Sindicato dos Trabalhadores em Postos de Combustíveis da Bahia
/ sexta-feira, novembro 22, 2024
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A saúde pública precisa de segurança e não de seguro

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A Nota Técnica 236 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE, A saúde pública precisa de segurança e não de seguro, aborda problemas que dificultam a atuação do Sistema Único de Saúde durante a pandemia do coronavírus. Trata das condições de trabalho dos profissionais e da falta de recursos no SUS, além da ausência de canais para debater e estruturar as políticas de saúde pública. O texto apresenta ainda recomendações e propostas de diversas fontes.

Diante da pandemia da Covid-19, evidencia-se o papel fundamental do Sistema Único de Saúde – SUS, no Brasil, cujas principais características são a universalidade do acesso e a gratuidade do atendimento. O SUS articula regionalmente uma complexa rede de prestação de serviços públicos de saúde, envolvendo municípios, estados e União e foi construído com sólido pilar de controle social. Sua capacidade em responder às demandas pode fazer a diferença em relação ao que se tem assistido nos chamados países desenvolvidos, sobretudo na Itália, Espanha e nos Estados Unidos, onde o vírus, que se espalha com grande velocidade, colapsou os serviços de saúde e provocou grande número de óbitos.

No Brasil, embora, no momento de elaboração deste estudo, a fase aguda da pandemia ainda esteja por vir (abril e maio, segundo projeções do Ministério da Saúde), o SUS vem suportando o atendimento aos contaminados. Convém lembrar que, diferentemente dos países citados – e a despeito das posições pouco prudentes do presidente da República -, o Ministério da Saúde, os governadores da grande maioria das Unidades da Federação e os prefeitos de inúmeros municípios, em consonância com a Organização Mundial da Saúde – OMS, têm orientado a população a manter-se em casa no período mais crítico da disseminação da doença e implementado medidas que visam ao distanciamento social.

Esta Nota Técnica tem a finalidade de apontar alguns gargalos – históricos e recentes – que fragilizam o SUS e reduzem as possibilidades para o enfrentamento desta crise e dos desafios que se colocam cotidianamente para o Sistema. O DIEESE vem, assim, retomar estudos recentes 1, em que analisava as condições de trabalho desfavoráveis dos trabalhadores do SUS, assim como a insuficiência de recursos orçamentários e de espaços de negociação e diálogo social na estruturação da política pública de saúde.

Os alertas

Em documento recentemente divulgado 2, a Organização Mundial da Saúde – OMS projetava que, até 2030, haveria um déficit de 18 milhões de profissionais da saúde em todo o mundo, mais acentuado em países de baixa renda e de renda média a baixa. Segundo a OMS, seria necessária a criação de pelo menos 40 milhões de novos empregos nos setores de saúde e assistência social para suprir o atendimento necessário à população. A atual pandemia não só vem confirmando o prognóstico, como desnudou a ausência de investimentos no setor.

A agenda proposta pela OMS articula-se aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS 2030), indicando que alcançar uma cobertura de saúde universal requer mais profissionais em empregos decentes, o que poderia criar muitas novas oportunidades, especialmente para mulheres e jovens. Uma perspectiva, portanto, integrada para a saúde, o emprego e o crescimento econômico inclusivo.

No entanto, em meio à sempre alegada falta de recursos, os governos de diferentes países mobilizaram em 2015, segundo o Fundo Monetário Internacional-FMI, algo em torno de U$ 5,3 trilhões em subsídios para a exploração de combustíveis fósseis que, juntamente com o desmatamento e outras ações que interferem na temperatura do planeta, podem estar na origem das mutações das bactérias e vírus que abalam a humanidade. Isso mostra que, quando o interesse é obter ganhos financeiros, há recursos para investimentos

E para provar que o mercado não tem limites morais, como já denunciado por diversos pensadores 3, no início do agravamento da pandemia de coronavírus no Brasil, um dos maiores bancos privados do país divulgou uma campanha publicitária na TV, oferecendo seguro, sem carência, para os profissionais da saúde. É assim que o capital financeiro enfrenta as crises agudas de saúde: como mais uma oportunidade para maximizar lucros.

