Sindicato dos Trabalhadores em Postos de Combustíveis da Bahia
/ sexta-feira, novembro 22, 2024
Notícias

Na Bahia, aldeia Pataxó vence batalha contra reintegração de posse

Desde 2013, o povo pataxó pede a revisão dos limites do seu território, de modo a garantir sua reprodução cultural. - Thayara Pataxó
439views

Medida ameaçava de despejo 24 famílias na aldeia Novos Guerreiros, no sul do estado.

Após mais de dez dias de mobilização, foi suspensa, na quarta-feira, 2 de setembro, a decisão liminar que determinava a reintegração de posse contra a aldeia pataxó de Novos Guerreiros, no município de Porto Seguro, sul da Bahia. A medida pedia a retirada de 24 famílias de parte de seu território, em uma área de 401,02m2, em meio à grave crise da pandemia de covid-19.

A decisão expedida no dia 20 de agosto pelo juiz federal Pablo Baldivieso, de Eunápolis, foi questionada por advogados de organizações indígenas e pela Defensoria Pública da União (DPU) na Bahia, por contrariar determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), de 6 de maio de 2020, que suspende todos os processos judiciais de reintegração de posse durante o período da pandemia.

A reintegração beneficiaria proprietários de uma escola de pilotagem, que alegam que a aldeia estaria dentro da zona de contenção da pista de pouso do aeródromo, uma área de segurança. No entanto, Kâhu Pataxó, do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), contesta: “O que a gente entende é que a área de cumprimento de reintegração está desocupada”.

Conforme Samara Pataxó, assessora jurídica do Mupoiba e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a suspensão foi determinada pela desembargadora Daniele Maranhão, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, afirmando que mesmo que a terra indígena não tenha sido ainda homologada, não deixa de ser uma terra indígena e de ter uma ocupação originária e tradicional, o que deve prevalecer. Conforme a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que colaborou com a defesa, a desembargadora afirma, ainda, que as provas apresentadas pelos autores da reintegração têm pouco valor, por não serem documentos públicos.

Conflito
A área em disputa está localizada na Terra Indígena Coroa Vermelha. Kâhu conta que o processo de levantamento para demarcação desse território começou no início da década de 90, recebendo em 1998 uma carta declaratória. Na época, quando da comemoração dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil, o governo realizou outra demarcação, deixando de fora parte do território. “Quando foi pleiteada, a demarcação dessa terra era muito maior”, argumenta Kâhu. Desde 2013 o povo pataxó pede a revisão dos limites, de modo a garantir sua reprodução cultural: “A TI Coroa Vermelha tem mais de 7 mil pessoas numa área de 1492 ha, muito pequena para a população”, relata Kâhu.

Já os proprietários do aeródromo adquiriram o terreno da empresa Góes Cohabita, que foi intimada em 2016, quando entrou com uma ação de reintegração contra a aldeia, a apresentar documentos que comprovassem a propriedade da área, o que, segundo Kâhu, nunca foi feito. “Isso só corrobora o que a gente tem dito, que aquela área toda é indígena e ele deu uma autorização de alguma coisa que não é dele, então aquele empreendimento já está irregular desde a sua concepção”, avalia.

Kâhu informa ainda que as famílias que estavam na zona de segurança do aeródromo foram deslocadas e que o dono pleiteava que a reintegração ocorresse não na área onde é a cabeceira da pista, em que há de fato o risco, e sim que fosse cumprido em outra, onde estão as famílias realocadas. “A gente está vendo que a preocupação do dono não é com relação à segurança, é com relação à área mesmo, uma área que está dentro da área de demarcação, uma área que foi pleiteada muito antes da instalação deste empreendimento lá”, diz. Há a preocupação de que ações como essa atinjam outras famílias, em outras partes do território.

Longos processos
Estudos para demarcação de terras indígenas resultam de várias etapas. A professora Patrícia Navarro, coordenadora do Projeto de Extensão Antropologia dos Povos Indígenas da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), explica que primeiro é feita a identificação e a delimitação das terras, quando atua um antropólogo, trabalhando também com um biólogo e um agrônomo.

