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/ sábado, novembro 23, 2024
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Drauzio Varella prevê ‘tragédia nacional’ por coronavírus: ‘Brasil vai pagar o preço da desigualdade’

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‘Todos nós vamos perder amigos, muitos vão perder pessoas da família, e isso vai nos ensinar que não é possível viver como nós vivíamos até aqui’, diz médico, que integra grupo que definirá destino de recursos do Todos pela Saúde, criado para combater nova doença

Prestes a completar 77 anos em maio, o médico cancerologista Drauzio Varella diz que se arrepende de já ter sido otimista a respeito do novo coronavírus. Na época em que começaram a surgir as primeiras informações sobre o vírus na China, em dezembro do ano passado, ele diz que, como muitos, considerou que se tratava de uma doença de baixa letalidade, como pareciam indicar os dados disponíveis. “Eu participei desse otimismo e me recrimino por isso hoje.”

Considerado parte do grupo de risco para a covid-19 pela faixa etária, o médico, escritor e comunicador tem vivido uma rotina profissional intensa nas últimas semanas, mesmo sem sair de casa. Concilia as reuniões matinais diárias do recém-criado grupo “Todos pela Saúde”, que ele integra como sete técnicos que trabalham para direcionar uma doação de R$ 1 bilhão feita pelo Itaú Unibanco ao combate do coronavírus, com as demandas que recebe como médico, tirando dúvidas e enviando orientações a respeito da doença.

Vencer o avanço da pandemia no Brasil, pondera, exigirá estratégias e obstáculos diferentes do que foi observado em países da Europa e da Ásia. A principal peculiaridade brasileira é a imensa desigualdade social, que impõe condições de vidas muito distintas para ricos e pobres, limitando o acesso de grande parte da população às práticas que previnem o contágio, como lavar as mãos, comprar álcool gel e praticar o isolamento social.

Há no país 35 milhões de brasileiro sem acesso à rede de água potável, segundo dados do Instituto Data Brasil de 2017. Em 2018, antes da crise do coronavírus, chegou a 13,5 milhões o número de brasileiros vivendo abaixo da linha da extrema pobreza, com menos de R$ 145 por mês.

É esse contexto que, na previsão de Varella, levará o país sem dúvida a uma “tragédia nacional” durante a pandemia.

“Eu acho que nós vamos ter um número muito grande de mortes, vamos ter um impacto na economia enorme, uma duração prolongada”, prevê, destacando que a naturalização histórica das mazelas sociais do país será o principal determinante de tal tragédia.

“Agora é que nós vamos pagar o preço por essa desigualdade social com a qual nós convivemos por décadas e décadas, aceitando como uma coisa praticamente natural. Agora vem a conta a pagar. Porque é a primeira vez que nós vamos ter a epidemia se disseminando em larga escala em um país de dimensões continentais e com tanta desigualdade”, diz, em entrevista à BBC News Brasil, concedida por meio de teleconferência.

Na pandemia, fica mais evidente a ameaça da desigualdade social a todos os segmentos da sociedade, na visão do médico. “Enquanto tivermos essa disseminação em lugares impróprios para a vida humana, você não se livra do vírus. E é esse vírus que ameaça a todos, o tempo inteiro”, afirma Varella, que prevê que a pandemia também deixará mudanças profundas na sociedade.

“Acho que o sofrimento é uma pressão para o aprendizado. Todos nós vamos perder amigos, muitos vão perder pessoas da família, e isso vai nos ensinar que não é possível viver como nós vivíamos até aqui.”

Ferrenho defensor do isolamento social, uma das únicas medidas comprovadamente eficazes contra o vírus (além da higiene frequente das mãos, por exemplo), ele alerta para as possíveis consequências terríveis para os pacientes graves que, por falta de infraestrutura, eventualmente ficarem sem atendimento em meio a problemas respiratórios progressivos. “Não é que você volta para casa, sofre um pouco e passa. Não, falta de ar é o pior sintoma que existe. Porque se você tem dor, toma analgésico, você tem tosse, tem jeito de bloquear. Agora ter falta de ar é uma morte horrível. Horrível.”