Segurança de recursos

O orçamento da saúde no Brasil cresceu significativamente, em termos reais, no período entre 2003 e 2015: a dotação inicial prevista dobrou e a despesa executada apresentou crescimento de quase 90% no período. Entretanto, esse quadro mudou com a aprovação da PEC do Teto dos Gastos no governo Temer, que, por meio da Emenda Constitucional 95/2016, congelou o orçamento do governo federal por 20 anos, autorizando sua correção somente em valores nominais, de acordo com a inflação, sem levar em conta nem mesmo o crescimento e envelhecimento populacional previstos para o período. Os resultados dessa “obra de compressão dos gastos sociais” podem ser observados na Tabela 1.

 

O orçamento para as despesas com saúde em 2020 – de 115,6 bilhões – apresentou queda de 3,1%, em termos reais, quando comparado ao orçamento para 2017, aproximando-se do valor dotado para o ano de 2011. O valor referente a 2020 sequer foi corrigido pela inflação do período, o que impôs uma subtração de recursos reais da saúde da ordem de R$ 3,7 bilhões em relação ao valor orçado em 20174.

Tabela 1 – Evolução da dotação inicial e da despesa executada da função saúde em valores reais (1) – Brasil 2010 – 2020
Ano Dotação Inicial Despesa Executada
Em R$ bilhões Variação anual Em R$ bilhões Variação anual
2003 65,6 -10,05% 66,4 -5,96%
2004 76,8 17,15% 75,5 13,74%
2005 78,3 1,88% 78,3 3,70%
2006 83,3 6,42% 83,7 6,85%
2007 86,0 3,24% 90,7 8,40%
2008 92,7 7,78% 94,0 3,63%
2009 100,3 8,17% 104,1 10,80%
2010 100,6 0,37% 105,5 1,31%
2011 113,3 12,57% 115,4 9,39%
2012 123,9 9,36% 120,9 4,80%
2013 128,6 3,84% 121,7 0,64%
2014 128,3 -0,27% 126,5 3,95%
2015 131,0 2,12% 126,0 -0,45%
2016 117,6 -10,26% 122,8 -2,48%
2017 119,3 1,47% 129,0 5,04%
2018 124,1 4,04% 127,9 -0,91%
2019 119,1 -4,05% 128,4 0,42%
2020 115,6 -2,93% 18,6
Variação acumulada 2003-2015 65,4 99,81% 59,6 89,75%
Variação acumulada 2017-2020 -3,7 -3,10%
Fonte: SIGA Brasil – SIAFI – Tesouro Nacional
Elaboração: DIEESE

 

Nota: (1) Base IPCA a preços de 01/2020

 

Obs.: a) Dados acessados em 11 de março de 2020

b) as taxas de variação anual foram calculadas para os valores em reais e podem, portanto, apresentar pequenas diferenças em relação aos valores em bilhões aqui apresentados por conta do arredondamento das casas decimais.

Mesmo com o crescimento verificado no período anterior, o valor orçado para a saúde já vinha se mostrando insuficiente para o enfrentamento dos desafios cotidianos do SUS, e, diante da crise da Covid-19, revelaram-se ainda mais insatisfatórios. A título de comparação, é interessante destacar que o orçamento da saúde para 2019 foi menor que o valor arrecadado pelos cinco maiores bancos do país apenas com a cobrança de tarifas para prestação de serviços.

Por fim, cabe citar estudo do INESC5 que indica que os subsídios do governo à indústria farmacêutica, via gastos tributários, atingiram cerca de R$ 9 bilhões em 2017, sem que se traduzissem em queda nos preços dos medicamentos e/ou em investimentos em pesquisas sintonizadas com o quadro epidemiológico do país. A indústria farmacêutica não investe em prevenção, prefere oferecer cura. Em 2019, o faturamento da indústria farmacêutica brasileira foi de aproximadamente R$ 90 bilhões e, nos próximos anos, o Brasil deverá se tornar o quinto maior mercado para medicamentos do mundo.

Segurança na política pública

Há muitas décadas, antes dos princípios do SUS estarem estabelecidos na Constituição Federal de 1988, os serviços de saúde pública eram acessados somente por trabalhadores formais, ou seja, pelos que tinham registro em carteira de trabalho; os demais cidadãos não tinham assistência gratuita para tratamento médico. A visão predominante de saúde era curativa e não preventiva, com predomínio da política “hospitalocêntrica”, que se sustentava na construção de grandes hospitais para atender àqueles que possuíam recursos financeiros para pagar atendimento, internação e tratamentos.

