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/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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Breque dos Apps: direito de resistência na era digital

Mobilização nacional #BrequedosApps realizada no dia 01 de julho – São Paulo (Luca Meola)
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Mobilização nacional #BrequedosApps realizada no dia 01 de julho – São Paulo (Luca Meola)

Em meio a todo esse contexto de demandas da era digital, os trabalhadores de aplicativos protagonizaram um marco histórico na luta por direitos da categoria, com esteio não só na Constituição brasileira, mas também nas diretrizes internacionais de proteção ao trabalho. Potente, o Breque dos APPs se difundiu de ponta a ponta, fortalecendo os laços de solidariedade, as pautas coletivas e o direito de resistência

“Estamos cansados!”. Em tom de protesto, reclamação e denúncia, esta foi a expressão mais utilizada pelos entregadores das plataformas digitais de delivery durante as entrevistas informais concedidas no transcorrer da greve da categoria, deflagrada no dia 1° de julho de 2020, em Brasília.

O cansaço dos trabalhadores de aplicativos, que circulam pelas cidades para fazer suas entregas ao longo de exaustivas jornadas de trabalho, com disponibilidade perpétua e sem qualquer amparo jurídico trabalhista, é característico do “novo proletariado de serviços da era digital” (Antunes, 2018), envolto em uma sociedade de desempenho, “que atua individualizando e isolando” (Byung-Chul Han, 2015, p. 71).

Esta configuração típica da realidade de trabalho da era digital é anunciada com ênfase em seus usos potenciais como “economia do compartilhamento” (sharing economy) ou “economia entre pares” (peer-to-peer), designações, todavia, que mascaram a realidade efetivamente imposta pela uberização do trabalho humano. Evidencia-se aqui o resultado da estruturação de um modelo de exploração em que os trabalhadores de aplicativos, popularizados como “trabalhadores-parceiros” ou “trabalhadores-colaboradores”, deixam de ser considerados subordinados para se tornarem agentes de desempenho em prol dos interesses patronais. Esses trabalhadores, ditos “empresários-de-si-próprios”, são submetidos a uma ambiência competitiva, em que os pares se tornam seus potenciais concorrentes.

Nesse nova lógica de organização do trabalho, o controle da subjetividade laboral é empreendido pela perpetuação do discurso do “autogerente-subordinado” (Abilio, 2019), pelo qual se difunde a concepção de que os trabalhadores de aplicativos são exclusivamente responsáveis pela assunção dos riscos e custos do trabalho/empreendimento, nos moldes de uma relação de trabalho autônoma. Nessa dinâmica, procura-se desarticular os mecanismos de interação social e de resistência coletiva, por meio de uma ideologia que modula não só o imaginário, mas também a própria subjetividade obreira.

No entanto, na realidade, esses trabalhadores recebem da plataforma digital o direito de trabalhar em troca de uma remuneração sobre a qual não podem opinar, a serviço de clientes que não podem escolher, em condições de trabalho que não podem gerenciar. A cooperação perde o sentido solidário de empenho comum e ganha contornos de exploração, mediante o exercício do poder diretivo dos algoritmos, que se espelha na subordinação algorítmica desses trabalhadores.

Nesse contexto, é importante ressaltar que a pequena margem de flexibilidade oferecida aos trabalhadores de aplicativos quanto à escolha dos dias e horários de trabalho, bem como quanto à possibilidade de recusarem algumas demandas, não se mostra suficiente para que eles sejam capazes de autodeterminar as condições e o modo de trabalho, tampouco reduzir o grau de controle exercido pela plataforma sobre o trabalho prestado. Isso fica claro ante a instabilidade das condições contratuais (valor de tarifa quilométrica, distribuição de demanda, restrição de área, risco de descadastramento), que mudam segundo a maior ou menor conformação dos trabalhadores aos interesses da plataforma digital.

A subordinação algorítmica, típica desse modelo de gestão, não se concretiza, portanto, pelas formas tradicionais do exercício do poder diretivo, dependentes de um espaço geograficamente delimitado e de um controle rígido do horário de trabalho. É que o algoritmo se vale de um controle eficientemente difuso, que se espalha através do campo virtual em várias direções.

Nessa linha de raciocínio, é importante que se tenha uma preocupação real para se verificar que os estímulos comportamentais e os direcionamentos dados pelas plataformas no ciberespaço, para além de se apresentarem como uma nova expressão de um modelo de governança à distância que controla multidões, podem também se apresentar como dinâmicas típicas do poder empregatício, sobretudo se consideradas as facetas do poder diretivo e fiscalizatório.

São muitos os desafios para se romper com a manutenção dos privilégios e do sistema de exploração no trabalho digital. Para além de um processo de conscientização coletiva, é preciso atentar para o papel regulatório institucional em suas diversas frentes de atuação.