Leia os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil – Atualmente existem pelo menos duas versões de quarentena no Brasil. Há pessoas que estão em casa, com a família, conseguindo fazer esse home office, tendo até um momento de paz, de conviver com a família. E muita gente que está ou sem casa, ou em casas muito lotadas, sem comida, sem dinheiro. Como o senhor acha que essa situação influencia o combate brasileiro ao coronavírus?

Drauzio Varella – Nós vamos saber agora. Agora é que nós vamos pagar o preço por essa desigualdade social com a qual nós convivemos por décadas e décadas, aceitando como uma coisa praticamente natural. Agora vem a conta a pagar. Porque é a primeira vez que nós vamos ter a epidemia se disseminando em larga escala em um país de dimensões continentais e com tanta desigualdade. Na Europa, estamos vendo os problemas que eles estão enfrentando, mas são países que têm uma estrutura social relativamente bem organizada, fica mais fácil dessa maneira.

Agora estamos tendo este início de epidemia que aconteceu entre as pessoas que introduziram o vírus ao país, que vieram de fora, de viagens internacionais, e trouxeram o vírus para cá. E aí estamos vendo o que acontece nas cidades que tiveram um afluxo maior desses brasileiros que viajaram. São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Manaus também, estamos tendo esse primeiro impacto.

Vamos ter, forçosamente, a disseminação dessa epidemia para as camadas sociais mais desfavorecidas. É assim que está acontecendo em Nova York hoje, onde os negros são representados em muito maior proporção nas mortes que acontecem nas cidades. Nós não sabemos ainda o que vai acontecer quando esses 13 milhões de brasileiros que vivem em condições precárias de habitação e que têm condições precárias de saúde também vão se infectar. Não sabemos o que vai acontecer, vamos aprender agora a duras penas. Eu rodo muito pelo país, já gravei em periferias de quase todas as grandes cidades brasileiras. E você entra nessas casas, é uma pobreza em um nível…

BBC News Brasil – Não tem condições de higiene?

Varella – Nenhuma. E você tem um cômodo em que moram quatro adultos e três, quatro crianças. De dia aquele cômodo é a sala de refeições, de noite a mesa vai para o canto e os colchões saem da parede e vão para o chão, e as pessoas dormem ali. Você não tem condição mínima de separação. Vão dizer ‘fica em casa, não vão para a rua’. Como é que essas pessoas não vão para a rua?

E além do que é um nível de pobreza, que você vê o que está acontecendo: em dois, três dias essas pessoas não têm o que comer. Porque a luta é sair, e conseguir passar no supermercado e levar alguma coisa para casa, diariamente. Imagina você o dinheiro que você tem não dá para aguentar dois, três dias isolada, porque não vai ter o que comer. E a ajuda do governo, lógico que é importante, mas é difícil organizar também. As pessoas falam também ‘ah, mas devia ter chegado o dinheiro’. É, vai lá organizar para ver como é, não é fácil.

 

BBC News Brasil – Alguns dos países que tiveram mais problemas com a doença tinham suas peculiaridades. Por exemplo, a Itália tinha muitos idosos. E os Estados Unidos, a falta de um sistema público de saúde. O senhor acha que essas questões da desigualdade e da pobreza serão as nossas principais fragilidades?

Varella – Eu acho que vai ser. Acho que vai ser a grande dificuldade que o Brasil vai enfrentar. Porque o vírus é democrático, ele atinge qualquer pessoa. Então eu disse que a gente vai pagar o preço dessa desigualdade social toda porque enquanto tiver gente vivendo nessas condições, se infectando e transmitindo o vírus uns para os outros, esse vírus vai atingir todo mundo, porque as pessoas se interconectam de uma forma ou de outra, ou dividem espaços comunitários de um jeito ou de outro.

Enquanto tivermos essa disseminação em lugares impróprios para a vida humana, como são esses, você não se livra do vírus. E é esse vírus que ameaça a todos, o tempo inteiro.