O SUS nasce para romper essa visão segregadora, anticientífica 6 e mercadológica da saúde pública e vem sendo estruturado como sistema público de atendimento universal, gratuito, descentralizado e com coordenação compartilhada, entre outras características que o fazem ser reconhecido como o maior sistema público de saúde do mundo. A atuação do SUS tem valorizado a prevenção e não apenas a cura, associando-a a ações de vigilância sanitária; o desenvolvimento de pesquisas, equipamentos e a formação de profissionais da saúde, assentando-se em indicadores epidemiológicos; e se legitimado pela participação popular, por meio dos Conselhos de Saúde. Esses grandes avanços necessitam de outros saltos, uma vez que o SUS está sempre em construção, daí a importância de não perder recursos, nem princípios.

Uma das primeiras medidas da atual gestão do Ministério da Saúde, no âmbito da Gestão do Trabalho em Saúde, do Governo Bolsonaro, foi a de suspender as atividades da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS (MNNP-SUS), espaço de diálogo e de construção de consensos para a melhoria da gestão do trabalho no SUS. Nesse espaço foram elaborados vários protocolos sobre questões que hoje, em tempos de pandemia, consagram-se pelo olhar da sociedade como fundamentais para os profissionais da saúde: planos de carreira, negociação coletiva, saúde do trabalhador, condições de trabalho/trabalho decente, cessão de pessoal, entre outras referências tão urgentes para aqueles que salvam vidas, mas que também precisam de cuidado.

Recentemente, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019, que estabelece novo “Modelo de Financiamento e de Custeio da Atenção Primária à Saúde”. Até 2019, a lógica de financiamento para os municípios baseava-se na repartição per capita e por adesão aos programas, ou seja, os municípios recebiam repasse de recursos do governo federal de acordo com a população local e a participação em programas referência, como saúde da mulher, doenças crónicas, pré-natal, entre outras. A mudança implementada pelo Ministério da Saúde, que responde à lógica empresarial em tempos de recursos escassos, condiciona o repasse de recursos ao cumprimento de determinadas metas a serem alcançadas pelos municípios e suas respectivas equipes de saúde. É um modelo misto de pagamento que visa atingir resultados e é composto por uma parte fixa e outra variável, com base no tamanho da população credenciada no SUS (e não de toda população) e adesão aos programas com metas estabelecidas.

Ao buscar direcionar recursos para segmentos da população, essas mudanças apontam para uma revisão do princípio da universalização do SUS, reeditando os debates sobre universalização versus focalização, SUS dos pobres, entre outros atrasos. Para se ter ideia do alcance dessa medida, o Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde -CONASEMS – estima que 1098 municípios não terão condições de ampliar seu custeio com o novo financiamento, algo em torno de 19% dos municípios, que representam 20 milhões de pessoas ou 10% da população brasileira. Essa medida não contempla as desigualdades relativas entre as condições demográficas, epidemiológicas, socioeconômicas e geográficas dos distintos municípios brasileiros.

A hibernação da MNNP-SUS e a Portaria nº 2979 são exemplos recentes de que a política pública de saúde do Governo Bolsonaro já vem em uma trajetória de estrangulamento dos recursos orçamentários, de responsabilização dos gestores e profissionais de saúde pelos cuidados das pessoas (e não do Estado) e pela ausência de diálogo com a sociedade e os profissionais de saúde. A crise do coronavírus pode se apresentar como uma oportunidade para revelar essas mudanças em curso e mobilizar esforços para sua reversão.

Segurança no trabalho

Uma das dimensões mais dramáticas da atual pandemia tem sido a realização do trabalho pelos profissionais da saúde. Trabalhar à exaustão, muitas vezes sem equipamentos de proteção individual e infraestrutura adequados; em organização anacrônica de processos de trabalho; com carências de registros e informações qualificadas e integradas; isolados do convívio familiar; diante da falta de profissionais e de treinamento; tendo, em alguns casos, que escolher entre a vida e a morte de pacientes são alguns dos dramas vividos cotidianamente por médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde.

Embora seja de conhecimento público que esse quadro não é desconhecido da saúde no Brasil, a pandemia da Covid-19 o colocou em evidência, tornando sua visibilidade muito maior. O DIEESE, em estudo recente, sistematizou um conjunto de informações sobre o trabalho no setor de saúde pública, o que possibilitou dimensionar a força de trabalho em estabelecimentos vinculados aos SUS.