O antropólogo, explica Patrícia, “vai às casas, conversa com as pessoas, participa dos rituais, ou seja, ele vê como é a vida dessa comunidade no seu cotidiano”. O objetivo é ver “como se dá a identidade desse povo relacionada com o território”, afirma. “O antropólogo não atesta se é ou não uma terra indígena”, ressalta, “ele vai simplesmente pegar as informações que dizem, por exemplo, até onde vai essa terra indígena e por que os indígenas consideram aquela terra uma terra tradicional”.

Desta fase de delimitação, que é feita pela (Funai), produz-se um primeiro mapa do território, que deve ser publicado nos municípios aos quais as áreas pertencem, para possíveis contestações. Uma segunda fase é realizada pelo Ministério da Justiça, que analisa os estudos e manifestações de terceiros e expede uma portaria que declara que aquela é uma terra indígena. Esta etapa costuma demorar, segundo a pesquisadora, podendo levar anos, ficando ainda mais difícil no atual governo.

A terceira etapa é a demarcação, propriamente. Trata-se da “materialização dos limites no chão”, diz Patrícia. “Você vai aos pontos fisicamente, bota piquetes e demarca: isso aqui é uma terra indígena”, detalha. Por fim, ocorre a homologação e o registro cartorário do imóvel em nome da União, formalizando o documento que dá direito à terra, que é imprescritível e inalienável.

A professora comenta que podem haver conflitos ao longo de todo o processo e que muitas alegações dizem respeito, sobretudo no Nordeste, a que os povos “não são indígenas, porque têm traços negros, porque não andam nus”. E pontua: “Os povos indígenas mudam, assim como a cultura, que naturalmente sofre processos de mudança. O índio que a gente tinha em 1500, quando Cabral chegou aqui, não pode ser o mesmo indígena que a gente vê hoje, ter o mesmo fenótipo e o mesmo hábito cultural, porque ele foi impactado com os efeitos da colonização”.

Direito à terra
Patrícia reforça que quando os indígenas acionam o Estado por seus direitos acabam sofrendo retaliações por parte de fazendeiros ou pequenos proprietários que os acusam de “invadir” terras. “O que absolutamente não é verdade, já que eles estavam ali muito antes de todas aquelas pessoas e eles têm o que a Constituição chama de direitos originários”, afirma. É preciso lembrar que a lei assegura aos indígenas o direito sobre a terra “que tradicionalmente ocupam”.

A relação dos indígenas com a terra guarda sentidos muito específicos. “Se você perguntar a qualquer indígena no mundo inteiro: ‘Qual é seu direito primordial?’, ele vai dizer ‘o direito à terra, eu quero poder viver na minha terra’ ”, afirma a antropóloga. Ela conta que, ao realizar uma pesquisa entre indígenas Tupinambás de Olivença, lhes perguntava: “Por que você é indígena?”, ao que eles respondiam: “É porque eu nasci aqui, meus antepassados estão enterrados aqui, nessa vila”.

A pesquisadora cita uma carta, enviada ao presidente norte-americano Franklin Pierce, no século XIX, por um chefe do povo Seattle, em resposta a um pedido para que vendessem suas terras para o governo. “Essa carta ficou muito famosa, ganhou um tom meio romântico”, narra, “mas traz um sentido muito profundo. Porque ele diz assim, ‘O grande chefe de Washington pede para eu vender minha terra, mas como eu posso vender a minha mãe, como eu posso vender o meu irmão, se eles são parte de mim?’ ”.

A aldeia Novos Guerreiros está em isolamento e havia suspendido rituais devido à pandemia. Mas, durante os dias de mobilização, Kâhu relatou: “retomamos os rituais, nossas danças, nossos cantos para pedir aos nossos encantados, ao nosso criador, para nos dar força nesse momento, pra gente poder fazer essa batalha, essa batalha pelo nosso território, pela nossa vida, sabendo que isso também coloca em risco a nossa saúde”. E declarou: “Por mais que a gente saiba o perigo que as nossas comunidades vivem, o perigo maior é a gente não ter a existência nossa enquanto povo e, portanto, a terra é fundamental”.

www.brasildefato.com.br / Danielle da Gama/ Brasil de Fato | Salvador (BA)

Deixe uma resposta