Eu, sinceramente, eu já fui otimista, sabe? Acho que no início todos nós fomos, o mundo foi otimista. E eu participei desse otimismo e me recrimino por isso hoje. Porque nós recebíamos as notícias da China e essas notícias eram muito ocasionais, e não davam ideia de como eram realmente a epidemia. Isso foi durante o fim de dezembro, que eles relataram os primeiros casos, embora a doença já tivesse se espalhando lá. Daí em janeiro, as notícias que nós tínhamos eram da mortalidade. E os dados que eles apregoavam não eram tão preocupantes.

BBC News Brasil – Se falava muito, então, da baixa letalidade…

Varella – Baixa letalidade. Ficava alta depois dos 80 anos, que chegava aí perto de uns 15%. Quando a epidemia chegou na Itália, que é um país democrático, com livre circulação de informação, nós vimos aí pelo começo de fevereiro, ao redor do dia 12, 15 de fevereiro.

Aí nós tomamos consciência da gravidade do problema. E você veja que os países não tiveram tempo de se organizar. Os Estados Unidos, com todo o dinheiro que eles têm, todos os recursos e tudo, foram pegos de surpresa.

BBC News Brasil – E o senhor acha que essa precariedade em que uma parcela muito expressiva da população vive – não estamos falando de um nicho – sendo uma condição muito antiga, histórica, o senhor acha que isso é contornável? Ou estamos fadados a uma tragédia social?

Varella – Dá para fazer muita coisa, lógico. E acho que os governos federal, estadual, estão se movimentando para isso. Na hora que você sente a dimensão do problema, todo mundo fica assustado, todo mundo pensa que tem que fazer alguma coisa. Tenho visto a movimentação em todos os cantos, mas o problema é que a transmissão é muito rápida. Eu acho que vai acontecer uma tragédia nacional, eu não tenho dúvida disso. Eu acho que nós vamos ter um número muito grande de mortes, vamos ter um impacto na economia enorme, vamos ter uma duração prolongada.

Você vê que até hoje a gente não conseguiu definir a partir de quanto tempo nós podemos relaxar. Quanto tempo? Dois meses? Três meses? Seis meses? Ninguém sabe. Ninguém arrisca dizer por ter responsabilidade. Nós não sabemos. Isso é um vírus novo, nunca existiu uma situação como essa.

Mas ‘ah, a gripe espanhola’. Não compare, são situações diferentes, o mundo era diferente há cento e tantos anos atrás. Não sabemos, estamos aprendendo agora, vendo o que está acontecendo em diversos países. Mas a realidade que vale para um país não vale para todos.

BBC News Brasil – Quando o senhor fala de muitos mortos, claro que não dá para fazer uma projeção, mas quando o senhor pensa nesse cenário ruim ou provável, o que o senhor vê?

Varella – Pensa como é a doença. Você pega com vírus, que se transmite com muita facilidade, isso está provado no mundo inteiro. Começa e não para mais. Ele tem uma fase que é muito tranquila, um pouquinho de dor de garganta, uma tossezinha irritativa, a pessoa perde o olfato, uma febre baixa, nada muito importante. Esse período dura mais ou menos uns cinco dias, de cinco a dez dias, mais ou menos. E aí você tem uma divergência. Tem gente que se recupera, tiveram sintomas mínimos, às vezes até ausentes, mínimos.

Depois desses cinco a dez dias você divide os infectados em dois grupos: aqueles que vão se recuperar, mais uma semana, vai melhorando aquele cansaço, passa, ficam bons. E tem aqueles que desenvolvem falta de ar. Esses que desenvolvem falta de ar são os que têm pneumonia associada ao coronavírus. Essa pneumonia tem várias explicações fisiopatológicas, mas enfim: aí você tem os doentes que vão parar nos hospitais. Esses que vão parar, uma parte se recupera recebendo oxigênio por máscaras. E tem os que vão para insuficiência respiratória progressiva. Esses têm que ser entubados.