Distribuição dos Estabelecimentos de Saúde

Segundo o Anuário dos Trabalhadores no SUS, publicado em 20187, havia, em 2016, quase 300 mil estabelecimentos de saúde no Brasil, sendo quase metade (46%) localizada no Sudeste, região que concentra 42% da população do país. Somente no estado de São Paulo, encontra-se um em cada quatro estabelecimentos de saúde do país. Na Região Sul, o percentual de estabelecimento (21%) é maior do que a representação da população (14%), situação que se inverte no Nordeste, onde há, proporcionalmente, menos estabelecimentos (20%) do que população (28%), quando comparados ao total do Brasil.

Do contingente de estabelecimentos de saúde no Brasil, 32% eram vinculados ao SUS, em 2016. Na Região Nordeste, esses eram 54% do total dos estabelecimentos, chegando, no Piauí, a corresponder a quase 75%. Houve uma expansão de 13,7% no número de estabelecimentos de saúde vinculados ao SUS no Brasil no período de 2012-2016, sendo o maior crescimento verificado em Brasília (36,5%).

Essas informações são importantes para dimensionar a capacidade regional de atendimento do SUS no período de pandemia, embora não sejam detalhadas para identificar as especialidades e a estrutura para o atendimento, como leitos de UTI e respiradores, entre outros. No entanto, os dados configuram-se em proxy da oferta de serviços frente ao contingente populacional e indicam que alguns estados, como o Amazonas, já estão próximos da ocupação máxima 8.

O contingente de trabalhadores

Em conjuntura de normalidade epidemiológica, dispor do número de trabalhadores adequados para a prestação de serviços de saúde seria o mínimo a se esperar das políticas de gestão do trabalho no setor. Entretanto, são incipientes os recursos e as iniciativas dos estabelecimentos de saúde em dimensionar a força de trabalho necessária para o atendimento. Nos últimos anos, algumas ações públicas foram iniciadas para a definição de metodologia que auxiliasse as unidades de saúde a projetarem esses números, porém, a redução dos recursos para a saúde, a partir da EC 95, inviabilizou a continuidade desses estudos, hoje essenciais para providenciar contratações emergenciais para o enfrentamento da pandemia.

Em 2016, havia pouco mais de 5,7 milhões de trabalhadores em serviços de saúde públicos e privados no Brasil, o que correspondia a 6,3% do total de ocupados no país, segundo

informações da PNAD Contínua, publicadas no Anuário dos Trabalhadores do SUS. O Anuário revelou, ainda, que o setor de saúde manteve crescimento expressivo no número de ocupados mesmo no período de crise (14,4% entre 2014 e 2016), enquanto a ocupação geral teve queda de 1,4% nesses dois anos, o que reflete desempenho positivo dos trabalhadores do setor, tanto no âmbito privado, quanto no âmbito público. Porém, a variação do estoque de empregos no SUS foi bem mais modesta, com baixo crescimento em todo o país (1,9%), atingindo 2,7 milhões de vínculos em 2016, sendo que 60% desses estavam alocados em estabelecimentos vinculados aos municípios.

As mulheres representam 75,4% do estoque de empregos, correspondendo a mais de dois milhões de vínculos em 2016 (no Sul representam 79,1% e, no Nordeste, 75,4%). Com relação à raça, 34% da força de trabalho do SUS é negra, sendo os homens negros 8% do total e as mulheres negras, 26%. Também no SUS, há forte componente de discriminação na gestão do trabalho, com diferenciais de remuneração, escolaridade e posições de chefia, entre homens e mulheres e negros e não-negros, o que revela a necessidade de políticas ativas de raça e gênero, que corrijam as distorções. Além do número de profissionais da saúde mostrar-se insuficiente antes mesmo da pandemia, sua distribuição regional apresenta-se bastante desigual. Em 2016, por exemplo, 62% dos médicos no Brasil se encontravam nas regiões metropolitanas, que reuniam 38% do total da população. Assim, havia 1,2 médicos para cada 1000 nas regiões não-metropolitanas, ao passo que nas regiões metropolitanas, havia 3,2 médicos para cada 1000 habitantes. O programa “Mais Médicos”, implantado em 2013, que contava com a presença de médicos estrangeiros – na maioria cubanos – para atendimento em municípios do interior e nas periferias das grandes cidades brasileira, começou a enfrentar essa desigualdade. Porém, o programa foi desativado pelo Governo Bolsonaro e substituído pelo “Médicos pelo Brasil”, que até o momento não conseguiu preencher as vagas ofertadas em função da substituição dos médicos cubanos.