A omissão institucional em relação à categoria dos trabalhadores de aplicativos, ao mesmo tempo que os coloca à margem das garantias jurídicas de trabalho digno, paradoxalmente, também os aproxima, evidenciando a semelhança de condições de vida partilhadas por um trabalho intensamente precarizado. Esse contexto tem propiciado a organização coletiva em torno de um interesse comum: a luta por direitos e por reconhecimento. Inseridos e ambientados ao mundo virtual, tais trabalhadores passaram a testar novos espaços e dinâmicas de agremiação coletiva, usando das plataformas digitais para se conectarem e assim exercerem o direito de resistência (Viana, 1996).

O Breque dos Apps marca um momento histórico na luta por melhores condições de trabalho da categoria. A manifestação que engajou trabalhadores de diversos países da América Latina (Redação Opera Mundi, 2020) deflagrou um movimento espontâneo que evidencia não só a força da articulação coletiva baseada na liberdade de associação e de cooperação entre pessoas que partilham de semelhantes condições de trabalho, como também desafia o poder político das organizações formais. Esse cenário se mostrou claro nos dias subsequentes à mobilização do dia 1° de julho de 2020, quando o Sindimoto, de São Paulo, começou a se distanciar do movimento orgânico heterogêneo das ruas, tendo realizado paralisação apartada, realizada por esse sindicato no dia 14/07/2020.

Não obstante as percepções embrionárias de disputa por poder, o movimento como um todo ainda possui uma agenda de reivindicações comum, com uma pauta emergencial impulsionada pelas condições de vulnerabilidade e precarização do trabalho da categoria.

O primeiro item da pauta é a busca por majoração do valor da remuneração, designada informalmente de “frete”. Pleiteia-se o aumento da tarifa quilométrica e do valor mínimo pago ao trabalhador por entrega realizada. A essa medida, soma-se o pedido de reajuste anual dessas parcelas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Os trabalhadores também requerem amparo social em decorrência dos riscos que envolvem a profissão, popularmente chamada de “profissão perigo”, considerando, dentre outros aspectos, a vulnerabilidade a acidentes no trânsito. Segundo dados do Ministério da Saúde, oito em cada dez atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), por acidente de transporte, envolvem motociclistas (Cerilo, 2019).

A categoria também demanda que as empresas concedam seguro de vida, seguro contra roubo e acidente, que forneçam equipamentos de proteção individual (EPI) e suporte financeiro em caso de afastamento por doença, especialmente em atenção à maior exposição do trabalhadores de aplicativos ao risco de contágio por Covid-19 (“auxílio pandemia”).

Seguindo a pauta de reivindicações, os entregadores também reclamam a efetiva “flexibilidade pró-trabalhador”, que é anunciada como uma vantagem agregada ao trabalho prestado. Para tanto, requerem o fim dos bloqueios injustos e injustificados como forma de sancionamento e do sistema de pontuação e restrição dos locais de serviço.

Ainda no rol de demandas emergenciais, consta no pleito da categoria a criação de pontos de apoio para descanso, alimentação e realização de necessidades fisiológicas, pauta que se coaduna com a dimensão socioambiental do direito fundamental ao trabalho digno (Delgado,2015; Dias, 2017).

Embora algumas das empresas de aplicativos já estejam concedendo parte das medidas reclamadas, é importante observar que o pleito da categoria é pelo reconhecimento de direitos, e não por discricionariedades patronais.

A diferença entre o direito institucionalmente reconhecido e a discricionariedade, fruto de uma benesse empresarial, reverbera não apenas na segurança jurídica dos trabalhadores de aplicativos quanto à perspectiva contínua de fruição de direitos, sem o temor de mudanças ao alvedrio patronal, mas também no reconhecimento e integração constitucional, na linha teórica de Delgado (2015, p. 25).

Em que pese as plataformas digitais alegarem oferecer apenas a tecnologia que conecta prestadores e tomadores de serviços, o trabalho humano é fundamental e inerente ao negócio empreendido. Logo, não se pode negar aos trabalhadores envolvidos o respeito às condições essencialmente humanas para a execução do trabalho prestado. As condições socioambientais de trabalho (meio ambiente ecologicamente equilibrado, saúde e segurança) devem ser, portanto, obrigatórias para a composição de qualquer modelo de negócio explorado por meio das plataformas digitais.

Todo esse conjunto de demandas emergenciais e a notoriedade que o movimento alcançou no cenário nacional e internacional já tem propiciado algumas respostas políticas. No Brasil, em 08 de julho de 2020, as lideranças nacionais do movimento reuniram-se com o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, para apresentar suas reivindicações. Já no dia 10 de julho de 2020, foi protocolado o Projeto de Lei n° 3.748, com vista à regulação do “regime de trabalho sob demanda”. Proposta idêntica foi apresentada no Senado Federal, nos termos do Projeto de Lei n° 3.754, de 13 de julho de 2020.