Então por que se defende o isolamento? Primeiro porque ele é a única evidência de medida que reduziu o número de pessoas que procuram os hospitais. A gente diz que [existe o risco de que] o sistema de saúde entre em colapso. As pessoas estão acostumadas com essa coisa de ir ao pronto socorro e demora para atender, você não é atendido às vezes, ou é mal atendido e volta para casa.

Só que agora é uma situação diferente. Você só vai para o hospital quando você tem falta de ar. E essa falta de ar é progressiva, você tem que ter os recursos de ventilação mecânica à disposição. Se você não tiver esses recursos, o que vai acontecer? Não é que você volta para casa, sofre um pouco e passa. Não, falta de ar é o pior sintoma que existe. Porque se você tem dor, toma analgésico, você tem tosse, tem jeito de bloquear. Agora ter falta de ar é uma morte horrível. Horrível.

Quando você ouve dizer na Itália os médicos que têm que decidir quais são os que vão para a UTI, quem vai ter entubação ou não, quer dizer que os outros morrem de falta de ar. Essa é a situação real e isso que tem que ser colocado para a população. Não é que vai morrer gente. Vai morrer gente com um enorme sofrimento. Por isso que os médicos defendem: vamos segurar, para que as pessoas não tenham que morrer desse jeito, que é um jeito inaceitável.

BBC News Brasil – O isolamento, no Brasil, também tem algumas peculiaridades. Há protestos contra o isolamento, até por medo do impacto econômico, há ruído nas mensagens do governo, em que um fala uma coisa e o outro fala outra. O nosso nível de isolamento é preocupante?

Varella – Em alguns lugares está indo bem. Aí voltamos à questão social. Você pega quem mora em um cômodo com três, quatro crianças, como você mantém essas crianças? Você vê as palafitas, que são os piores lugares que eu conheci no Brasil, como você mantém aquelas crianças em um barracão de madeira, no Norte ou Nordeste do país, em uma temperatura que durante o dia chega a 40 graus, 45, 50 graus lá dentro. Como é que as pessoas vão ficar lá dentro? Sem água tratada, muitas vezes, que vão buscar de balde em alguns lugares. E a gente diz lave as mãos, olha como você lava, faz tudo direitinho. É bonito para quem tem pia em casa.

BBC News Brasil – Desde o começo da pandemia os representantes das favelas têm batido muito na tecla de que é preciso ter um plano específico para as favelas. E até agora eles reclamam que não houve medida direcionada a essas localidades. O senhor acha que medidas específicas são necessárias?’

Varella – Eu acho que sim. Há iniciativas, o que não há são iniciativas que partam de órgãos governamentais direcionadas a esse público. Eu tenho confiado mais até na organização que eles estabelecem. Você vê Paraisópolis, em São Paulo, que é um exemplo maravilhoso. Puseram praticamente um inspetor ou inspetora em cada quarteirão da favela para fazer esse monitoramento. A própria sociedade tem condições de se articular. O que as autoridades têm que fazer é ter planos diretivos, que apontem o que a gente pretende com esse determinado plano.

Esse pessoal que diz que não, ‘vamos fazer as crianças voltarem para a escola, os jovens que não vão ter doença grave podem se movimentar na cidade’. Primeiro: isso não foi feito em lugar nenhum do mundo, esse chamado isolamento vertical: separa os mais velhos, os frágeis, e deixa os mais jovens irem ao trabalho. Não foi feito em lugar nenhum por alguma razão, não é verdade? A Europa inteira, todos os países desenvolvidos, inclusive nos EUA em que o governo federal de início foi contra, acabaram forçados pelas circunstâncias a adotar o isolamento.

Não há prova de que esse isolamento funcione, e provavelmente não vai funcionar mesmo, porque você pode ser jovem mas os brasileiros são gregários, moram muito próximos, você pode pegar o vírus na rua e trazer para a sua casa. Nesse momento o que nós sabemos fazer é isolar. Aí as pessoas dizem: vai dar uma crise econômica. A crise econômica já está estabelecida. Quando você tem uma epidemia desse jeito, se você deixar as pessoas saírem, se infectarem pela rua, à vontade, a crise econômica vai acontecer da mesma maneira. Isso é irreversível. Nós vamos ter a crise. O que os médicos defendem, e muitos economistas defendem: a crise nós vamos enfrentar de qualquer jeito. Então vamos tentar reduzir o número de doentes para abreviar duração da crise.