Formas de Contratação e Vínculo

Ainda que represente a menor parcela dos ocupados do setor de saúde (31,4% em 2016), a variação dos empregos sem carteira de trabalho assinada foi, desde 2012, superior àquela registrada para os empregos formais (38,8% contra 21,4%). O crescimento do emprego no setor, mesmo no período de crise, deu-se, especialmente, com a ampliação da rede privada e a elevação da informalidade.

As diferentes formas de contratação da força de trabalho em saúde (hoje uma mesma unidade tem profissionais estatutários, celetistas, cooperados, bolsistas, entre outras) é resultado das várias medidas de flexibilização do trabalho implementadas nos últimos anos, que acarretam desde problemas de gestão até a qualidade do serviço prestado, na medida em que esses empregos têm baixa proteção social e duração.

Pouco mais de 1/3 dos trabalhadores do SUS (39,1%) são estatutários, 58,6% são celetistas e 2,2% têm outros tipos de contratos. O maior número de vínculos profissionais típicos da saúde no SUS, em 2016, referiam-se a Técnicos e Auxiliares de Enfermagem (32,6% ou 872 mil vínculos), sendo 65,7% celetistas e 32,7%, estatutários. O segundo lugar é ocupado por Trabalhadores nos Serviços de Promoção e Apoio à Saúde (345 mil vínculos ou 12,9% do total), sendo 69,7% estatutários e 26,5%, celetistas. Em terceiro lugar, estão os enfermeiros (279 mil vínculos ou 10,4% do total), sendo 60,3% celetistas; e em quarto lugar, os médicos clínicos, que respondem por 234 mil vínculos ou 8,7% do total.

Além dos diversos tipos de contratos de trabalho, uma especificidade do trabalho no setor de saúde é a quantidade de vínculos que os profissionais acabam acumulando em diferentes estabelecimentos. Em razão, muitas vezes, da baixa remuneração, várias categorias profissionais da saúde acumulam mais de um vínculo de trabalho, como forma de complementação de renda. Essa dura realidade mostrou-se ainda mais perversa em tempos de pandemia, quando um dos protocolos para evitar a disseminação do vírus é justamente o de evitar o “trânsito” de profissionais de saúde entre os estabelecimentos, como rapidamente a China aprendeu no início da Covid-19.

Quase 600 mil trabalhadores do SUS tinham mais de um vínculo de trabalho em estabelecimentos vinculados ao SUS, no país, em 2016, isso sem contar os que acumulavam vínculos em outros estabelecimentos privados ou ocupações e vínculos não formais. Do total, quase 219 mil eram técnicos e auxiliares de enfermagem, 120 mil médicos clínicos, 75 mil enfermeiros e 32 mil farmacêuticos. Em síntese, parcela significativa dos trabalhadores do SUS tem mais de um vínculo empregatício, o que indica fragilidade estrutural do sistema, que se agrava em período de sobrecarga na demanda pela prestação do serviço público de saúde.

É importante destacar que o conjunto de informações sobre a força de trabalho em saúde no SUS não está organizado em Sistema de Informações, dado que vários estados têm dificuldade em mensurar o efetivo de pessoal diante da diversidade de contratos e da dispersão

de fontes de informação. Mesmo a base de dados do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde-CNES é limitada a um conjunto de variáveis sobre os trabalhadores do SUS. Em tempos de pandemia, a ausência de informações precisas prejudica a qualidade do atendimento e as condições de trabalho dos profissionais de saúde.

Condições de Trabalho

Em meio à pandemia, são muitos os gestos de agradecimento ao trabalho realizado pelos profissionais da saúde, um reconhecimento pela sua entrega em socorrer o próximo, mesmo pondo em risco sua própria saúde. Porém, essa situação de estresse no trabalho não é nova, o que é inédito é a agudização e a transparência evidenciada pela pandemia.

Diferenças salariais, discriminação no trabalho, jornadas excessivas, crescente índice de rotatividade, falta de perspectivas na carreira, adoecimentos e acidentes decorrentes do exercício do trabalho vêm acompanhando os profissionais da saúde no decorrer dos anos.