Note-se que os Projetos de Lei (PL) em referência não estão no todo alinhados com a lógica constitucional de proteção ao trabalho humano, sobretudo se considerada uma perspectiva civilizatória e progressista. Apenas respondem pontualmente às demandas emergenciais apresentadas, instituindo alguns direitos em favor dos trabalhadores de aplicativos, atualmente colocados às margens de um sistema jurídico de proteção ao trabalho. Nesse sentido, acomodam-se a um Direito do Trabalho de emergência, “que é tão-só o que se tem feito até agora, sem qualquer resultado positivo para a questão do emprego; muito menos para dar conta de uma norma que não tem valor em si; mas um tratamento de choque para manter vivo o homem” (Coutinho, 1998, p. 103).

Na linha de recrudescimento da precarização trabalhista, é possível destacar trechos da justificativa do PL 3.748/2020 que contradizem a Constituição, se considerada a dimensão socioambiental do direito fundamental ao trabalho digno. A justificativa do projeto, por exemplo, diz da “preocupação de não estabelecer regras impositivas quanto a um período obrigatório de inatividade por parte do trabalhador”, brecha que pode causar a mercantilização do tempo de vida, negligenciando o fato de que não convém à sociedade de performance o efetivo descanso obreiro.

Nesse contexto, convém destacar que o fundamento constitucional sobre o qual deve se pautar a política de trabalho na ordem jurídica nacional, é sintetizado nos conceitos de trabalho digno ou  trabalho decente, este último segundo a nomenclatura adotada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é membro signatário.

O trabalho decente representa a conjugação dos matizes sociais, econômicos e humanitários que consolidam o conjunto de orientações e diretrizes traçadas pela OIT, no âmbito da governança internacional, e que firmam, como marco programático, o compromisso com a dignidade humana e a promoção de justiça social. Os objetivos consagrados em torno desse conceito-ação passam “a constituir o arquétipo de avaliação da adequação de políticas públicas nacionais e internacionais, subjugando a esse preceito não só as políticas de trabalho, mas também as medidas de caráter econômico e financeiro” (Carvalho, 2019, p. 138).

Assim, pleitos que objetivam garantir a todos “o bem-estar material e o desenvolvimento espiritual dentro da liberdade e da dignidade, da tranquilidade econômica e com as mesmas possibilidades”, bem como “assegurar uma proteção adequada da vida e da saúde dos trabalhadores em todas as suas ocupações”, conforme enuncia a Declaração de Filadélfia, retratam a invocação do compromisso político com a realização do trabalho digno ou decente, nos termos preconizados pela Constituição brasileira e pela OIT, desde os idos da sua constituição em 1919.

Em meio a todo esse contexto de demandas da era digital, os trabalhadores de aplicativos protagonizaram um marco histórico na luta por direitos da categoria, com esteio não só na Constituição brasileira, mas também nas diretrizes internacionais de proteção ao trabalho. Cansados, mas ainda assim mobilizados, deflagraram um movimento nacional contra o novo modelo de exploração do trabalho do século XXI, denunciando o estado de vulnerabilidade e de precarização dos trabalhados em plataformas digitais. Potente, o Breque dos APPs se difundiu de ponta a ponta, fortalecendo os laços de solidariedade, as pautas coletivas e o direito de resistência.

A mobilização dos entregadores de aplicativo é símbolo, portanto, da base democrática sobre a qual deve se erigir os novos arranjos de relações trabalhistas em um mundo digital, para o qual as construções jurídicas devem exercer papel fundamental, sejam como vocalizadoras de demandas, sejam como instrumentos de afirmação civilizatória de direitos.

Gabriela Neves Delgado é professora Associada de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora coordenadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq). Advogada.

Bruna V. de Carvalho é auditora fiscal do Trabalho. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABILIO, L. C. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p. 41–51, nov. 2019.

BYUNG-CHUL, H. Sociedade do cansaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

CARVALHO, B. V. DE. Cooperação Internacional e o mundo do trabalho: o papel globalizante da OIT no impulsionamento de políticas de proteção social. In: O centenário da Organização Internacional do Trabalho no Brasil: 1919-2019. Belo Horizonte: Virtualis, 2019. p. 127–158.

CERILO, J. Motociclistas são os que mais se acidentam no trânsito. Disponível em: <https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46168-motociclistas-sao-os-que-mais-se-acidentam-no-transito>. Acesso em: 2 jul. 2020.

COUTINHO, A. R. Direito do trabalho de emergência. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 30, n. 0, 1998.

DELGADO, G. N. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2015.

REDAÇÃO OPERA MUNDI. Entregadores latino-americanos se juntam à paralisação dos brasileiros nesta quarta. Disponível em: <https://operamundi.uol.com.br/permalink/65459>. Acesso em: 20 jul. 2020.

WORDSENSE.EU DICTIONARY. Campsare. [s.l: s.n.]. Disponível em: <http://www.wordsense.eu/campsare/>. Acesso em: 23 jul. 2020.

www.diplomatique.org.br

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