BBC News Brasil – O senhor citou esse projeto do Itaú, que causou muito burburinho esta semana. O que vai dar para fazer, qual o foco desse R$ 1 bilhão?

Varella – Esse projeto está na fase inicial e correndo com toda pressa do mundo porque não temos tempo para ficar fazendo grandes planejamentos, temos que adotar medidas práticas. Temos nos reunido todos os dias, nos dividimos em áreas que o dia todo ficamos em discussões, a parte executiva é tocada pelo doutor Maurício Ceschin (ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde).

Nós estamos focando em alguns aspectos: o primeiro é a proteção dos profissionais de saúde. E isso não é uma coisa corporativa, ao contrário, porque sem os profissionais de saúde não temos condição de dar atendimento à população. Se muitos se infectarem, não vamos ter como substituí-los. Uma coisa fundamental neste momento é que todo mundo use máscara quando está na rua.

Faltam máscaras no mundo inteiro. Estamos focando em um projeto conseguindo formas de produção nacional por empresas brasileiras do maior número de máscaras possível. O governo tem dinheiro para isso, as secretarias estaduais têm dinheiro, mas não conseguem comprar nessa fase. Estamos buscando criar um estoque regulador nosso e ajudando as secretarias estaduais a conseguirem máscara pelo preço mais baixo possível.

O outro caminho é verificar quais são os problemas que nós temos neste momento nos hospitais e nas secretarias estaduais, criando gabinetes de crise. Como são: primeiro, nas secretarias de saúde ajudar a monitorar a quantidade de casos locais e os recursos hospitalares. Por exemplo: você tem uma coisa na engenharia hospitalar que diz o seguinte: em média, cada hospital você consegue aumentar em 20% o número de leitos pelo simples remanejamento da estrutura hospitalar, sem construir nada. Sem investir nada em instalações você consegue fazer esse aumento.

Quando a gente fala em R$ 1 bilhão, fala nossa, é muito dinheiro. Seria muito dinheiro nas nossas vidas pessoais. Mas se pensar que o SUS investe R$ 240 bilhões por ano, é uma grande ajuda, mas não é um dinheiro ilimitado também.

BBC News Brasil – O SUS é um ponto forte do Brasil, temos um sistema de saúde gratuito. O que o senhor diria que são os maiores gargalos?

Varella – É a desigualdade. O SUS é o maior programa de saúde pública do mundo. Os brasileiros desvalorizam o SUS. Quando eu vejo os ingleses, que põem aquela sigla NHS (National Health Service, sistema nacional de saúde em tradução livre) em tudo que é lugar, o NHS deles é uma brincadeira perto do SUS. Tem dinheiro, uma população de alto nível educacional, um país com 66 milhões de habitantes. Quero ver você dar saúde gratuita para 209 milhões em um país desigual e pobre como o nosso. Quero ver.

Imagina se nesse momento nós não tivéssemos o SUS. Então você tem um bom seguro saúde, te dá acesso aos melhores hospitais, ótimo, você pode ficar tranquila. Não, não pode. Por quê? Porque pode acontecer de o hospital maravilhoso ao qual você tem direito não tenha vaga para você. Olha o que está acontecendo nos EUA. Por que estão morrendo muito mais negros lá do que brancos? Porque os negros são mais pobres. E eles evitam ir para o hospital porque eles sabem que isso pode ser a falência da família inteira. Porque não tem SUS. Você vai ter que pagar pelo menos uma parte do atendimento que ele vai receber. E ele no fim diz bom, eu vou morrer no hospital e deixar minha família endividada? Então ele segura, só vai em última consequência, como último recurso.