Em 2016, a média da remuneração dos profissionais da saúde no SUS era de R$ 3.174,00 ou 3,6 salários mínimos. Entre as famílias ocupacionais mais frequentes, os médicos clínicos apresentavam a maior remuneração (R$ 9.913,00), e os cuidadores, a menor (R$ 1.377,00). Técnicos ganhavam a metade do que recebiam os enfermeiros, que ganhavam a metade do que recebiam os médicos, com diferentes jornadas de trabalho. A distância entre a maior e a menor remuneração no SUS é de sete vezes. As mulheres recebiam 75% da remuneração dos homens (R$ 2.878,00 contra R$ 3.828,00); e as mulheres negras, 60% da remuneração dos homens brancos (R$ 2.561,00 contra R$ 4.302,00).

A rotatividade do trabalho no SUS é expressiva. Em 2016, segundo Rais-CNES, 20% dos contratos de trabalho ativos foram encerrados no ano. Tomando-se apenas a base do CNES, foram encerrados, em 2016, 30,5% dos contratos. A taxa de rotatividade global para estatutários foi de 11,1%; para os celetistas, foi de 29,5%; e para os demais contratos, alcançou 83,3%.

A jornada contratual média de trabalho nos estabelecimentos vinculados ao SUS é de 36 horas, embora variem de 13 horas (médicos cirúrgicos) a 42 horas. As diferenças se dão mais em função da ocupação do que da atividade. Além da jornada contratual, a utilização de horas extras, plantões e sobreavisos é um expediente recorrente no trabalho da saúde, estando mais presentes nas atividades de técnicos e auxiliares de enfermagem, trabalhadores em serviços de promoção à saúde, enfermeiros e médicos.

Um desafio permanente e que, infelizmente, é pouco traduzido nas políticas de gestão do trabalho em saúde diz respeito ao cuidado com a saúde dos trabalhadores do setor. Como atestam alguns dados, quem cuida é pouco cuidado: do total de 1986 falecimentos registrados entre os trabalhadores vinculados ao SUS, 14% devem-se a doenças profissionais e 55% decorrem de acidentes de trabalho. As aposentadorias por doença, invalidez ou acidente representaram 23% do total das aposentadorias.

O número de afastamentos nos empregos em estabelecimentos vinculados ao SUS, em 2016, foi de 551 mil, o que corresponde a mais de 44 milhões de dias de afastamento. Do total, 76% foram associados a doenças não vinculadas ao trabalho, o que indica grande dificuldade de identificação dos nexos causais. A taxa de mortalidade de empregados em estabelecimento do SUS cresceu de 42 para 71 por 100 mil vínculos entre 2012 e 2016. Faz-se necessário lembrar que, em meio a esse quadro, o governo federal iniciou um processo de revisão, simplificação e alcance das chamadas NRs – Normas Regulamentadoras da saúde e segurança no ambiente do trabalho.

Essa breve síntese da situação dos postos de trabalho e dos profissionais de saúde do SUS quando a crise do coronavírus teve início no Brasil aponta para a necessidade de dimensionamento da força de trabalho em saúde, de contratos de trabalho mais protegidos e de condições de trabalho adequadas para o exercício profissional. Some-se a isto, a necessidade de se restabeleceram os espaços de diálogo e negociação entre os contratantes e as categorias de trabalhadores da saúde, a perspectiva de carreira para os profissionais da saúde 9 e o urgente redesenho dos processos de trabalho nos estabelecimentos do setor.

Propostas e recomendações para os trabalhadores da saúde

A seguir são apresentadas algumas 10 das recomendações técnicas, iniciativas legislativas, proposições sindicais e outras iniciativas que visam, a curto e a médio prazo, A saúde pública precisa de segurança e não de seguro 14

Público-SP, Conselho Nacional de Saúde, Associação Brasileira da Saúde do Trabalhador e Trabalhadora-ABRASST e Frente Ampla em Defesa da Saúde do Trabalhador. melhorar as condições em que operam os profissionais da saúde, no período da pandemia de Covid – 19.

Acidente de trabalho: Deve-se garantir aos trabalhadores da saúde que forem infectados pela Covid-19 serem tratados com licença médica por acidente de trabalho;

Dispensa de atestado: O Projeto de Lei nº 702/202011 estabelece que, durante período de emergência pública em saúde, pandemia e epidemia, declarada a imposição de quarentena, o empregado será dispensado da comprovação de doença por sete dias. No caso de imposição de quarentena, o trabalhador poderá apresentar, como justificativa válida no oitavo dia de afastamento, documento de unidade de saúde do SUS ou documento eletrônico regulamentado pelo Ministério da Saúde;

