), e parte da alimentação delas vinha da merenda escolar.

Quando o isolamento social foi decretado pelo Governo do Ceará para proteger a população do novo coronavírus, o medo da fome começou a rondar a família. “A gente caçava recurso e não tinha de onde tirar. Criança quando chega a hora de comer, quer a comida. Chora porque não entende. Não sabia o que a gente ia fazer”, conta Rosimar. A renda garantida da família naquele momento era cerca de 300 reais do Bolsa Família. E elas já viviam uma situação de escassez de comida ― uma realidade vivida por pelo menos 10 milhões de brasileiros, conforme Pesquisa do Orçamento das Famílias do IBGE realizada entre 2017 e 2018.

Com a pandemia, Marlúcia precisou deixar de vender lanches porque precisava se proteger diante da sua condição de saúde pelo câncer e também tinha que cuidar das crianças em tempo integral, já que as aulas presenciais haviam sido suspensas. A mãe dela até tentou segurar o trabalho de recicladora, mas, com perfil do grupo de risco por ter 73 anos, o medo do vírus a freou. “Eu tinha muito medo de pegar essa doença e morrer. Se isso acontecesse, o que ia ser desse povo todo que mora comigo? Aqui tudo quem resolve sou eu”, diz.

Marlúcia de Souza precisou deixar o trabalho na reciclagem durante a pandemia.
Marlúcia de Souza precisou deixar o trabalho na reciclagem durante a pandemia.MATEUS DANTAS

Foi quando os Governos do Brasil e do Ceará começaram a desenhar as políticas emergenciais para auxiliar famílias mais pobres durante uma crise sanitária e econômica sem precedentes. A cesta básica garantida aos estudantes de escola pública pelo Estado foi um alento. Já não precisavam comprar o mesmo volume de arroz e feijão. E o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Bolsonaro trouxe uma qualidade de vida melhor do que a de antes. Graças aos 1.200 reais mensais, Marlúcia e Rosimar puderam se afastar por vários meses da reciclagem. Ainda assim, aumentaram a compra de frutas para as crianças e, toda semana, havia o dinheiro separado para comprar a “mistura” ― como chamam o complemento de proteína, como carnes e frango.

Se a situação melhorou em plena crise econômica, o cenário que se avizinha tem trazido de volta o “horror” da fome. O Governo prometeu prorrogar o auxílio emergencial até o fim do ano, mas pela metade do valor. E ainda trabalha para definir o futuro do Bolsa Família. O presidente Jair Bolsonaro quer reformular o programa criado pelo PT, mas tem vivido um impasse com a sua equipe econômica. O Ministério da Economia chegou a considerar abrir recursos para o novo programa (que se chamaria Renda Brasil) com o fim do abono salarial (espécie de 14º salário pago pelo Governo a trabalhadores formais de baixa renda) e o congelamento provisório do valor do salário mínimo).

As medidas, porém, soaram bastante impopulares, e Bolsonaro declarou que o Bolsa Família seguiria até o fim do seu mandato. Mas na semana passada, um novo anúncio foi feito: o Governo travaria o pagamento de precatórios e retomaria a ideia de usar parte dos recursos do Fundeb (fundo para educação básica) para criar um novo programa social, o Renda Cidadã. A proposta causou turbulência no mercado e encontra resistência no Congresso Nacional, que precisa aprová-la para ser implementada. Também já sofreu críticas de membros do Tribunal de Contas da União. O financiamento do Renda Cidadã tem colocado em rota de colisão o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o agora ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. O primeiro teme o excesso de gastos, enquanto Marinho acredita que deve sair de qualquer forma.

Maria Marlúcia de Souza e a mãe, Maria Rosimar de Souza.
 Maria Marlúcia de Souza e a mãe, Maria Rosimar de Souza.MATEUS DANTAS

Enquanto o impasse segue em Brasília, a família de Rosimar e Marlúcia não tem ideia de como será a vida daqui a três meses, quando se encerrará a prorrogação do auxílio emergencial. Com o relaxamento da quarentena em Fortaleza, Rosimar tenta aos poucos voltar para a reciclagem. Marlúcia ainda precisa continuar em casa com as crianças (todas menores) porque as aulas presenciais das escolas públicas ainda não foram retomadas. A próxima parcela do auxílio emergencial já deve vir pela metade e, depois de pagar as contas de energia e água, elas já não sabem se vão conseguir manter a mesma quantidade de comida na mesa. É que o preço de tudo aumentou, como elas comentam, próximas ao portão de casa. “O quilo do arroz já está cinco reais e o litro de óleo, sete. Quando não tiver mais doação de cesta básica, como a gente vai comprar isso pra alimentar nove pessoas?”, questiona Marlúcia. “Tenho medo de voltar a não ter como comprar nem ovo. Antes desse coronavírus, tinha dia que a gente já não conseguia nem comprar ovo pra todo mundo”, emenda Rosimar.

www.brasil.elpais.com/Beatriz Jucá /Fortaleza

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