O SUS, na verdade, é um sistema perfeito. O problema qual foi, desde sempre? A falta de recursos. O governo federal vem há anos diminuindo sua participação no SUS. Teoricamente teria que cobrir 50% dos gastos do SUS, os municípios 25% e o Estado outros 25%. O governo federal vem diminuindo e está dando agora cerca de 44%. E os municípios, porque o prefeito está em contato com outros prefeitos, estão elevando o investimento no SUS e não têm tantos recursos, Mantivemos o SUS com problema de baixo financiamento e má gestão.

Por que o Brasil chegou nessa situação? Nos últimos dez anos, nós tivemos 13 ministros da Saúde. A média de permanência no cargo foi de dez meses, porque o Ministério da Saúde foi usado como troca política, o partido tal, para apoiar o governo, quer o Ministério da Saúde, dá para ele. O que você faz em dez meses em um país desse tamanho? O ministério tem um corpo técnico muito bom, com gente preparada que é o que tem segurado nessa questão política toda. Agora temos que nos organizar muito depressa e isso é problema.

BBC News Brasil – É preocupante trocar o ministro nesta altura do campeonato?

Varella – É claro que é. O ministério [sob a gestão de Luiz Henrique Mandetta] tem se comportado muito bem, tem obedecido as orientações da Organização Mundial da Saúde, tem respeitado as medidas que foram tomadas em outros países com sistemas de saúde muito mais organizados que o nosso, como é o caso da Alemanha, do Reino Unido, da França.

Eu acho que nessa hora você tirar um ministro que está fazendo um bom trabalho… Porque não é um ministro, é a equipe dele inclusive. Você tirar uma equipe que está fazendo um trabalho muito bem feito, tirar por razões políticas, é muito duro isso.

BBC News Brasil – O senhor está no grupo de risco, vivendo em quarentena e trabalhando. Como o senhor está lidando com a ansiedade?

Varella – É difícil porque eu, desde que realizei que ia acontecer uma tragédia no Brasil, eu já acordo de manhã com uma angústia, é uma angústia permanente. Pelo trabalho em educação, em saúde, que eu venho realizando há muitos anos, eu me sinto responsável, sabe. Como sei lá, como se eu fosse o ministro da Saúde. Vendo que tem que fazer, o que podemos fazer para ajudar, de que maneira o meu trabalho pode ser mais útil para as populações.

Então me liga lá no Rio Negro, uma região que eu conheço pouco, que é São Gabriel da Cachoeira. ‘Ah, o senhor faz umas mensagens para a gente, para os indígenas ficarem em casa’, nas comunidades. Eu não tenho como dizer não, então preparo as mensagens, leva tempo. Vem vindo as coisas de todos os lugares e eu tento selecionar para ver onde a minha atuação pode ter um impacto maior. Mas é muito difícil essa situação.

Eu lembro quando a epidemia de Aids, que a minha geração viveu bem de perto. Eu estava fazendo um estágio em um hospital em Nova York e percebi que isso ia acontecer no Brasil. E eu fiquei muito angustiado também.

Falei essa doença vai se espalhar pelo Brasil, na época não havia remédio, nem se sabia qual era o agente, o HIV não tinha sido descoberto ainda. E eu lembro que tive a mesma sensação. Mas ali havia um problema, porque você tinha que atacar o comportamento sexual. Que tudo bem, é dificílimo também, mas era um ponto específico. Aqui não, é um vírus que se espalha pelo ar, pode atingir todos. Eu de fato não consigo ficar tranquilo.

BBC News Brasil – O senhor tem algum cuidado com a sua saúde mental? Alguma rotina nesse sentido?

Varella – Olha, para meditação não tenho essa sabedoria (risos). Porque se eu parar e ficar meditando eu só vou pensar nos problemas, onde está agora, estou preocupado com o Amapá, lá não tem estrutura, não tem UTI. Aí não dá certo para mim não. O que eu tento fazer é estudar, acompanhar bem o que está acontecendo.