Dimensionamento da força de trabalho: A emergência da crise requer o aumento da capacidade instalada de equipamentos de saúde para não colapsar o sistema, além da contratação de profissionais da saúde para atender não só à ampliação da capacidade, como à disposição de pessoal suficiente para os turnos de jornada que se intensificam. Nesse sentido, recomenda-se com urgência ações para dimensionar o número de trabalhadores da saúde necessário para o atendimento da maior demanda pela prestação do serviço 12;

Contratação emergencial: Vários estados e a União têm realizado contratações emergenciais para recompor os quadros técnicos em meio à crise. Recomenda-se que seja dada prioridade à contratação dos profissionais já aprovados em concursos públicos e que aguardam convocação e, imediatamente após, sejam abertos novos concursos para preenchimento das vagas;

Capacitação e cadastramento: O Ministério da Saúde editou a Portaria nº 639, de 31/03/2020, com o objetivo de proporcionar capacitação de profissionais da saúde nos protocolos oficiais de enfrentamento à pandemia do coronavírus. Institui também a criação de um cadastro geral de profissionais da saúde habilitados para atuar em todo o território nacional, que poderá ser consultado pelos entes federados, em caso de necessidade, para orientar suas ações de enfrentamento à Covid-19;

Direito à informação: Direito à informação sobre riscos para a saúde presentes no trabalho, medidas de prevenção adotadas pela organização (empregador público ou privado) e forma correta de sua utilização;

Equipamentos de proteção individual: Assegurar aos trabalhadores da saúde a disponibilidade de EPIs: máscara facial e cirúrgica, aventais, macacões, luvas de procedimento, proteção ocular, touca/gorro, protetor de calçado, álcool em gel, entre outros; além da garantia de ambiente de trabalho com iluminação, ventilação e refrigeração adequados, além de salas de repouso e isolamento. Além dos equipamentos, as entidades e sindicatos tem requisitado o treinamento dos trabalhadores da saúde para o uso adequado destes EPIs no atendimento direto de casos suspeitos de Covid-19 e no atendimento em geral, tendo em vista a atual situação da epidemia e o conhecimento crescente da importância dos casos assintomáticos na disseminação do vírus;

Equipe multiprofissional: Os trabalhadores de saúde, segundo o CNS, devem ter apoio de profissionais de diferentes áreas de conhecimento para a realização do trabalho e, em particular, no atendimento de casos suspeitos ou sintomáticos de Covid-19;

Local de trabalho: Garantia de um ambiente de trabalho com iluminação, ventilação e refrigeração adequadas, além de salas de repouso e isolamento. O COFEN, por exemplo, sugere a definição de local de espera às pessoas com quadro clínico de sintomas respiratórios, para avaliação por profissional, além de organização de sala de observação para receber casos de pessoas com sintomas respiratórios e fatores de risco ou de pessoas com suspeita de COVID 19;

Mesa de negociação permanente do SUS e diálogo social: O enfrentamento da crise requer decisões céleres, que visem à proteção da vida da população e dos profissionais de saúde. A saúde pública precisa de segurança e não de seguro 16

Nesse sentido, sugere-se a retomada imediata das atividades da Mesa Nacional de Negociação do SUS, suspensas pelo Ministério da Saúde desde 2019, de modo a retomar o diálogo para a proposição de protocolos que tragam segurança aos profissionais da saúde do SUS e garantam qualidade na prestação do serviço de saúde. Além disso, diversas entidades e sindicados de trabalhadores da saúde estão reivindicando a participação nos comitês ou mesas técnicas de acompanhamento da evolução da epidemia e debate acerca das medidas a serem adotadas no âmbito da gestão pública local

Proteção aos trabalhadores em grupos de risco: afastamento de trabalhadores com mais de 60 anos ou com comorbidades de atividades mais expostas ao risco;

Sistema de informações em recursos humanos da saúde: Construir um sistema nacional, com base nos registros dos estados e municípios, que congregue informações qualificadas sobre todos os profissionais da saúde que prestam serviços para o SUS, independentemente da forma de contratação;

Testagem para Covid-19: Criar mecanismos que assegurem urgência na testagem de todos os profissionais da saúde envolvidos no tratamento da Covid -19;

Transporte e hospedagem: Garantia de transporte público ou privado e hospedagem para todos os trabalhadores da saúde envolvidos no tratamento da Covid-19, como forma de diminuir o risco de contágio deles próprios ou de outras pessoas, inclusive de seus familiares;

Terceirizados: Estender as garantias de proteção do trabalho, remuneração, capacitação e assistência médica a todos os funcionários da mesma unidade de saúde e que são regidos por diferentes contratos de trabalho, incluindo bolsistas e residentes;

Produção de equipamentos para saúde: Reversão da produção industrial nacional para produção de equipamentos necessários e urgentes no tratamento da Covid-19. Avaliar a cadeia nacional de produção de equipamentos e insumos para o setor de saúde e incentivar, através de compras governamentais, o desenvolvimento tecnológico para a produção de componentes locais de produtos importados, com geração de emprego e renda;

Saúde do trabalhador do SUS: Implantar, fortalecer e estruturar os programas de assistência e saúde do trabalhador, inclusive implementando uma Política Nacional de Saúde A saúde pública precisa de segurança e não de seguro 17

do Trabalhador e da Trabalhadora da área de saúde, incluindo a prevenção, a profilaxia e a assistência em saúde mental, conforme recomendado pela 16ª Conferência Nacional de Saúde. De acordo com o CNS, os trabalhadores de saúde devem ser esclarecidos e ter assegurados os seus direitos, papéis e responsabilidades no manejo das situações derivadas da pandemia, incluindo as medidas de segurança e saúde no trabalho. Na atenção básica, em que a diversidade de situações é maior, é fundamental o acesso aos protocolos oficiais para organizar de forma segura o trabalho das equipes, inclusive dos agentes comunitários de saúde;

Saúde mental: De acordo com o CNS, as recomendações de preservação dos trabalhadores da saúde devem envolver também cuidados com a saúde mental, que devem ser prioridade, principalmente para os trabalhadores que lidam com os doentes no cotidiano. Além da garantia do acesso aos serviços especializados de atenção à saúde do trabalhador, são necessárias ações de gestão do trabalho voltadas à sobrecarga que a pandemia produz sobre os profissionais de saúde.

NOTAS

1 Ver Nota Técnica nº 197 – Indicadores para Agenda do Trabalho Decente no SUS (DIEESE, agosto de 2018); Nota Técnica nº 213 – Reforma Administrativa e os Trabalhadores do SUS (DIEESE, setembro de 2019) e o Anuário dos Trabalhadores do SUS (DIEESE, 2018).

2 Health Employmentand Economis Growth, OMS, 2017

3 Michael J. Sandel, O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA, Civilização Brasileira, 2017

4 Em estudo recente, o economista Francisco Funcia estimou que, apenas em 2019, foi de R$ 20 bilhões a perda de recursos destinados à saúde, em decorrência da desvinculação do gasto mínimo de 15% da receita corrente líquida da União com saúde. Veja mais em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-

5 https://www.inesc.org.br/industria-farmaceutica-aumenta-faturamento-enquanto-cai-gasto-do-governo-com-medicamentos/

6 A recusa da população em se vacinar contra varíola no início do século 20, conhecida como a “Revolta da Vacina”, revela um descrédito na ciência como meio de combate às epidemias, que se perpetua, infelizmente, em autoridades de governo em pleno século 21.

7 Anuário dos Trabalhadores do SUS (DIEESE, 2018). O Anuário traz um avanço metodológico inédito ao cruzar as informações da Rais (emprego formal) e do Cnes, adensando as informações sobre o perfil do trabalhador do SUS.

8 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/perto-do-colapso-por-coronavirus-amazonas-e-1o-estado-a-trocar-de-secretario-da-saude.shtml

9 DIEESE – DIRETRIZES PARA ELABORAÇÃO E IMPLANTAÇÃO DE PLANO DE CARREIRAS, CARGOS E VENCIMENTOS EM REGIÕES DE SAÚDE, 2018)

10 Baseado em levantamentos de ações e documentos produzidos pela Câmara dos Deputados, Ministério da Saúde, Conselho Federal de Enfermagem, Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde do Estado de São Paulo (SindSaúde-SP), Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep-SP), DIEESE, Ministério

11 Autoria dos deputados (as) Alexandre Padilha, Alexandre Serfiotis, Carmem Zanotto, Dr. Zacharias Calil, Dr. Luiz Antonio Junior, Dra. Soraya Manato, Hiran Gonçalves, Jorge Solla, Mariana Carvalho e Pedro Westphal

12 O DIEESE desenvolveu metodologia e formação para o dimensionamento da força de trabalho em saúde para a rede hospitalar de Rondônia e do Ceará.

 

 

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