Pela primeira vez na vida, acho que eu parei de estudar oncologia, que é minha especialidade, e estou estudando só a epidemia. Eu às vezes leio alguma coisinha de oncologia, mas não consigo manter a atenção por muito tempo. Eu procuro ler bastante, vejo tudo o que está sendo publicado nas revistas internacionais, que agora abriram, você não precisa mais ser assinante da revista em tudo o que se refere ao coronavírus.

E eu procuro me manter calmo em relação a isso, escrever um pouco nos intervalos. E agir, da forma que eu consigo interferir, isolado desse jeito.

BBC News Brasil – Voltando à questão da desigualdade com que começamos a entrevista, o senhor acha que com esse problema evidenciado na quarentena, quando a pandemia passar, o senhor acha que, do ponto de vista de sociedade vai mudar alguma coisa? Como isso vai influenciar a sociedade?

Varella – Acho que sim, acho que vamos sair dessa experiência de maneira diferente. Acho que o sofrimento é uma pressão para o aprendizado. Todos nós vamos perder amigos, muitos vão perder pessoas da família, e isso vai nos ensinar que não é possível viver como nós vivíamos até aqui.

Você vê, anos atrás, nós decidimos sediar a Copa do Mundo e a Olimpíada no Brasil. Bonito, né. Daí construímos esses elefantes brancos que hoje são um problema para os governos estaduais, que os mantêm com dificuldade. Na época a gente dizia pô, mas esse dinheiro tem que ir para saúde, educação, não tem sentido fazer estádios. E o que eles diziam? Que nós éramos parte da elite, que queria negar aos pobres as alegrias do futebol. Muito bom. Agora estamos pegando esses estádios e transformando em quê? Em hospitais.

Essa irresponsabilidade social que nós temos tido no decorrer de tantos anos está nos levando a uma situação muito difícil agora, e isso vai deixar um aprendizado. Primeiro: o SUS nunca mais vai ser o mesmo, porque nós agora estamos conscientes da importância dele. Há quanto tempo a gente escreve e fala que o SUS é fundamental. Eu sempre cito uma frase do Gonzalo Vecina Neto (ex-presidente da Anvisa), que é um sanitarista muito respeitado por todos nós, que é; sem o SUS, é o caos. Imagina agora o que seria se não tivéssemos o SUS?

Não pode ser relegado a terceiro, quarto plano nas preocupações governamentais. Ele tem que ter prioridade. A saúde tem que ter prioridade porque nós não vamos conseguir construir um país civilizado com esse desnível de acesso, onde alguns têm acesso à melhor tecnologia, aos melhores médicos, aos melhores hospitais, e outros ficam relegados ao que é possível dar para eles. E o que é possível dar para eles não é grande coisa, porque o investimento é pequeno e a gestão é precária. Eu acho que vamos sair disso diferentes.

BBC News Brasil – Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de abordar que eu não perguntei?

Varella – Olha, eu acho que nesse momento a gente tem que dar uma importância muito grande às máscaras. As crianças têm que usar máscaras. Porque ensinando as crianças nós vamos ensinar os adultos. Não foi assim com o cinto de segurança? A criança entrava no carro, puxava o cinto de segurança e olhava para o pai: pai, põe o cinto. O pai ficava sem graça de o filho pequeno estar mandando ele colocar o cinto e passou a usar o cinto. Foi assim com o cigarro também, não foi? Ensina as crianças que não podem fumar, que você vai morrer, vai ter doenças graves, a criança chegava em casa ‘ô pai, você vai morrer, para de fumar, eu não quero ficar sem você’. Um estímulo forte, uma criança que diz uma coisa dessas. A mesma coisa tem que ser com as máscaras. Nós não temos dinheiro, não encontramos máscara no mercado, faz em casa.

BBC News Brasil – E é uma coisa que vamos ter que usar por muito tempo?

Varella – Muito tempo. Porque esse vírus vai ficar um bom tempo entre nós. Não com essas características que está tendo agora, promovendo essa mortalidade absurda, mas ele vai levar muito tempo para desaparecer do contato com a humanidade.

Ligia Guimarães – @laigous – Da BBC News Brasil em São Paulo

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